‘Países grandes e com ambições precisam se definir’, diz ex-embaixador americano no Brasil
Em entrevista, Thomas Shannon criticou a falta de posicionamento do governo no caso da anexação da Crimeia
Cláudia Trevisan - O Estado de S.Paulo
WASHINGTON - A Venezuela está dividida internamente e
também é um fator de polarização nas Américas, avaliou o conselheiro do
Departamento de Estado dos EUA, Thomas Shannon, que durante quase quatro
anos foi embaixador no Brasil. "A falta de disposição de países do
hemisfério de lidar com o que está ocorrendo na Venezuela de maneira
direta e pública é um erro", declarou em entrevista ao Estado. Shannon
disse que a anexação da Crimeia pela Rússia mudou de "maneira
fundamental" a relação entre Washington e Moscou e criticou o Brasil
pela omissão diante da invasão da Ucrânia. "Países grandes e com grandes
ambições precisam se definir, para o benefício de todos nós", afirmou.
Shannon disse que os EUA gostariam de "fazer mais" no relacionamento com
o Brasil, abalado pelas revelações de espionagem do ex-técnico da
Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden e o cancelamento da
visita de Estado que a presidente Dilma Rousseff faria a Washington em
outubro. A seguir, trechos da entrevista:
O presidente Obama anunciou que proporá o fim da coleta em
massa de dados telefônicos pela NSA. É um reconhecimento de que Edward
Snowden estava certo ao revelar o programa?
Não.
Mas a mudança não teria ocorrido se Snowden não tivesse revelado a extensão da ação da NSA.
Não
creio que podemos dizer isso. Era um segredo para o público americano,
mas não era um segredo para o Congresso dos Estados Unidos. Todos os
programas que Snowden revelou eram aprovados não apenas pelo Executivo,
mas também pelo Congresso. E todos eles, em diferentes momentos, seriam
revistos.
O governo mantém a determinação de processar Snowden?
Ele
é acusado de violar leis federais. Ao que eu saiba, não há mudança. Ele
é um jovem que não apenas violou o juramento de proteger certos tipos
de dados, mas também revelou informações que foram muito danosas a seu
país.
Como medir esse dano e que outros danos o governo prevê?
É muito difícil para nós saber o que
esperar. Snowden levou muitos documentos e não está claro quais serão
divulgados ou quando. Mas o dano pode ser identificado de várias
maneiras. O primeiro é o que ele tentou infligir à Agência de Segurança
Nacional, expondo aspectos de suas operações e seus métodos de trabalho.
A maneira pela qual a informação foi divulgada é obviamente desenhada
para afetar relações importantes, tanto com aliados tradicionais, quanto
com parceiros emergentes de importância estratégica, como o Brasil. A
divulgação da informação não ocorreu de maneira aleatória. Ela tinha um
propósito.
A anexação da Crimeia parece um fato consumado.
É
algo que não aceitamos, independentemente do status de facto da
Crimeia. É uma violação da legislação internacional, uma violação da
Constituição da Ucrânia e é ilegítimo. Vamos continuar a insistir nisso,
ao mesmo tempo em que tentamos assegurar que nossa resposta e de nossos
aliados europeus seja forte o suficiente para que o sr. Putin não seja
tentado a fazer isso de novo, porque é muito perigoso. A paz e o
bem-estar da Europa tem dependido da contenção extraordinária dos
ucranianos e de sua disposição de não lutar.
Mas a contenção não é consequência do enorme desequilíbrio militar entre Ucrânia e Rússia?
Estrategicamente
pode ser, mas do ponto de vista humano é muito difícil ver algo
semelhante ocorrer. É muito desafiador para os ucranianos lidarem com
esse tipo de agressão e não responderem de maneira humana, resistindo.
Mas há uma questão mais ampla aqui. Existem muitas disputas territoriais
no mundo e muitas demandas históricas sobre territórios. Nós
construímos sistemas para resolver essas questões sem o uso da força,
por meio da negociação. O comportamento russo quebrou isso e é
importante deixar claro que esse tipo de comportamento não é aceitável e
não pode ser repetido em outros lugares do mundo. A tragédia é que a
Rússia, por motivos que são atávicos, escolheu o caminho que vai mudar
de modo fundamental sua relação com os EUA e com a Europa, de uma forma
que não atende aos seus interesses de longo prazo.
É factível a hipótese de que os EUA forneçam gás para a
Europa no futuro e supram ao menos parte da demanda que hoje depende da
Rússia?
Sim, é. Um de nossos objetivos globais não é
balcanizar ou dividir os mercados de energia, mas criar suficientes
fontes de suprimento de petróleo e gás para que haja segurança
energética.
O presidente Vladimir Putin estará no Brasil em julho para a
reunião do Brics. Como isso afeta a estratégia dos EUA e da Europa de
tentar impor um custo à Rússia?
Obviamente, o Brasil
toma suas próprias decisões. Mas era de se esperar que um país tão
grande e com a trajetória pacífica do Brasil tivesse uma posição clara
nesse caso. Países grandes e com grandes ambições precisam se definir,
para o benefício de todos nós.
Como está a discussão com o governo brasileiro sobre a NSA?
As
conversas continuam e são positivas. Nós gostaríamos de fazer mais em
nossa relação. Os interesses subjacentes a ela continuam os mesmos e são
tão imperativos hoje quanto eram no passado. O benefício da relação
para os dois países é evidente e é doloroso quando perdemos tempo. Mas
vamos alcançar um ponto no qual a sanidade prevalecerá e continuaremos a
construir uma relação que seja mais do que transacional, uma relação
que seja estratégica em seus objetivos.
Quais os riscos da polarização entre governo e oposição na Venezuela?
É uma situação muito perigosa. O conflito
já custou a vida de muitas pessoas, levou à prisão de políticos e criou
uma crise no governo. Isso precisa ser resolvido. Nós olhamos com
esperança para a missão da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) que
negocia na Venezuela. Esperança de que ela encontre um modo de criar um
espaço para o diálogo entre o governo e a oposição.
Qual o grau de frustração dos EUA com a decisão da
Organização dos Estados Americanos de não discutir a situação da
Venezuela na reunião de Conselho Permanente do dia 21?
Nós
acreditamos que a OEA pode desempenhar um papel mais importante. Mas a
questão desafiadora na Venezuela é que o país não apenas está
profundamente polarizado no âmbito doméstico. Ele também é polarizador
no âmbito internacional. E não é isso que a Venezuela precisa agora. A
Venezuela não precisa que os países tomem partido. Ela precisa de países
que a ajudem a encontrar caminhos para enfrentar a sua polarização.
Enquanto os países do hemisfério não estiverem dispostos a adotar essa
posição e enquanto a OEA não estiver pronta para atuar de maneira que
demonstre solidariedade à Venezuela como país e tente criar as condições
para que o diálogo possa ocorrer, será muito difícil enfrentar os
problemas. Infelizmente, uma das consequências da polarização da
Venezuela é que muitos países na região se afastaram da tradição de
apoio aos direitos humanos e às instituições interamericanas que apoiam
os direitos humanos. Instituições que tiveram papel fundamental em suas
próprias transições políticas e protegeram pessoas que estavam na prisão
ou tiveram de fugir em razão de governos autoritários. A falta de
disposição de países do hemisfério de lidar com o que está ocorrendo na
Venezuela de maneira direta e pública é um erro. Mas também é
desalentador e triste, porque esses próprios países estão perdendo algo
importante.
A manutenção de sanções econômicas a Cuba pelos EUA continua a fazer sentido?
É
uma boa questão e todo mundo tem uma resposta diferente para ela. Nosso
Congresso acredita que elas ainda são úteis. Cuba, como a Venezuela,
tem uma influência perniciosa na comunidade interamericana,
especialmente na América Latina. Muitos países, em um esforço de
acomodar Cuba dentro de instituições como a Celac (Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos), estão dispostos a se afastar de
compromissos públicos com processos democráticos e o respeito aos
direitos humanos. Eu entendo que haja debate sobre como se deve lidar
com Cuba e sobre o sucesso ou fracasso de nossa abordagem, assim como o
interesse de muitos países de tentar outra abordagem, de engajamento.
Mas eu não creio que nesse processo os países da região devam dar passos
para trás em compromissos históricos com a democracia, com os direitos
humanos, com um entendimento do hemisfério do qual Cuba não participa.
Há um papel importante para países como o Brasil dentro de Cuba,
especialmente se nossa própria legislação impede que nós nos engajemos.
Isso pode ser importante porque está preparando o terreno para uma
transição política que terá de ocorrer. Mas o que estou dizendo é que
quando países da região decidem se engajar com Cuba desse modo, eles não
deveriam se afastar de compromissos com a democracia.
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