A Copa e o estado de coisas que aí está
Luiz Werneck Vianna - O Estado de S.Paulo
Quase não se sente, mas de tanto que empurrados pelos
movimentos dos fatos quanto por nossas ações, desde as refletidas e
conscientes dos seus fins até aquelas - provavelmente majoritárias - que
os desconhecem, estamos à beira de uma grande mutação: o Estado que fez
sua história entre nós como mais moderno do que sua sociedade,
conduzindo seu destino à sua discrição, já dá mostras de que perde seu
controle sobre os movimentos dela. Não que da sociedade tenha aflorado o
impulso para a auto-organização e para a difusão de valores cívicos,
bem longe disso. O fenômeno é outro e se faz indicar pela relação de
estranheza e desconfiança que se vem estabelecendo entre ela e o Estado e
suas instituições.
Exemplos não faltam, como o da Copa do Mundo que se avizinha. Noutras
Copas, disputadas em países distantes, às vésperas das competições as
ruas se faziam engalanar pelos próprios moradores, que estendiam
bandeirolas e grafitavam nos muros e nas calçadas símbolos nacionais.
Nesta de 2014, que se disputa aqui, ao revés, a manifestação dessas
mesmas ruas tem sido a de brandir punhos cerrados sob a palavra de ordem
ameaçadora de que "não vai ter Copa", que certamente não se dirige ao
mundo do futebol, paixão inamovível dos brasileiros, mas ao da política.
A festa popular, que certamente virá com a abertura dos jogos, já fez
sua opção de se manter distante da arena oficial, fazendo ouvidos
moucos às tentativas de fazer da Copa um momento de ufanismo e de
integração nacional. Ronda sobre ela o espectro dos idos de junho,
porque reina, especialmente na juventude, o sentimento de que tudo isso
que aí está, inclusive a Copa, "não me representa".
Estranheza quanto às instituições que não se confina a setores das
classes médias, tradicionais e novíssimos, como se constatou com a greve
dos garis do Rio de Janeiro, quando os trabalhadores dessa categoria
profissional desautorizaram o seu sindicato e negociaram, com sucesso,
suas demandas com o governo municipal diretamente. Episódios como esses
têm sido frequentes sem que se abalem os fundamentos anacrônicos da
estrutura sindical, imposta em outro tempo e para outro perfil de
trabalhador.
O sentimento de estranheza e desconfiança, que se agrava, não se
limita à incredulidade quanto a esse "outro" que é o Estado,
traduzindo-se em ações, muitas delas violentas. A síndrome do protesto
ganhou a imaginação de inteiros setores sociais nas metrópoles, em suas
periferias e mesmo em pequenos centros urbanos, em boa parte com origem
em estratos subalternos até então imersos na passividade e no
conformismo.
Nesta hora, que reclama mudanças e inovações, caminha-se para uma
eleição presidencial e parlamentar com todos os vícios das anteriores -
aparelhadas, em meio ao jogo de parentelas e clientelas e, pior, sob a
influência do dinheiro -, da qual não se espera, com justas razões, uma
discussão em profundidade sobre as causas do mal-estar reinante no País.
Na raiz desse desencontro, de nenhum modo fortuito, está a guinada
empreendida pelo PT, já esboçada antes de chegar ao governo em 2002, e
que se radicalizou a partir do segundo mandato do presidente Lula, que o
levou a revalorizar o que havia de mais recessivo na tradição
republicana brasileira, qual seja o viés de se inclinar em favor de uma
cultura política estatólatra. Essa cultura é longeva e teve seu momento
mais forte no Estado Novo, institucionalizada pela Carta de 1937, de
triste lembrança, mas subsistiu de modo encapuzado nos períodos
posteriores, inclusive na democracia de 1946, para não mencionar o
regime militar. E, camuflada com arte, encontrou seu lugar neste
presidencialismo de coalizão que viceja à sombra da Carta de 1988.
A rigor, evitou-se responder ao desafio de encontrar um caminho
original para um governo com origem na esquerda - decerto nada fácil,
mas era o que cumpria fazer -, optando-se, mesmo que de modo
inicialmente tímido e sem apresentar suas razões, pela restauração de
práticas e ideias de um mundo defunto. Para trás, como um fardo
embaraçoso de que se devia desvencilhar, a rica história de lutas contra
o autoritarismo do regime militar, orientada em favor do fortalecimento
da sociedade civil diante do Estado, pela descentralização
administrativa, pela emancipação da vida associativa dos trabalhadores e
pela defesa do princípio da pluralidade na representação sindical,
estes últimos cavalos de batalha do sindicalismo do ABC e dos primórdios
do PT.
O legado da resistência democrática seria preservado na Constituinte e
consagrado na Carta de 1988, e encontraria seu sistema de defesa nos
novos institutos criados por ela, em boa parte dependente de provocação
da sociedade ao Poder Judiciário. Mas, apesar dessa relevante ressalva, a
restauração de um sistema de capitalismo politicamente orientado, com a
pretensão de estar a serviço de ideais de grandeza nacional, veio a
minar as possibilidades de uma comunicação fluida do Estado com a
sociedade civil, vã a tentativa de aproximá-los com a criação, em 2003,
do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, hoje uma instituição
de carimbo da vontade governamental.
O abandono da agenda que, nas décadas de 1970 e 1980, animou a
resistência democrática não é inocente quanto ao atual estado de coisas
que ameaça deixar o Estado a girar no vazio, incapaz de manter, em que
pese sua política social inclusiva, uma interlocução positiva com os
setores que emergiram dos próprios êxitos da modernização do capitalismo
brasileiro. Recuperar, de verdade, as lições daquele tempo não é um
exercício de memória, mas de História, disciplina interpretativa por
excelência, porque é dela que nos vêm os sinais de a qual herança
devemos renunciar para seguirmos em frente.
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