As boas almas e a política
Temer demonstrou capacidade ímpar de resiliência. Alguns vaticinavam a sua queda em meses e semanas
Denis Lerrer Rosenfield - O Globo
Reconheça-se, preliminarmente, um fato incontornável: todo presidente
governa com o Parlamento que tem à mão. Não é de escolha presidencial
tal ou qual Câmara de Deputados ou Senado. É o povo que escolhe os seus
representantes.
O presidente da República, este ou qualquer
outro, depara-se com um Poder Legislativo constituído segundo a
soberania popular, conforme um ritual constitucional que passa por
eleições, debates públicos, organizações partidárias e imprensa e meios
de comunicação livres. Se o povo escolhe “bons” ou “maus” deputados,
comprometidos ou não com ilícitos, é problema seu essa sua escolha, e
não do presidente.
Quando assumiu a Presidência da República,
Michel Temer viu-se obrigado a formar uma base de apoio na Câmara dos
Deputados e no Senado, conforme as relações partidárias existentes. Não
poderia ter inventado um novo Poder Legislativo, salvo se tivesse
enveredado para uma solução autoritária, o que não fazia evidentemente
parte de seus propósitos. Tratava-se de estabelecer as condições de
governabilidade e, mais do que isto, de levar adiante um ambicioso
programa de reformas.
E para realizar esse programa, era-lhe
necessário compor uma ampla base parlamentar, sem a qual qualquer
projeto seria inviável. É bem verdade que deveria ter tido mais cuidado
na escolha de seu ministério, uma vez que vários de seus ministros foram
obrigados a deixar os cargos por envolvimento em ilícitos. O problema
político, porém, tem um outro viés que merece ser destacado.
O
presidente negociou um projeto de reformas, que será, certamente,
reconhecido historicamente. Em pouco tempo, muito foi feito, a começar
pelo teto dos gastos públicos, a terceirização, a modernização da
legislação trabalhista, a reforma do ensino médio, o PPI (Programa de
Parcerias de Investimentos), além de continuar avançando na aprovação da
reforma da Previdência. A inflação despencou, o PIB voltou a crescer, e
o aumento do emprego toma um curso definitivamente ascendente.
O
PMDB, ainda antes da ascensão de Temer, via Fundação Ulysses Guimarães,
elaborou um programa, o “Ponte para o futuro”, que estabelecia os
fundamentos de uma reforma do Estado e da economia, sem desatentar para
os seus fatores sociais. Poucos acreditaram, porém o resultado foi a sua
implementação pelo novo governo. Assim fazendo, muitos dos programas de
corte liberal foram concretizados, deixando partidos que anteriormente
os defendiam sem bandeiras.
Causou surpresa que o presidente Temer
tivesse tido a ousadia de realizar tão amplo processo de reformas, sem
contar com base popular para isto. Talvez a questão devesse ser colocada
de outra maneira. Ele pode realizar esse conjunto de reformas,
precisamente por não contar com tal apoio popular e por visar ao futuro
do Brasil, e não às próximas eleições.
Mais concretamente, teria
sido muito difícil realizar tal conjunto de reformas contando com a
participação popular, visto que essa foi intoxicada pelos 13 anos e meio
de lulopetismo. Muito foi prometido e feito, tendo como condição um
completo descuido com as finanças públicas. A corrupção tomou conta do
aparelho do Estado, e o Brasil foi quase à falência. Eis a herança
maldita recebida. E, no entanto, os eleitores acreditaram que fosse
possível continuar o distributivismo social, sem criar condições para o
aumento da riqueza. O Estado, além de saqueado, foi exaurido.
Restava
ao presidente a colaboração do Senado e da Câmara dos Deputados.
Estabeleceu uma forma de governar baseada na participação parlamentar e
partidária. Nenhum governo, nos últimos tempos, tinha enveredado por
esse caminho. Alguns chegaram a dizer que o fez ao preço de liberação de
emendas parlamentares, quando essas são, desde o governo Dilma,
obrigatórias, não estando ao seu arbítrio impedir a sua liberação. Todos
os partidos tiveram e terão emendas liberadas, independentemente de
serem ou não situação.
O que se coloca, portanto, como questão é a
articulação do presidente com os parlamentares e os partidos. E neste
quesito, Michel Temer é um exímio articulador, tendo surpreendido os que
procuraram derrubá-lo, mormente pelo ex-procurador-geral da República.
Demonstrou capacidade ímpar de resiliência. Alguns vaticinavam a sua
queda iminente durante meses e semanas, sem que nada tenha acontecido.
Temos,
então, o que pode parecer como um paradoxo. O presidente da República
implementou um moderno projeto de reformas, utilizando-se dos velhos
instrumentos da política, contando com baixíssima popularidade. O que,
para alguns, parecia impossível tornou-se simplesmente real.
E
note-se que o governo, em seu ímpeto reformista, não hesitou, mesmo, em
minar alguns dos fundamentos dessa mesma política, como quando enveredou
por um corajoso processo de reformas mediante concessões e
privatizações, como a, agora, da Eletrobras. O PPI, conduzido pelo
ministro Moreira Franco, não é somente um projeto de ajuste fiscal, como
alguns têm noticiado, mas de reforma do Estado, tirando empresas da
barganha política e concedendo-as a parcerias e privatizações. Serão
menores no futuro os cargos que serão objeto de negociação partidária.
A
questão, assim colocada, diz respeito não somente ao governo Temer, mas
a qualquer governo. O discurso das boas almas defronta-se com o
problema concreto de como governar. O próximo governo, qualquer que seja
o vencedor, deverá confrontar-se com uma Câmara dos Deputados e um
Senado eleitos pelo voto popular. E a nova representação política poderá
ser melhor ou pior do que a atual. E o novo presidente deverá
igualmente contar com parlamentares não escolhidos por ele.
Eis o
desafio. Quem erguerá a bandeira de dar prosseguimento ao atual projeto
de reformas, não havendo outro que possa assegurar o futuro do país,
salvo se o povo optar pelo retrocesso?
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