En garde por Charlie Gard
O
bebê Charlie Gard ser assassinado pela Comissão de Direitos Humanos da
Europa não recebe atenção da mídia. É o mal diante de todos nós.
Charlie
Gard é um bebê inglês de dez meses, filho de Chris Gard e Connie Yates,
que sofre de uma grave e debilitante condição genética causadora de
fraqueza progressiva dos músculos e dano cerebral.
Na melhor figura arquetípica do que é
ser pai e mãe, Chris e Connie fizeram uma campanha para arrecadar fundos
e tentar uma cartada final, um tratamento experimental nos EUA.
Conseguiram o dinheiro.
No entanto, os médicos do hospital onde o
menino se encontra entenderam que o tratamento não teria efeito
curativo, sendo uma terapia experimental que, quando muito e em tese,
aumentaria o sofrimento do bebê ao mantê-lo vivo, porque não se sabe se
ele realmente sente alguma coisa dada sua condição. Em suma, no melhor
interesse da criança os médicos se opuseram ao tratamento.
Como regra legal inglesa, o Judiciário
foi acionado. Os pais perderam em todas as instâncias, inclusive na
Corte Europeia de Direitos Humanos.
Ontem, 30 de junho, os aparelhos que mantêm Charlie vivo seriam desligados.
Recordo-me de uma história de um livro
de contos árabes e judaicos, Iazul, onde uma insegura mulher procura um
feiticeiro para garantir o amor de seu noivo. Este mágico embusteiro no
passado amara a mãe do rapaz, e, com o coração ressentido, entrega uma
poção que nubla os sentidos de quem bebe, orientando a garota a dá-la ao
seu prometido, exigindo dele que tirasse o coração da própria mãe.
Empedernida em seu egoísmo, a moça faz
com que o rapaz beba a poção no jantar e logo em seguida pede que
pratique o crime. Drogado, o filho segue para a casa da mãe e lá realiza
o matricídio.
Com o coração da mãe ainda pulsante,
corre para entregá-lo à amada. Entorpecido e no lusco fusco da
madrugada, tropeça e cai, ferindo-se. Ao se levantar, ouve uma voz que
pergunta: “se machucou, meu filho?”. Era o coração da mãe que falava.
Já sem o efeito da droga, e ciente do
que fizera, o rapaz decide tirar a própria vida. Ao desembainhar o
punhal, ouve novamente a voz do coração: “não me apunhales outra vez, filho querido!”.
Foi esse amor maior que a vida que
motivou Augusto e Michaela Odone a abandonarem seus empregos,
hipotecarem a sua casa e se debruçarem ininterruptamente sobre pesquisas
e estudos para tentar salvar seu filho, Lorenzo Odone, portador de
adrenoleucodistrofia (ALD), doença igualmente grave e rara que o tornou
cego, surdo e mudo.
Os médicos deram ao rapaz dois anos de
vida quando diagnosticado, aos seis anos, em 1984, nos quais sofreria
horrivelmente. Graças aos esforços dos Odone e do neurologista Hugo
Moser, que até sua morte, em 2007, se dedicou ao tema, foi criado o Óleo
de Lorenzo.
Infelizmente, para Lorenzo era tarde
demais para recuperar suas funções. A descoberta, contudo, diminuiu de
forma significativa o risco de aparecer os sintomas nos portadores de
doença.
Lorenzo Odone morreu em 2008, vinte anos
a mais do que o diagnóstico médico e um dia depois de fazer trinta
anos, sem sofrimento e cercado de amor e cuidado. Sobreviveu à mãe,
falecida em 2000. Augusto Odone se foi em 2013.
O caso de Charlie Gard, nas informações
parciais que foi possível obter, limita-se a discutir se o tratamento
experimental seria de alguma utilidade ou não.
É uma situação excepcional que independe do dinheiro público.
Como paralelo, podemos citar a situação
brasileira, em que a judicialização da saúde atingiu índices alarmantes.
Há um excesso de pedidos contra o estado no entendimento de que ele
deve fornecer tudo a todos, o que é racionalmente impossível.
Manter tratamentos caríssimos, com medicamentos ou insumos importados, muitas vezes experimentais, off-label
ou quando há equivalentes no SUS gera um descompasso das contas
públicas com prejuízo ao tratamento básico. Em suma, o interesse de
poucos se sobrepõe ao interesse de muitos.
O SUS é uma experiência própria
brasileira, um atendimento que, apesar de criticado genericamente, é de
difícil paralelo com outros países, que estão longe de ter um tratamento
tão abrangente.
Ainda assim, diariamente o Judiciário é
instado a se manifestar em pleitos que importarão em desarranjo do
sistema de saúde público, quando não configuram fraudes, como já
denunciado pela imprensa várias vezes.
Diariamente os gestores públicos devem
fazer as escolhas trágicas sobre quem atender, diante da ausência de
condições de fornecer tudo a todos. É uma saída racional e também
compassiva.
Em virtude desse cenário caótico de
judicialização sem amparo técnico, o Supremo Tribunal Federal modificou
suas decisões para exigir que os tratamentos a serem fornecidos
judicialmente possuam lastro em medicina baseada em evidência (MBE), ou
seja, que não constituíam tratamentos experimentais, que tenham
fundamento científico e prova da eficácia.
Segue a linha do Conselho Nacional de
Justiça, que criou comitês em cada estado para dar amparo técnico de
profissionais da saúde aos juízes quando necessário decisão desse tipo,
permitindo que tanto o interesse individual quanto o coletivo sejam
resguardados.
É terrível, mas é a escolha de Sofia que
cabe ao gestor, e também ao juiz em vários processos, sobre o que
causará menor mal, o que gerará maior bem.
Na situação de Charlie o dinheiro é
privado, fruto de uma “vaquinha”. Não se pode alegar qualquer
interferência. A divergência é entre os médicos e os pais do bebê sobre a
utilidade do tratamento experimental.
O Judiciário europeu acolheu a tese dos
médicos de que não faria sentido prolongar o sofrimento da criança,
ainda que os pais se propusessem a arcar com todo o procedimento.
É possível conjecturar: até que ponto o estado pode se propor onisciente e invadir as decisões da vida privada?
Charlie não está sendo vítima de maus
tratos. Seus pais buscavam uma última alternativa médica, ainda que
experimental, ainda que um sonho, para seu filho.
Distante do conceito de distanásia, objetivavam garantir ao seu filho uma estabilização da doença e, quem sabe, sua cura.
O ponto não é se o procedimento teria
sucesso. A questão ultrapassa a esfera utilitarista da visão moderna do
que é viver no Ocidente, como uma cópia barata e distorcida do já
distópico mundo previsto por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, onde cada um vale só o que faz, não o que é.
A história da humanidade foi construída
em cima de gente que lutou contra o impossível. O que nos move enquanto
raça, naquilo que nos faz melhores, é a crença de que tudo pode mudar.
Se aquele advogado indiano mirrado, com
seu terno elegante, expulso da primeira classe do trem, tivesse se
limitado a entrar com uma ação de danos morais, não teríamos Gandhi.
Se Rosa Parks não tivesse se recusado a
dar lugar a uma mulher branca em 1955 no Alabama, EUA, o movimento de
Direitos Civis seria outro.
Dasrath Manjhi durante vinte e dois anos
trabalhou sozinho para dividir uma montanha ao meio com um martelo e um
cinzel no intuito de abrir um atalho de sua aldeia até o hospital mais
próximo depois que sua esposa morreu e não houve tempo de socorrê-la.
Desmond Doss, cuja história está contada
no excelente filme “Até o Último Homem”, salvou setenta e cinco homens
feridos de uma zona de guerra armado apenas de fé.
Mesmo diante das trevas, a humanidade tem a capacidade de manter a esperança, e, os melhores, de lutar.
O caso de Charlie interessa a todos nós.
Talvez a criança realmente não
sobrevivesse, e o luto, que já é sentido, seria mais forte nos primeiros
dias e se amainaria com o tempo. O Estado legou a esses pais, todavia,
um prantear eterno. Seus dias serão marcados pelo amargor da dúvida e da
sensação de que não fizeram tudo o que poderiam ter feito.
É da essência da alma, muito além da
contabilidade de uma filosofia pragmática e utilitária, a necessidade de
existir além do cartesianismo do mundo material.
Somos mais do que matéria. Somos bem mais do que códigos legais e resultados de pesquisa.
Os Odone sabiam disso, e, mesmo à custa
de sua fazenda e saúde, encontraram um bálsamo para o filho e um
lenitivo para a própria alma ao saber que sua pesquisa impediu que mais
pais passassem pelo mesmo sofrimento.
Quando a pessoa para de olhar para si e
consegue ver o outro, um universo se abre. O Talmud diz que quem salva
uma vida, salva o mundo inteiro. E quem a coloca a perder? Quantos
universos são apagados por atitudes utilitárias que se pretendem
oniscientes?
O Estado existe para o homem, nunca,
nunca o contrário. Nos momentos em que o contrário ocorreu, e ainda
ocorre, o caminho foi sempre pavimentado de dor.
A humanidade não pode ser impedida de expor seu potencial, ainda que em sua maioria esteja acomodada em sua rotina.
Se nossa vida pode ser decidida por
especialistas estatais estribados naquilo que sabem, que é infinitamente
menor do que aquilo que desconhecem, atingimos o ápice da evolução.
Agora é esperar a extinção.
Antes, porém, talvez o Estado passe a
escolher quem vive e quem morre. Passe pelos hospitais desligando os
aparelhos de quem não apresenta melhora, recolhendo idosos e
deficientes. Depois, os que não produzem. A sociedade perfeita,
perfeitamente entrópica e autofágica.
O caminhar da nossa raça é um solitário
tatear no escuro. Não raro retrocedemos nos passos que já demos. Em
alguns momentos nossas mãos se tocam nas trevas e sabemos que não
estamos sós.
Os pais de Charlie sofrem, mas não
sozinhos. Se não foi possível aprender nada sobre sua doença que acresça
ao conhecimento científico, é possível extrair sabedoria do episódio de
sua iminente morte hábil a majorar nossa fé e manter acesa a chama de
liberdade contra atos que violem a dignidade.
Quando criança me recordo de duas
expressões do filme dos Três Mosqueteiros, os heróis de Alexandre Dumas.
Aquela dita quando se preparavam para lutar e avisavam ao oponente, “en garde”, para que erguesse a guarda, e outra, seu mote mais famoso, de quando erguiam a espada e bradavam “um por todos, todos por um”.
Era outra França. Outra Europa. Mas ainda vale dizer: En garde. Un pour tous, tous pour un.
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