Para o estandarte negro do EI, o medo decorrente dos três atentados da sexta-feira alimentará a sua causa
Dorrit Harazim - O Globo
Uma foi criada com o colorido do arco-íris. Não traz qualquer imagem ou inscrição. Traz embutida a mensagem de diversidade, natureza, afeições. A outra não tem nuances: é de um preto infinito, radical, atemorizante. Suas inscrições em caracteres brancos são ordens de fé.
Quando empunhadas, cada
uma dessas bandeiras move mundos e provoca revoluções. Esta semana ambas
puderam festejar conquistas espetaculares. Do lado colorido, o
histórico voto da Suprema Corte dos Estados Unidos legalizando o
casamento gay em todo o país. Para o estandarte negro do Estado Islâmico
(EI), o medo planetário decorrente dos três atentados da sexta-feira
que, direta ou indiretamente, alimentarão sua causa.
Em 1976, quando tinha 25 anos e morava em San Francisco como drag queen, o artista Gilbert Baker não imaginou que um dia entraria para o ramo da vexilografia, termo que designa a confecção de bandeiras. Por ser o ano em que os Estados Unidos celebravam o bicentenário, era difícil andar três metros sem topar em alguma bandeira americana, e Baker percebeu o poder do símbolo de comunicação tão instantânea. Ocorreu-lhe que o movimento gay precisava de uma por considerá-lo um povo, uma tribo. E viu que bandeiras tinham a ver com proclamação de poder.
Habituado a costurar todos os vestidos que usava e criador titular das faixas e cartazes das marchas pró-direitos gays da época, decidiu assumir a tarefa que lhe consumiu dois anos.
No dia 25 de junho de 1978, o primeiro de dois gigantescos pavilhões arco-íris em algodão natural e tingidos manualmente por 60 mãos foram içados na United Nations Plaza, bem no centro de San Francisco. “Até então, o movimento usava como símbolo um triangulo cor-de-rosa horroroso”, contou em entrevista publicada pela blogueira Maria Popova. “As cores do arco-íris me pareceram combinar com diversidade de raça, gênero, idade e tudo o mais. Nossa tarefa era nos tornarmos visíveis, sairmos da clandestinidade e a bandeira desempenhou essa função. Ela passou a dizer: Isso sou eu”.
Quase quatro décadas depois, o histórico pavilhão mudou de endereço. Foi adquirido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York e, desde a semana passada, passou a integrar o acervo permanente do Departamento de Arquitetura e Design da casa.
“Bandeiras são símbolos inebriantes de orgulho e comunhão, assim como são fagulhas incendiárias e emocionais para quem está do outro lado da barricada”, diz a curadora do departamento, Paola Antonelli, que as considera a forma mais imediata, primal e comunicativa de design, sobretudo quando representam uma longa luta por uma causa real.
Símbolo por símbolo, também o estandarte negro do EI arregimenta em comunhão fervorosa uma tribo que se sente excluída de nações e estados e busca visibilidade. Seu vexilógrafo foi igualmente feliz. Mas os paralelos terminam aí.
A escolha do preto como cor única do autoproclamado califado é um achado: muçulmano de qualquer vertente associa o pano negro de imediato ao pavilhão de guerra empunhado por Maomé — é em reverência ao profeta que uma penca de países árabes tem elementos pretos em suas bandeiras.
“O estandarte negro tanto remete às origens dos jihadistas quanto projeta o futuro que almejam; comprime tempo e espaço”, explicou à revista “Time” o especialista em movimentos fundamentalistas islâmicos do Colégio Nacional de Defesa da Suécia, Magnus Ranstorp. E alertou: “O significado dessa bandeira escapa a muitos observadores mas, para o povo do Oriente Médio, a mensagem é clara: vamos destruir a ordem mundial e substituir as nações-estado criadas pelas potências ocidentais cem anos atrás”.
No início da manhã de sexta-feira, quando o terrorista do atentado na cidadezinha francesa de Saint-Quentin-Fallavier fincou a cabeça decapitada de sua vítima na cerca da fábrica que pretendia explodir, deixou junto uma bandeira preta e branca. Até o final do dia sua linhagem terrorista ainda estava em aberto. Ao meio-dia, quando outro terrorista de bermudas com uma Kalashnikov sob o guarda-sol deu inicio à fuzilaria que deixou mais de 39 mortos no balneário tunisiano de Sousse, também não foi possível fazer a conexão direta com o califado já nas primeiras horas.
Contudo, na matança que interrompeu a segunda oração do Ramadã e fez uma carnificina na mesquita Al-Sadiq, na capital do Kuwait, a autoria foi cristalina.
Enquanto países e líderes mundiais procuram devolver alguma ordem e fazer previsões num mundo que teima em tomar rumo desgovernado, um cenário pelo menos pode ser descartado desde já: o da possibilidade de coexistência entre a bandeira do arco-íris e o estandarte do EI.
Para que um tenha existência plena, o outro precisa deixar de ser o que é. Se a vida é bela, como dizia o título do filme, o mundo precisa ser multicolorido para continuar vivo.
Em 1976, quando tinha 25 anos e morava em San Francisco como drag queen, o artista Gilbert Baker não imaginou que um dia entraria para o ramo da vexilografia, termo que designa a confecção de bandeiras. Por ser o ano em que os Estados Unidos celebravam o bicentenário, era difícil andar três metros sem topar em alguma bandeira americana, e Baker percebeu o poder do símbolo de comunicação tão instantânea. Ocorreu-lhe que o movimento gay precisava de uma por considerá-lo um povo, uma tribo. E viu que bandeiras tinham a ver com proclamação de poder.
Habituado a costurar todos os vestidos que usava e criador titular das faixas e cartazes das marchas pró-direitos gays da época, decidiu assumir a tarefa que lhe consumiu dois anos.
No dia 25 de junho de 1978, o primeiro de dois gigantescos pavilhões arco-íris em algodão natural e tingidos manualmente por 60 mãos foram içados na United Nations Plaza, bem no centro de San Francisco. “Até então, o movimento usava como símbolo um triangulo cor-de-rosa horroroso”, contou em entrevista publicada pela blogueira Maria Popova. “As cores do arco-íris me pareceram combinar com diversidade de raça, gênero, idade e tudo o mais. Nossa tarefa era nos tornarmos visíveis, sairmos da clandestinidade e a bandeira desempenhou essa função. Ela passou a dizer: Isso sou eu”.
Quase quatro décadas depois, o histórico pavilhão mudou de endereço. Foi adquirido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York e, desde a semana passada, passou a integrar o acervo permanente do Departamento de Arquitetura e Design da casa.
“Bandeiras são símbolos inebriantes de orgulho e comunhão, assim como são fagulhas incendiárias e emocionais para quem está do outro lado da barricada”, diz a curadora do departamento, Paola Antonelli, que as considera a forma mais imediata, primal e comunicativa de design, sobretudo quando representam uma longa luta por uma causa real.
Símbolo por símbolo, também o estandarte negro do EI arregimenta em comunhão fervorosa uma tribo que se sente excluída de nações e estados e busca visibilidade. Seu vexilógrafo foi igualmente feliz. Mas os paralelos terminam aí.
A escolha do preto como cor única do autoproclamado califado é um achado: muçulmano de qualquer vertente associa o pano negro de imediato ao pavilhão de guerra empunhado por Maomé — é em reverência ao profeta que uma penca de países árabes tem elementos pretos em suas bandeiras.
“O estandarte negro tanto remete às origens dos jihadistas quanto projeta o futuro que almejam; comprime tempo e espaço”, explicou à revista “Time” o especialista em movimentos fundamentalistas islâmicos do Colégio Nacional de Defesa da Suécia, Magnus Ranstorp. E alertou: “O significado dessa bandeira escapa a muitos observadores mas, para o povo do Oriente Médio, a mensagem é clara: vamos destruir a ordem mundial e substituir as nações-estado criadas pelas potências ocidentais cem anos atrás”.
No início da manhã de sexta-feira, quando o terrorista do atentado na cidadezinha francesa de Saint-Quentin-Fallavier fincou a cabeça decapitada de sua vítima na cerca da fábrica que pretendia explodir, deixou junto uma bandeira preta e branca. Até o final do dia sua linhagem terrorista ainda estava em aberto. Ao meio-dia, quando outro terrorista de bermudas com uma Kalashnikov sob o guarda-sol deu inicio à fuzilaria que deixou mais de 39 mortos no balneário tunisiano de Sousse, também não foi possível fazer a conexão direta com o califado já nas primeiras horas.
Contudo, na matança que interrompeu a segunda oração do Ramadã e fez uma carnificina na mesquita Al-Sadiq, na capital do Kuwait, a autoria foi cristalina.
Enquanto países e líderes mundiais procuram devolver alguma ordem e fazer previsões num mundo que teima em tomar rumo desgovernado, um cenário pelo menos pode ser descartado desde já: o da possibilidade de coexistência entre a bandeira do arco-íris e o estandarte do EI.
Para que um tenha existência plena, o outro precisa deixar de ser o que é. Se a vida é bela, como dizia o título do filme, o mundo precisa ser multicolorido para continuar vivo.
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