Reinaldo Azeveldo - VEJA
Oficialmente,
o movimento militar que derrubou João Goulart faz hoje 50 anos — o
assunto, como sabem, está em todo canto. A quartelada, com amplo apoio
civil, se consumou, de verdade, no dia 1º de abril, mas se quis evitar a
coincidência com o chamado Dia da Mentira. Hoje, com a tal Comissão da
Verdade federal em funcionamento — e algumas outras estaduais ou até
corporativas (em universidades, por exemplo) —, prospera a farsa sobre
aqueles tempos. A extrema esquerda armada perdeu a batalha porque era
minoritária e porque não dispunha de força bélica para enfrentar os
militares. Os extremistas, no entanto, venceram a guerra de propaganda,
desta feita sem precisar dar um tiro: seus epígonos, isto é, seus
seguidores intelectuais, ocuparam a imprensa, o meio universitário, os
centros culturais, as escolas, fatias importantes do Executivo, do
Legislativo e do Judiciário para inventar o confronto que nunca existiu.
E qual é o
confronto que nunca existiu? Aquele que oporia, de um lado, os
defensores da liberdade e, de outro, os que a recusavam. Se, durante o
regime militar, vivemos sob a mentira de que o golpe foi desfechado para
defender a democracia, hoje, 50 anos depois, vive-se a outra face do
engodo, que, no caso, é igualmente trapaceiro, mas com o sinal trocado.
Comecemos do óbvio: em 1964, João Goulart e os que com ele se alinharam
não tinham a democracia como um valor universal e inegociável; tampouco
era essa a convicção dos militares e dos organismos civis que lhes deram
apoio. O regime de liberdades individuais e públicas morreu de
inanição; morreu porque faltou quem estivesse disposto a alimentá-lo. Ao
contrário: assistiu-se a uma espécie de corrida rumo ao golpe.
Golpista, na prática — e escandalosamente incompetente —, era Jango.
Golpistas eram aqueles que o depuseram. Ainda que pudesse haver
bem-intencionados em ambos os lados, não foram esses a ditar o rumo dos
acontecimentos.
Outras
farsas influentes se combinam para fabricar um confronto entre vítimas e
algozes que é não menos trapaceiro. Não é verdade, por exemplo, que os
atentados terroristas e a luta armada tiveram início depois da
decretação do famigerado AI-5, o Ato Institucional que implementou a
ditadura de fato no país. Ao contrário até: a muita gente essa medida de
força, que deu ao Estado poderes absolutos, pareceu até razoável porque
a extrema esquerda decidiu intensificar a rotina de ataques
terroristas. O AI-5 só foi decretado no dia 13 de dezembro de 1968. A
VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, explodiu uma bomba no Consulado
Americano, no Conjunto Nacional, em São Paulo, no dia 19 de março
daquele ano. Em abril, novas explosões no Estadão e na Bolsa de Valores
de São Paulo. Essas são apenas algumas de uma sequência. No dia 18 de
julho, o presidente Costa e Silva ainda recebeu uma comissão de
estudantes para negociar. Inútil.
O que
pretendiam os movimentos de extrema-esquerda? É certo que queriam
derrotar o regime militar inaugurado em 1964; mas que fique claro: o seu
horizonte não era a democracia. Ao contrário. Como costumo lembrar, não
há um só texto produzido pelas esquerdas então que defendessem esse
regime. Ao contrário: a convicção dos grupos armados era a de que os
fundamentos da democracia eram apenas um engodo para impedir a
libertação do povo. Os extremistas de esquerda também queriam uma
ditadura — no caso, comunista.
Cumpre
indagar e responder: o regime democrático que temos hoje é um
caudatário, um devedor, dos extremistas que recorreram à guerrilha e ao
terrorismo? A resposta mais clara, óbvia e evidente é “Não”! Devemos a
democracia aos que organizaram a luta pacífica contra a ditadura
militar. Qual foi a contribuição da Ação Libertadora Nacional, a ALN, do
terrorista Carlos Marighella, à civilidade política? Nenhuma! A eles
devemos sequestros e cadáveres. Qual foi a contribuição da VPR, a
Vanguarda Popular Revolucionária, do terrorista Carlos Lamarca, à
tolerância política? Nenhuma! A eles devemos violência e mortes. Qual
foi a contribuição da terrorista VAR-Palmares, de Dilma Rousseff, à
pluralidade política? Nenhuma. A eles devemos assaltos, bombas e
sequestros.
Mas
devemos, sim, a democracia a Paulo Brossard, a Marcos Freire, a Itamar
Franco, a Franco Montoro, a Fernando Henrique Cardoso, a Mário Covas, a
José Serra, a Alencar Furtado, entre outros. Devemos a democracia até a
ex-servidores do regime que resolveram dissentir, como Severo Gomes e
Teotônio Vilela. Outros ainda, dentro do aparelho de estado, tiveram
papel relevante para trincar o bloco hegemônico que comandava o país,
como Petrônio Portella, Aureliano Chaves e Marco Maciel.
História
O ambiente está viciado. Mistificadores e
prosélitos, mais ocupados com a guerra ideológica do que com a
realidade, atropelam os fatos. Pretendem inventar uma narrativa que
justifique tanto as ações doidivanas do passado como certas safadezas do
presente (ainda voltarei a este ponto). O que fazer? Se você não quer
se deixar levar pela mera discurseira inconsequente, sugiro que leia
este livro.
O
historiador Marco Antonio Villa escreveu “Ditadura à Brasileira” (LeYa),
que tem um emblemático subtítulo: “1964-1985: A democracia golpeada à
esquerda e à direita”. Villa vai ao ponto. Cada ano do período constitui
um capítulo do livro e evidencia a escalada da radicalização, num
confronto em que quase ninguém podia reivindicar o papel do mocinho. Não
se trata de “uma outra leitura do golpe”, favorável ao movimento. O que
Villa faz, com rigor e competência, é alinhavar, de maneira seca,
objetiva, a sequência de eventos, com os seus devidos protagonistas, que
levaram à deposição de João Goulart, à instauração da ditadura, à
abertura do regime e, finalmente, à democracia.
É claro
que o autor tem um ponto de vista — e, no caso, é um ponto de vista que
protege o leitor: Villa é um democrata, e isso faz com que veja com
olhos críticos — e, pois, independentes — as várias agressões havidas no
período aos valores da democracia , tanto à direita como à esquerda. No
seu livro não há bandidos e heróis. Há pessoas de carne e osso fazendo
coisas: muitas em favor da civilidade política; boa parte delas, em
favor da barbárie. O volume traz uma útil cronologia, bibliografia e
índices onomástico e remissivo, o que o torna também um bom manual de
consulta. É um bom instrumento para se defender de fraudes influentes.
Encerro este post
Nada devemos, rigorosamente nada!, às
esquerdas armadas. A coragem é, em si, um valor. Quanto ela é tão
suicida como homicida, já não é coragem, mas estupidez, e costuma
arrastar outros tantos em sua aventura.
31 de Março – 2: De como o mensalão, os aloprados e o assalto à Petrobras nasceram com Marighella, Lamarca e afins…
Na minha
coluna de sexta, na Folha, escrevi um texto sobre 1964, que reproduzirei
abaixo, na íntegra, o que nunca faço aqui. Impressiona-me a
incapacidade de alguns grupos de ler o que está escrito, preferindo o
que não está.
O texto
tem, sim, uma tese: sustento que toda essa discurseira sobre o golpe
militar de 1964 busca se apropriar do passado para garantir posições e
conquistas do presente. E me ocorreu, então, indagar se o país fez o
mesmo com o Estado Novo, por exemplo, a ditadura de Getúlio Vargas, que
foi mais brutal, discricionária e assassina do que a militar.
Não faço
uma “comparação de ditaduras” para escolher a melhor. É preciso ser
burro ou canalha para fazer essa leitura. Tampouco sugiro que a ditadura
militar foi bolinho, tranquila, nada disso! Lembro é outra coisa: em
1987, em vez de ficar reciclando os ódios de 1937, o Brasil estava
fazendo a sua Constituinte, ora! Em 1995, em vez cuidar dos 50 anos do
fim do Estado Novo, estávamos empenhados em garantir o futuro do Plano
Real.
E deixei claro: estou preocupado é com o país daqui a 50 anos, com 2064, não com 1964. Segue o texto na íntegra.
*
1964 já era! Viva 2064!
1964 já
era! Tenho saudade é de 2064! Os historiadores podem e devem se
interessar pelos eventos de há 50 anos, mas só oportunistas querem
encruar a história, vivendo-a como revanche. Enfara-me a arqueologia
vigarista. Trata-se de uma farsa política, intelectual e jurídica, que
busca arrancar do mundo dos mortos vantagens objetivas no mundo dos
vivos.
A semente
do mensalão está nos delírios do Araguaia. O dossiê dos aloprados foi
forjado pela turma que roubou o “Cofre do Adhemar”. Os assaltos à
Petrobras foram planejados pelas homicidas VAR-Palmares, de Dilma, e
ALN, de Marighella. A privatização do passado garante, em suma, lugares
de poder no presente e no futuro. Os farsantes apelam à mitologia para
reivindicar o exclusivismo moral que justifica seus crimes de hoje.
Ladrões se ancoram na gesta da libertação dos oprimidos. Uma solene
banana para eles, com seus punhos cerrados e seus bolsos cheios!
Quem
falava em nome dos valores democráticos em 1964? Os que rasgaram de vez a
Constituição ou os que a rasgavam um pouco por dia? Exibam um texto, um
só, das esquerdas de então que defendesse a democracia como um valor em
si. Uma musiquinha do CPC da UNE para ilustrar: “Ah, ah, democracia!
Que bela fantasia!/ Cadê a democracia se a barriga está vazia?” Para bom
entendedor, uma oração subordinada basta. A resposta matou mais de 100
milhões só de… fome!
Nota
desnecessária em tempos menos broncos: respeito a disposição dos que
querem encontrar seus mortos. Eu não desistiria enquanto forças tivesse.
Mas não lhes concedo a legitimidade, menos ainda a alguns prosélitos
disfarçados de juristas, para violar as regras do estado de direito. A
anistia, por exemplo, não está consignada apenas na Lei 6.683. O perdão —
não o esquecimento — é também o pressuposto da Emenda Constitucional nº
26
(http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/a-revisao-da-anistia-todas-as-leis-que-sete-procuradores-tem-a-ousadia-de-querer-ignorar-%E2%80%94-alem-claro-de-tentar-chutar-o-traseiro-do-supremo/),
de 1985, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Vamos
declarar sem efeito o texto que nos deu a nova Constituição? A pressão
em favor da revogação da anistia e a conversão da Comissão da Verdade —
se estatal, ela é necessariamente mentirosa — num tribunal informal da
história ignoram os pactos sobre os quais se firmaram a pacificação
política do país.
Digam-me:
onde estávamos em 1985? Revivendo a repressão de 1935, que se seguiu à
“Intentona Comunista”? E em 1987? Maldizendo os 50 anos do Estado Novo? E
em 1995, celebrando o seu fim? Estado Novo? Eis a ditadura que os
“progressistas” apagaram da memória. Um tirano como Getúlio Vargas foi
recuperado pelas esquerdas para a galeria dos heróis do
anti-imperialismo e serve de marco, segundo os pensadores amadores, para
distinguir “demófobos” de “demófilos”.
Ilustro
rapidamente. Entre novembro de 1935 e maio de 1937, só no Rio, foram
detidas 7.056 pessoas. Todas as garantias individuais estavam suspensas.
Dois navios de guerra foram improvisados como presídios. Em 1936,
criou-se o Tribunal de Segurança Nacional, que condenou mais de 4 mil
pessoas — Monteiro Lobato entre elas. Mais de 10 mil foram processadas. A
Constituição de 1937 previa a pena de morte para quem tentasse
“subverter por meios violentos a ordem política e social”. Leiam o
decreto nº 428, de 1938, para saber como era um julgamento de acusados
de crime político. Kim Jong-un ficaria corado. A tortura se generalizou.
No assalto ao Palácio da Guanabara, promovido por integralistas em maio
de 1938, oito pessoas presas, desarmadas e rendidas foram assassinadas a
sangue frio, no jardim, sem julgamento, por Benjamin e Serafim Vargas,
respectivamente irmão e sobrinho de Getúlio. No dia 9 de novembro de
1943, a Polícia Especial enfrentou a tiros uma passeata de estudantes da
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com duas vítimas fatais.
Tudo indica que os mortos e desaparecidos do Estado Novo, sem guerrilha
nem ataques terroristas, superaram em muito os do regime militar. Nunca
se fez essa contabilidade. Nesse caso, a disputa pelo presente e pelo
futuro pedia que se escondessem os cadáveres.
Getúlio
virou um divisor de águas ideológicas na história inventada pelos
comunistas, oportunistas e palermas e é o pai intelectual de João
Goulart, o golpista incompetente deposto em 1964. Antes como agora,
“eles” sabem como transformar em heróis seus assassinos. A arqueologia
do golpe é um golpe contra o futuro. Viva 2064!
31
de Março – 3: Surpresa? Há mais brasileiros querendo punir
ex-terroristas do que ex-torturadores. No Estado de Direito, as duas
coisas são impossíveis!
A Folha publica hoje uma pesquisa sobre
a revisão da Lei da Anistia. Há duas maneiras de lê-la: escondendo o
que está lá ou chamando a atenção para o que está sendo revelado. De
modo genérico, 46% se dizem a favor da revisão, contra 37%, que não
apoiam essa ideia. Não souberam responder 17% dos entrevistados. Mas a
pesquisa é um pouco mais detalhada. O instituto quis saber: “Você e a favor ou contra a punição de pessoas que torturaram presos políticos durante a ditadura?”
A resposta: 46% a favor, e 41% contra. Considerando a margem de erro,
há praticamente um empate técnico. A pergunta, convenham, força parte
das pessoas a se posicionar contra a tortura — e o aspecto jurídico
acaba se perdendo. Suponho que pessoas de bem repudiem tal prática,
certo?
Mas o que certamente vai surpreender muita gente é outra coisa. O instituto perguntou: “Policia e Judiciário devem reexaminar os casos de atentados contra o governo durante a ditadura?”
Atenção para a resposta: 54% são a favor, 29% são contrários; 11% não
sabem, e 6% são indiferentes (os infográficos foram publicados pela
Folha).
Não dá
para dourar a pílula: os que acham que a extrema esquerda terrorista
também deve ser julgada são em maior número do que os que querem punir
os torturadores: 54% a 46%; os que defendem que os esquerdistas sejam
deixados em paz são em menor número — 29% — do que os que pensam o mesmo
sobre os torturadores: 41%. E nada menos de 80% acham que tanto os
torturadores como os que praticaram atentados devem ser julgados hoje;
8% avaliam que só os membros do governo têm de passar por essa revisão;
6% a defendem apenas para os agentes do Estado, e outros 6% não sabem.
Vale
dizer: a esmagadora maioria dos brasileiros não tem a ambiguidade moral
das esquerdas, que acreditam que a Lei da Anistia deva ser revista só
para seus adversários. Que fique claro: não é verdade que todos os
esquerdistas que participaram de atentados, ou de seu planejamento,
foram presos e processados naqueles dias. Alguns foram; outros não.
O Datafolha apresentou ainda a seguinte questão: “O
governo brasileiro paga indenização a pessoas ou familiares de pessoas
que foram mortas ou perseguidas pela ditadura. Qual é a sua opinião a
respeito?” 52% concordam totalmente; 22% concordam em parte; 5%
são indiferentes; 5% discordam em parte; 9% discordam totalmente; 7%
não sabem. Eu diria que não há como uma pergunta como essa não ter uma
maioria de gente que concorda. Afinal, se as pessoas foram mortas ou
perseguidas… Será, no entanto, que, se os brasileiros soubessem da penca
de desmandos que há nesses pagamentos, haveria a mesma concordância?
Duvido.
Só para
lembrar. A Lei de Anistia, a 6.683, é de 1979 e, por reivindicação das
esquerdas, concedeu anistia “ampla geral e irrestrita” para os crimes
políticos e conexos — incluindo a tortura, que só passou a ser definida
na legislação em 1997, com a Lei 9.455. O que pretendem? Aplicar uma lei
de 1997 para crimes cometidos antes de 1979? No direito penal
brasileiro, a lei não retroage para punir ninguém. Mais: a Emenda
Constitucional nº 26, que convocou a Constituinte, tinha como
pressuposto a anistia. Se tudo isso parecesse pouco, o STF já se
pronunciou a respeito e reafirmou a impossibilidade de rever o perdão.
Mais: o
Brasil não tem ainda uma lei contra o terrorismo. Se e quando tiver,
deve-se retroagir para punir remanescentes de grupos terroristas? Acho
que não! A pressão política para processar apenas os torturadores e
livrar a cara dos terroristas é grande. Ocorre que uma e outra coisa não
resistem a um exame jurídico isento. O que pretendem? Revogar a Lei
6.683, tornar sem efeito parte da Emenda Constitucional nº 26 e aplicar
retroativamente a Le 9.455? Isso não seria estado de direito, mas estado
de bagunça.
Não acho que vá acontecer.
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