quinta-feira, 2 de outubro de 2014

França: corporativismos dividem o país, exacerbam suas contradições e dispersam suas energias
Gérard Courtois - Le Monde
Christophe Ena/AP
Corporativismos dividem o país, exacerbam suas contradições e dispersam suas energias Corporativismos dividem o país, exacerbam suas contradições e dispersam suas energias
Há muito tempo a França sofre de sérios distúrbios de personalidade. Os exemplos abundam. O fato de ter, há mais de dois séculos, guilhotinado seu rei fez nascer no país uma incurável nostalgia monárquica, traduzida por suas instituições. Avessa à autoridade, sempre pronta a levantar picaretas e foices, ela não é menos disposta, com o mesmo entusiasmo, a esperar constantemente sua salvação por algum salvador providencial. Apóstola da igualdade, ela se acomoda muito bem às desigualdades que a enfraquecem. Campeã do pessimismo coletivo, dá mil sinais de seus otimismos individuais, a começar por uma demografia vigorosa. Se não fosse um país tão velho, seríamos tentados a diagnosticar uma severa crise de adolescência.
Esse desdobramento atinge, hoje em dia, uma fase notável, para não dizer crítica. Vejam, assim, a reação coletiva depois do odioso assassinato de Hervé Gourdel por um grupo de jihadistas argelinos que se reivindicam o autoproclamado "califado" no Iraque e na Síria. Não faltou uma voz para enfrentar, recusar-se a ceder à chantagem dessa barbárie e combater os que se entregam a ela. Da esquerda ou da direita, de todas as crenças ou obediências, não faltou uma voz, ou quase, para aprovar a firmeza do presidente da República, sejam quais forem os riscos.
Normalmente tão reclamões, os franceses em sua grande maioria abraçaram esse movimento de união nacional. Como se ele reativasse uma fibra patriótica abafada e atestasse que a França ainda conta no cenário internacional. Como se, diante de assassinos que acreditaram justificar seu gesto denunciando a recusa da França a aplicar a "lei de Deus", essa tragédia reavivou a consciência coletiva de que a laicidade é um cimento precioso da República.
É ainda mais revelador constatar o quanto, assim que a emoção do momento se atenuou, não é mais a união que é sagrada, mas os corporativismos, que dividem o país, exacerbam suas contradições e dispersam suas energias.
Enquanto, diante da ameaça exterior, o interesse nacional se une, o interesse geral voa em estilhaços sob a pressão de mil e uma irritações de categorias e de lobbies que as estimulam. A coragem política e a ação do Estado, claras no plano exterior, se encontram no Hexágono como que paralisadas por essas revoltas tribais que surgem de todas as direções.
A crônica cotidiana o demonstra de maneira invejável. Há dez dias foram os produtores bretões de couve-flores e alcachofras que consideraram mais convincente - para melhor fazer escutar sua cólera contra os impostos que os arrasam ou as perturbações do mercado resultantes do embargo russo - incendiar, em Morlaix, o centro de impostos e os locais da assistência social agrícola. Mais uma vez, trata-se de uma dessas revoltas camponesas que provocam, de longa data, uma indulgência incômoda. Apesar de os saques serem indesculpáveis.

Conservadorismos arraigados

Muito mais espetaculares são as rebeliões de privilegiados e de rentistas a que assistimos hoje. Como a dos pilotos da Air France. Durante 14 dias, antes de ceder, eles levaram ao absurdo a defesa de sua posição, que é das mais vantajosas. Indiferentes ao prejuízo causado a sua companhia, suas contas e sua notoriedade, desprezando os sacrifícios já consentidos pelas outras categorias de tripulantes ou pessoal de solo, ignorando as mutações aceleradas do transporte aéreo que fazem do baixo custo sua principal fonte de crescimento, eles realizaram uma greve "corporativista" e "egoísta", segundo o primeiro-ministro. Os termos são violentos; não são falsos.
Quanto aos "rentistas" das profissões regulamentadas, são mais suaves, mas não menos determinados a combater todo questionamento dos estatutos que protegem sua atividade, limitam o acesso a ela e garantem portanto uma boa parte das receitas. Em 15 de setembro foram os oficiais de justiça que se manifestaram. Em 17, os tabeliães os acompanharam. E nesta terça-feira, 30, é o conjunto das profissões judiciárias ou médicas, a começar pelos farmacêuticos, que são chamadas a manifestar sua oposição a qualquer ameaça a sua situação, consolidada há décadas.
É verdade que o ex-ministro da Economia, Arnaud Montebourg, havia ateado fogo à pólvora no início do verão: com base em um relatório polêmico da Inspeção Geral das Finanças, ele havia declarado sua intenção de pôr fim a esses monopólios e reservas de caça que delimitam a atividade e impõem seus preços ao consumidor. Seu sucessor, Emmanuel Macron, aparou as arestas e multiplicou as frases tranquilizadoras, mas não adiantou: em nome dos grandes princípios (segurança médica ou judiciária), cada um defende seus interesses particulares.
Podemos acrescentar os táxis, prestes a ganhar no Parlamento seu braço de ferro com os veículos de turismo com motorista (VTC na sigla em francês) e bloquear a concorrência. Ou ainda os tabaqueiros (e os vendedores de cigarros), decididos a contestar o plano de combate ao tabagismo que a ministra da Saúde acaba de divulgar; sabemos, entretanto, o que isso custa à coletividade.
A lista não é limitante, infelizmente! É também aflitiva e preocupante, de tanto que ela exprime conservadorismos encarniçados. De tanto que reduz a sociedade francesa a um quebra-cabeça de interesses particulares. De tanto que revela um país incapaz de assumir as mutações do presente e de realizar as reformas necessárias para enfrentá-las. 
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Nenhum comentário: