Para Marcel Fratzscher, efeitos das sanções contra a Rússia podem ser prejudiciais aos Estados Unidos e à União Europeia
Marcel Fratzscher - VEJA
O presidente russo, Vladimir Putin
(Ivan Sekretarev/Pool/Reuters)
Consideremos a crise financeira ocorreu na Rússia em 1998. Em agosto do mesmo ano, o então presidente Boris Yeltsin declarou: "não haverá nenhuma desvalorização – isto é definitivo." Três dias depois, o rublo foi desvalorizado, e os mercados financeiros russos entraram em parafuso. Como o capital do país não parava de sair, o governo russo foi forçado a reestruturar sua dívida e a economia entrou em uma recessão profunda.
Embora a Rússia fosse relativamente insignificante em termos financeiros, a crise do país teve consequências de longo alcance. A Argentina foi um dos países mais afetados; a crise russa acentuou a perda de confiança dos investidores nos mercados emergentes, que quatro anos mais tarde culminou com o padrão da soberania argentina. Até mesmo os EUA e a Europa não estavam imunes, pois o colapso do importante fundo de cobertura Long Term Capital Management (LCTM ) intensificou as preocupações sobre a viabilidade de muitas outras instituições financeiras.
Os dramas financeiros atuais apresentam impressionantes semelhanças com essas experiências. Tecnicamente, a Argentina está falida; os mercados e as instituições financeiras norte-americanas e europeias estão agitados e a Rússia promete que as sanções que enfrenta não terão impactos em sua economia.
A mais óbvia semelhança é declaração do presidente russo, Vladimir Putin, de que seu país poderia suportar a todas e quaisquer sanções ocidentais. Talvez esta seja simplesmente a expressão de um desejo. Na verdade, a proibição da maioria dos principais bancos russos de operarem livremente no mercado de capitais ocidental afetaria não só aos próprios bancos, mas também toda a economia russa. E a decisão do Banco Central de aumentar as taxas de juros para apoiar o rublo pode conduzir a um agravamento significativo do crédito, condições para as empresas e famílias, o que jogaria a economia russa para uma recessão a partir deste ano.
O problema com as sanções financeiras é que ninguém sabe precisamente como elas se desdobrariam – especialmente em uma economia tão grande como a da Rússia. Se provarem ser mais eficazes do que o desejado, elas representariam uma séria ameaça para a estabilidade financeira global.
As restrições aplicadas aos bancos russos que operam na Europa e nos Estados Unidos parecem modestas. Os bancos ainda podem seguir tendo acesso aos mercados de dinheiro, atender as suas necessidades financeiras a curto prazo e contar com o apoio do Banco Central, mas o apetite de risco dos investidores poderia facilmente mudar, estimulando-os a retirar grandes quantidades de capital. Embora a dívida pública da Rússia seja moderada, suas grandes reservas de moeda estrangeira e sua economia estão muito mais fortes do que em 1998, e uma vez que o rebanho está no pasto, é impossível pará-lo.
Os bancos europeus concederam quase 200 bilhões de euros (268 bilhões de dólares) em empréstimos para empresas e instituições russas e contam com uma percentagem significativa dos ativos da Rússia denominados em euros, tornando-os especialmente vulneráveis. Além disso, os testes de resistência atuais da zona do euro podem revelar grandes fugas de capital em bancos europeus nos próximos meses. Por acabar de sair de uma recessão profunda, os transtornos financeiros poderiam facilmente fazer com que a Europa caísse novamente em recessão, particularmente devido aos laços estreitos da economia da zona euro com a Rússia nas áreas do comércio e da energia.
Além disso, o que agrava o problema é que ninguém realmente compreende as conexões exatas entre os mercados e instituições russas e europeias. O colapso do LCTM em 1998 foi completamente inesperado. Está a Europa, hoje, preparada para enfrentar uma quebra semelhante à de uma grande instituição financeira?
As sanções financeiras à Rússia não são seletivas, temporárias ou totalmente credíveis. Se elas afetam toda a economia russa, atingem mais duramente o cidadão comum, o apoio popular ao regime de Putin pode solidificar-se ainda mais. Naturalmente, um abrandamento econômico também poderia enfraquecer o apoio a Putin, com base no aumento em qualidade de vida logrado sob sua liderança. Nesse caso, a reação de Putin poderia ser ainda mais prejudicial.
Outro problema é que a aplicação de sanções que não podem ser revertidas rapidamente elimina o incentivo para a Rússia voltar à mesa das negociações, especialmente porque a ameaça de uma intensificação de sanções financeiras carece de credibilidade, dado o risco para a estabilidade financeira europeia e norte-americana.
Uma vez que estas sanções começarem a surtir efeito, ninguém poderá dizer quem será afetado – nem com que intensidade e , como demonstra a experiência da Rússia em 1998 e da Argentina após 2002, o processo de restabelecimento da confiança entre os participantes nos mercados é longo e doloroso.
Estas preocupações não querem dizer que os EUA e a UE não devem impor sanções à Rússia por sua anexação ilegal da Criméia e seus contínuos esforços para desestabilizar o leste da Ucrânia, mas as sanções que atingem a verdadeira realidade da economia russa – como , por exemplo, a energia, os recursos naturais e o exército – poderiam constituir uma solução melhor. Ainda que semelhantes sanções possam não surtir efeito tão rapidamente, elas seriam direcionadas, temporárias e credíveis, permitindo que os Estados Unidos e a Europa controlassem – e ajustassem – o impacto sobre a economia e os dirigentes russos.
Em qualquer caso, os líderes americanos e europeus devem reconhecer que a aplicação de sanções terá o seu preço – muitos deles inesperados – para ambos os lados. Se não estão dispostos a arriscar a estabilidade financeira global em um jogo imprevisível com Putin, talvez seja aconselhável repensar a composição das sanções que impõem.
Marcel Fratzscher, ex-chefe de Política Internacional do Banco Central Europeu, presidente do think tank DIW Berlin e professor de Macroeconomia e Finanças da Universidade Humboldt
Tradução: Roseli Honório
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