Guilherme Balza - UOL
"Impossibilidade de solução". "Situação política tinha deteriorado muito". "Crescente incapacidade do governo de tomar decisões". Assim o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso descreveu, em entrevista exclusiva ao UOL, o cenário político do governo de João Goulart nos meses que antecederam o golpe militar de 1964.
Para FHC, com direita e esquerda insatisfeitas ou desconfiadas com
Jango, a situação era de impasse. "Não sei qual seria a força que
poderia, além dos militares que se rebelaram, impor uma situação nova."
Quando o golpe ocorreu, FHC era professor na Faculdade de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo), sob orientação de Florestan Fernandes. O ex-presidente permaneceu no exílio no Chile, França, Inglaterra e Estados Unidos entre 64 e agosto de 68, quando retornou ao Brasil dois meses antes da publicação do AI-5 (Ato Institucional nº 5).
Mesmo com o endurecimento do regime, decidiu ficar no país e exercer militância por meio de atividades acadêmicas no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado por ele e outros intelectuais da USP. FHC chegou a ser detido por apenas um dia e foi interrogado na Oban (Operação Bandeirantes), estrutura criada pelos militares para aprofundar a perseguição aos opositores do regime.
O ex-presidente acredita que não foi
preso por mais tempo ou torturado por ser conhecido internacionalmente.
No processo de definhamento e abertura do regime, o sociólogo se
consolidou como um dos principais quadros do MDB, participando da
mobilização pelas Diretas Já e na Constituinte.
Apoiador da Comissão da Verdade criada por Dilma Rousseff, FHC afirma que não instaurou um órgão semelhante quando foi presidente, dez anos depois do final da ditadura, porque lhe informaram não haver documentos a se investigar.
Na entrevista ao UOL, FHC analisa a movimentação política que resultou no golpe militar, enumera o que considera os erros de Jango, relembra os anos de perseguição e explica a decisão de aliar-se, quando presidente, a políticos e partidos que sustentaram o regime militar.
Quando veio a notícia, corri à USP, lá estava fervendo, e tinha uma reunião de jovens assistentes e professores. Na hora, ali, as opiniões eram muito divididas. Íamos fazer uma manifesto contra quem? Contra os generais golpistas do Jango ou da direita? As opiniões estavam divididas. A gente não sabia muito bem o que estava acontecendo. O que mostra que a situação política tinha deteriorado muito.
Tem um estudo que mostra que o Congresso parou de tomar deliberações, paralisou. Isso é um sinal grave, de que o sistema político não está funcionando mais. O Jango tinha uma proposta de reformas de base. Todos falavam nas reformas, mas ninguém sabia o que era isso. Reforma urbana, o que era isso? Então a classe média estava assustada. "Vão tomar minha casa?".
Havia sempre a ameaça comunista. Quando se ia ver, não havia ameaça nenhuma, porque não havia força para tanto. O clima era esse. A realidade era um pouco diferente. O que havia era uma crescente incapacidade do governo de tomar decisões que tivessem um consenso mais amplo. Isso é ruim, leva uma mudança de situação política.
Claro que Jango poderia tomar a decisão que o Brizola queria, de resistir. Nas Forças Armadas havia muita dúvida. Tanto que quem comandou o golpe era de Minas Gerais. Em São Paulo tinha o [general Amaury] Kruel, que era o compadre dele, amigo dele, que foi até o final. Como Jango também não quis tomar posições pela direita, ele foi perdendo os apoios. Mas não sei qual seria a força que poderia, além dos militares que se rebelaram, impor uma situação nova. Porque você tinha uma situação internacional. Os americanos, todos sabem hoje, estavam dispostos a interferir. A CIA [agência de inteligência dos EUA] tinha financiado [o golpe] porque eles achavam que havia um processo esquerdista real em marcha.
A situação era de impossibilidade de alguma solução. Jango fez um erro enorme que foi permitir a quebra de hierarquia de militar. Quebrou a hierarquia, como é que se faz? Quem é que segura a tropa? Ele quebrou [a hierarquia] no tribunal dos sargentos (revolta dos sargentos em Brasília, em 1963), que ele foi lá e fez discurso aos sargentos. Os generais, os coronéis, os oficiais ficaram com medo. Jango foi ficando num beco sem saída.
Durante quase dez anos ficava uma parte do ano na França, Inglaterra, Alemanha, e voltava, porque aqui não tinha como sobreviver financeiramente. Para poder sobreviver, dava aulas fora. E fundamos o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Fiquei lá na Oban 24 horas. Vi gente torturada, aquela coisa desagradável, e me soltaram à noite. Meia-noite. Não fizeram nada. Por que não fizeram? Parece que o oficial do dia lá, o comandante, tinha sido ajudante de ordem do meu pai (que foi militar do Exército). Meu pai era contra [o golpe], foi deputado federal pelo PTB, era Juscelino [Kubistchek], nada a ver com esse pessoal que deu o golpe. Diziam: "você tem costas quentes porque seu pai é militar". Meu pai estava morto já. Nunca usei instrumento de família [para não ser preso]. Provavelmente eu tinha mais respaldo internacional.
Eu falava, criticava a tortura, mas não me prendiam. Havia só rumores de que eu seria preso. Mas o Severo Gomes, que era ministro de governo, era nosso amigo, nos convidou para jantar, e aliviar um pouco. Era tudo meio confuso.
Escrevia num jornalzinho chamado Opinião, do Fernando Gasparian, e noutro chamado Movimento, ligado ao pessoal da Ação Popular (AP). Enfim, não era fácil, mas fomos resistindo.
Na Espanha, quantos ex-franquistas passaram pela democracia e ficaram lá? Se você achar que a política é contar quem é bom e quem é mau, você está com uma visão muito maniqueísta. Política é outra coisa, é como é que você transforma os maus em bons. Entendendo por bom os que estão do teu lado. Você tem que convencer os outros, fazer com que eles mudem. É o que tá acontecendo no Brasil. Mudam? Não sei se mudam, realmente no íntimo, mas vão mudando as políticas.
A base do Lula é a mesma base minha. Não há outro jeito, você não vai matar, não vai eliminar, expurgar. Isso é aquela visão leninista. No jogo da democracia, você tem que ganhar as pessoas. Alguns casos não têm jeito, têm que afastar. Mas o resto tem que transformar. Fazer com que as pessoas aceitem a suas transformações e votem a favor do que você acha que é bom. O que é ruim? Quando você perde o rumo, quando não tem mais agenda. Aí fica uma geleia geral. Não tenho essa visão da política como um jogo entre bons e maus. Se você não tem a maioria, você tem que ganhar essa maioria. Se não, você não faz democracia, faz oposição.
Quando o golpe ocorreu, FHC era professor na Faculdade de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo), sob orientação de Florestan Fernandes. O ex-presidente permaneceu no exílio no Chile, França, Inglaterra e Estados Unidos entre 64 e agosto de 68, quando retornou ao Brasil dois meses antes da publicação do AI-5 (Ato Institucional nº 5).
Mesmo com o endurecimento do regime, decidiu ficar no país e exercer militância por meio de atividades acadêmicas no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado por ele e outros intelectuais da USP. FHC chegou a ser detido por apenas um dia e foi interrogado na Oban (Operação Bandeirantes), estrutura criada pelos militares para aprofundar a perseguição aos opositores do regime.
DILMA E LULA
A reportagem do UOL solicitou entrevistas com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com a presidente Dilma Rousseff, mas, até o momento, o pedido não foi atendido.Apoiador da Comissão da Verdade criada por Dilma Rousseff, FHC afirma que não instaurou um órgão semelhante quando foi presidente, dez anos depois do final da ditadura, porque lhe informaram não haver documentos a se investigar.
Na entrevista ao UOL, FHC analisa a movimentação política que resultou no golpe militar, enumera o que considera os erros de Jango, relembra os anos de perseguição e explica a decisão de aliar-se, quando presidente, a políticos e partidos que sustentaram o regime militar.
'Ninguém sabia de que lado viria o golpe'
Havia tanta indecisão que ninguém sabia de que lado viria o golpe, mas todos sabiam que haveria o golpe. Havia um sentimento de que tinha um golpe em marcha. Uns achavam que era um golpe feito pelo Jango, preventivo, outros achavam que não. Então não foi propriamente uma surpresa para nós o golpe.Quando veio a notícia, corri à USP, lá estava fervendo, e tinha uma reunião de jovens assistentes e professores. Na hora, ali, as opiniões eram muito divididas. Íamos fazer uma manifesto contra quem? Contra os generais golpistas do Jango ou da direita? As opiniões estavam divididas. A gente não sabia muito bem o que estava acontecendo. O que mostra que a situação política tinha deteriorado muito.
'Incapacidade" do governo Jango
A tentativa que houve [de golpe] pela esquerda --pela esquerda é modo de dizer-- é que o pessoal do Jango queria tirar o Carlos Lacerda [governador da Guanabara, da UDN]. E a esquerda tinha medo que se tirassem o Carlos Lacerda, tirariam o Miguel Arraes [governador de Pernambuco, de esquerda] também para poder dar certo equilíbrio. Não creio que Jango quisesse dar golpe nenhum, não era do estilo dele.Tem um estudo que mostra que o Congresso parou de tomar deliberações, paralisou. Isso é um sinal grave, de que o sistema político não está funcionando mais. O Jango tinha uma proposta de reformas de base. Todos falavam nas reformas, mas ninguém sabia o que era isso. Reforma urbana, o que era isso? Então a classe média estava assustada. "Vão tomar minha casa?".
Guerra Fria e ameaça comunista
Aí veio um decreto que o presidente poderia desapropriar para fins de reforma agrária 50 quilômetros de cada lado das estradas federais. Isso gerava uma incerteza muito grande nos proprietários e nenhuma certeza dos que eram favoráveis a uma revolução. Era tudo muito confuso àquela altura. Ninguém pode entender o que aconteceu se não entender o que estava por trás, que era a Guerra Fria, União Soviética e Estados Unidos. Tudo era visto sob este prisma. É azul ou é vermelho?Havia sempre a ameaça comunista. Quando se ia ver, não havia ameaça nenhuma, porque não havia força para tanto. O clima era esse. A realidade era um pouco diferente. O que havia era uma crescente incapacidade do governo de tomar decisões que tivessem um consenso mais amplo. Isso é ruim, leva uma mudança de situação política.
'Beco sem saída'
Qual seria a saída possível? As pessoas não confiavam mais. Os da esquerda não confiavam que Jango iria até o fim. Os conservadores da direita achavam que ele ia até o fim no sentido oposto. Não havia elemento de confiança. Quando foi demitido o Carvalho Pinto, ministro da Fazenda, aquilo foi um sinal muito ruim para as forças produtivas, conservadoras. Quem é que vem aí? Ele nomeou uma pessoa que não tinha expressão. Ele não sabia por onde agarrar, quem podia sustentar.Claro que Jango poderia tomar a decisão que o Brizola queria, de resistir. Nas Forças Armadas havia muita dúvida. Tanto que quem comandou o golpe era de Minas Gerais. Em São Paulo tinha o [general Amaury] Kruel, que era o compadre dele, amigo dele, que foi até o final. Como Jango também não quis tomar posições pela direita, ele foi perdendo os apoios. Mas não sei qual seria a força que poderia, além dos militares que se rebelaram, impor uma situação nova. Porque você tinha uma situação internacional. Os americanos, todos sabem hoje, estavam dispostos a interferir. A CIA [agência de inteligência dos EUA] tinha financiado [o golpe] porque eles achavam que havia um processo esquerdista real em marcha.
A situação era de impossibilidade de alguma solução. Jango fez um erro enorme que foi permitir a quebra de hierarquia de militar. Quebrou a hierarquia, como é que se faz? Quem é que segura a tropa? Ele quebrou [a hierarquia] no tribunal dos sargentos (revolta dos sargentos em Brasília, em 1963), que ele foi lá e fez discurso aos sargentos. Os generais, os coronéis, os oficiais ficaram com medo. Jango foi ficando num beco sem saída.
Exílio e retorno
Decidi não ir embora porque já havia passado anos fora do Brasil. Achei que estava no auge da minha capacidade de ajudar a formação de gente. Tinha escrito um livro que ficou muito famoso, "Dependência e Desenvolvimento na América Latina". Eu estava famoso aqui e na América Latina, e mesmo fora da região, porque tinha sido professor na França. Achava que era melhor ficar no Brasil.Durante quase dez anos ficava uma parte do ano na França, Inglaterra, Alemanha, e voltava, porque aqui não tinha como sobreviver financeiramente. Para poder sobreviver, dava aulas fora. E fundamos o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Oban e suspeita trotskista
Eles fizeram processos contra mim. Fui para Oban (Operação Bandeirante), colocaram capuz na minha cabeça, fui interrogado, uma coisa maluca. Quem me interrogava fazia perguntas sobre trotskistas na Argentina e no Uruguai. Nunca tive nada a ver com trotskismo. Era contra, teoricamente. Na prática não tinha nenhuma relação. Depois eu descobri o motivo: fui a um congresso no México em que estava Ernest Mandel [um dos dirigentes da Quarta Internacional]. Eles tinham uma fotografia dele comigo no aeroporto.Fiquei lá na Oban 24 horas. Vi gente torturada, aquela coisa desagradável, e me soltaram à noite. Meia-noite. Não fizeram nada. Por que não fizeram? Parece que o oficial do dia lá, o comandante, tinha sido ajudante de ordem do meu pai (que foi militar do Exército). Meu pai era contra [o golpe], foi deputado federal pelo PTB, era Juscelino [Kubistchek], nada a ver com esse pessoal que deu o golpe. Diziam: "você tem costas quentes porque seu pai é militar". Meu pai estava morto já. Nunca usei instrumento de família [para não ser preso]. Provavelmente eu tinha mais respaldo internacional.
Eu falava, criticava a tortura, mas não me prendiam. Havia só rumores de que eu seria preso. Mas o Severo Gomes, que era ministro de governo, era nosso amigo, nos convidou para jantar, e aliviar um pouco. Era tudo meio confuso.
Ataque a bomba
A polícia nos chateou bastante. O pessoal do Cebrap, muitos foram torturados, presos mais de uma vez, não era fácil. Jogaram uma bomba no meu escritório, na rua Bahia [no bairro de Higienópolis, em São Paulo]. Dom Paulo Evaristo Arns foi nos visitar porque tínhamos feito um livro a pedido da Igreja. O pessoal da direita ficou irritado [com o livro] e jogou uma bomba lá. Queimaram meus papéis e tal. Jogaram mais para assustar. Não era fácil, mas fomos ficando aqui.Escrevia num jornalzinho chamado Opinião, do Fernando Gasparian, e noutro chamado Movimento, ligado ao pessoal da Ação Popular (AP). Enfim, não era fácil, mas fomos resistindo.
Aliança com partidos herdeiros da ditadura
Quem fundou o PFL foram os [integrantes] da Arena. Era uma dissidência [do PDS, antiga Arena] por causa da política. O [atual] ministro da Energia [Edson Lobão] era da Arena, era do PFL, agora tá no PMDB. O presidente do PDS era o Sarney. Então é difícil no Brasil fazer essa separação.Na Espanha, quantos ex-franquistas passaram pela democracia e ficaram lá? Se você achar que a política é contar quem é bom e quem é mau, você está com uma visão muito maniqueísta. Política é outra coisa, é como é que você transforma os maus em bons. Entendendo por bom os que estão do teu lado. Você tem que convencer os outros, fazer com que eles mudem. É o que tá acontecendo no Brasil. Mudam? Não sei se mudam, realmente no íntimo, mas vão mudando as políticas.
A base do Lula é a mesma base minha. Não há outro jeito, você não vai matar, não vai eliminar, expurgar. Isso é aquela visão leninista. No jogo da democracia, você tem que ganhar as pessoas. Alguns casos não têm jeito, têm que afastar. Mas o resto tem que transformar. Fazer com que as pessoas aceitem a suas transformações e votem a favor do que você acha que é bom. O que é ruim? Quando você perde o rumo, quando não tem mais agenda. Aí fica uma geleia geral. Não tenho essa visão da política como um jogo entre bons e maus. Se você não tem a maioria, você tem que ganhar essa maioria. Se não, você não faz democracia, faz oposição.
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