O mundo discreto do Juiz Sergio Fernando Moro começou a virar pelo avesso em 11 de julho de 2013, quando ele, instalado em seu gabinete em Curitiba, autorizou a polícia federal a fazer “escuta telefônica e telemática” contra um obscuro doleiro
André Petry - VEJA
Moro acha que, em geral, os magistrados não gostam de colegas que falam demais fora dos autos. Mas, nem por isso, ele fala apenas nos autos. Já se envolveu em movimento contra a corrupção no Paraná e, recentemente, propôs um projeto de lei prevendo a execução da pena após confirmação da sentença em segunda instância.(Vanessa Carvalho/Folhapress)
As mais poderosas bancas de advogados têm lutado com fervor e verve
contra Moro. No país da impunidade, os advogados chegam a falar de
"ciclo de punitivismo". Acusam-no de ser parcial. De fazer "pedaladas
jurídicas". De prender suspeitos para arrancar delações. De odiar os
advogados, ele que é casado com uma advogada. Com ironia, um deles diz
que os julgamentos de Moro têm uma base jurídica toda própria, o "Código
de Processo Penal de Curitiba". Mas, apesar das críticas, de cada 100
recursos impetrados por advogados de acusados na Lava-Jato contra
decisões de Moro, 97 têm sido derrotados. É um placar brutal.
Aos que o acusam de concentrar culpas nos empreiteiros, aliviando a barra dos agentes públicos, Moro rebate lembrando as preventivas que decretou contra ex-diretores da Petrobras e ex-deputados. No mesmo contexto, ao falar do papel do Estado na economia, sustenta: "A responsabilização de agentes públicos ou privados culpados por corrupção favorece tanto o Estado como o mercado, sem nenhuma distinção".
A responsabilidade dos empresários, diz Moro, está demonstrada "com muita singeleza". No caso da Mendes Júnior, por exemplo, a empreiteira alegou que não corrompeu ninguém e só pagou propina porque foi extorquida. Moro não deixou passar: "Quem é extorquido procura a polícia, e não o mundo das sombras". Lembrou que, mesmo depois da saída da Petrobras do agente público que estaria extorquindo, a empresa continuou pagando-lhe as parcelas que faltavam da propina. De novo, Moro cravou: "Quem é vítima de extorsão não honra compromissos de pagamento com o algoz". Por fim, transcreveu trecho do interrogatório do empresário Julio Camargo, que fez delação premiada. Indagado por que nenhum empreiteiro denunciou a extorsão, Camargo respondeu:
- Ah, doutor, porque na verdade o mercado em geral estava contente, satisfeito com aquilo que estava acontecendo. (...) Então, vai denunciar para quê?
Foi essa a explicação que Moro considerou ter sido dada "com muita singeleza".
Apesar das frequentes menções de Moro à Operação Mãos Limpas, faxina anticorrupção da Itália nos anos 90, a fonte mais farta de sua inspiração jurídica é a Justiça americana. Nela, admira sobretudo a eficácia: julga, condena e prende. Ou absolve. Sem delongas, preliminares infindáveis, cascatas de recursos. Nas palestras, Moro gosta de lembrar que nos EUA de 80% a 90% dos casos penais terminam em acordo. O acusado, ciente de que há prova pujante contra si, assume que é culpado em troca de pena menor. Isso evita o custo do processo e dá agilidade à Justiça.
Foi na Justiça americana que Moro buscou um instituto que, na Lava-Jato, pode acabar colocando gente graúda na cadeia: a "cegueira deliberada". No direito americano, a doutrina, conhecida por willful blindness, foi criada pela Suprema Corte. Refere-se a quem se comporta como um avestruz, enterrando a cabeça para, propositadamente, não enxergar um crime - e dele tirar algum proveito. Em setembro passado, Moro condenou réus da Lava-Jato que concordaram em fazer transações financeiras em nome de empreiteiras da Petrobras, tendo preferido não conhecer a origem do dinheiro. Como a doutrina da "cegueira deliberada" é uma inovação no direito brasileiro, advogados de defesa protestaram ruidosamente. Em outubro, Moro condenou o assessor de um deputado que emprestou sua conta bancária ao parlamentar. Entendeu que o funcionário escolhera fechar os olhos à evidência de que o deputado estava metido em roubalheiras, dado que ninguém pede a conta bancária de outros apenas para mudar de rotina.
Nos casos de lavagem de dinheiro, Moro já calçou várias condenações numa decisão tomada em 2001 pela corte de apelações dos estados da Geórgia, Flórida e Alabama. Nela, os juízes americanos condenaram o réu por lavagem de dinheiro diante da prova de que seu cliente era um narcotraficante. Entenderam que essa prova era suficiente para concluir que as transações do réu com seu cliente envolviam bens contaminados pelo crime. A Justiça espanhola também tomou decisões semelhantes. Moro bebeu na fonte americana e na espanhola. Fica claro que ele se empenha na condenação do réu quando está convencido da culpa. Nem sempre consegue, como admitiu recentemente: "Já absolvi pessoas que no meu íntimo considerava culpadas".
Moro acha que, em geral, os magistrados não gostam de colegas que falam demais fora dos autos. Chamam esse desvio de comportamento de "gilmarismo", numa referência ao falante ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mas, nem por isso, Moro fala apenas nos autos. Já se envolveu em movimento contra a corrupção no Paraná e, recentemente, propôs um projeto de lei, em tramitação no Senado, prevendo a execução da pena após confirmação da sentença em segunda instância. Hoje, o condenado só começa a cumprir pena depois que a sentença percorreu todas as instâncias possíveis, o que quase sempre leva anos. Com isso, Moro acha que o Brasil poderá evitar que a Lava-Jato resulte na frustração da Operação Mãos Limpas na Itália, que derrubou as duas principais legendas, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, mas acabou abrindo lugar à ascensão de um fanfarrão como Silvio Berlusconi, graduado nas mesmas negociatas que a faxina pretendeu varrer. Isso aconteceu, na opinião de Moro, porque a Itália, entre outras coisas, não reformou seu sistema processual, que, como o brasileiro, admite recursos a perder de vista.
Outra modalidade do ativismo de Moro é pregar para não convertidos. Em agosto, ele fez palestra no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCrim, entidade que condena fortemente os métodos de Moro. O juiz falou, colheu uns bons aplausos e ainda rendeu uma piada de aliados: "Eles são do IBCCrim, o Moro é do IBCCrau". Mas, mesmo nos autos, Moro não deixa de promover aquilo em que acredita. Em agosto de 2008, até despachou cópia de sua sentença para uma CPI que, em Brasília, discutia interceptações telefônicas. Como a sentença tratava do mesmo assunto, Moro queria fazer sua visão chegar aos parlamentares, como, aliás, deveria ser prática de todos os juízes. Moro defende a ideia de que a duração de um grampo telefônico não deve ser previamente delimitada por lei. Na sentença que enviou para Brasília, dizia que autorizara a interceptação telefônica de criminosos durante um ano inteiro e o trabalho rendera ótimos frutos: doze apreensões de drogas e armas, além de provas do crime.
Em sua tese de pós-graduação, convertida em livro em 2004, Moro não esconde que é mais favorável ao ativismo judicial do que à autocontenção. Tem predileção pelos juízes que usam sua interpretação da Constituição para "exercer relevante papel no rompimento de inércias incompatíveis com o ideal democrático". Por isso, é um admirador do juiz Earl Warren, que considera "o maior presidente da Suprema Corte americana do século XX". Ou seja: Moro prefere os juízes que se comportam como defensores ativos dos princípios da democracia. Que agem imbuídos de uma missão. Já escreveu, para espanto de juristas mais conservadores, que faltam à magistratura brasileira "interpretações judiciais criativas". Nos EUA, sua visão do papel do juiz o colocaria ao lado dos magistrados democratas, em franca oposição aos republicanos, que são visceralmente contrários ao ativismo jurídico.
O zelo de Moro pela democracia parece ter sido reforçado na Lava-Jato, mas não surgiu aí. Vem de antes. Em três de seus livros, o juiz mostra-se preocupado com a construção do regime democrático e com o combate ao crime, sobretudo o do colarinho-branco, que interfere no processo eleitoral. Em sentença ainda sobre o caso Banestado, censurou severamente um grupo de empresários que fraudara empréstimos de 7,3 milhões de reais junto ao banco para jogar a dinheirama na campanha eleitoral de 1998. A certa altura, Moro escreveu: "Tal fato é extremamente reprovável, considerando os males causados pela criação e manutenção de esquemas paralelos de doações eleitorais em um regime democrático e que levam à distorção do sistema de eleições livres".
Moro é um juiz atento à corrupção, à ética na vida pública, à qualidade dos homens públicos brasileiros. Impressiona-se, sobretudo, com a incrível resistência dos políticos que enfrentam marés de lama sem abandonar a carreira nem perder o mandato. Em uma de suas sentenças mais longas, de 245 páginas, na qual condenou o ex-tesoureiro do PT João Vaccari, Moro escreveu que considera o enriquecimento ilícito dos agentes públicos um crime menos grave do que a contaminação da política pelo crime. Na decisão em que pediu a prisão preventiva de José Carlos Bumlai, o empresário amigo do ex-presidente Lula, Moro reforçou essa visão: "O mundo da política e o do crime não deveriam jamais se misturar". Nessa sentença, num sinal de que está cada vez mais à vontade em seu ofício e com clareza de objetivos, Moro ainda se permitiu uma ironia. Como Bumlai anda por aí dizendo que fala em nome de Lula, Moro escreveu que a prisão preventiva do empresário pretendia, entre outros motivos, "estancar o potencial de danos à reputação do ex-presidente". É impossível, já diz o ditado popular, decifrar a cabeça de um juiz. Mas, no caso de Moro, quem esperar moleza certamente vai quebrar a cara.
Aos que o acusam de concentrar culpas nos empreiteiros, aliviando a barra dos agentes públicos, Moro rebate lembrando as preventivas que decretou contra ex-diretores da Petrobras e ex-deputados. No mesmo contexto, ao falar do papel do Estado na economia, sustenta: "A responsabilização de agentes públicos ou privados culpados por corrupção favorece tanto o Estado como o mercado, sem nenhuma distinção".
A responsabilidade dos empresários, diz Moro, está demonstrada "com muita singeleza". No caso da Mendes Júnior, por exemplo, a empreiteira alegou que não corrompeu ninguém e só pagou propina porque foi extorquida. Moro não deixou passar: "Quem é extorquido procura a polícia, e não o mundo das sombras". Lembrou que, mesmo depois da saída da Petrobras do agente público que estaria extorquindo, a empresa continuou pagando-lhe as parcelas que faltavam da propina. De novo, Moro cravou: "Quem é vítima de extorsão não honra compromissos de pagamento com o algoz". Por fim, transcreveu trecho do interrogatório do empresário Julio Camargo, que fez delação premiada. Indagado por que nenhum empreiteiro denunciou a extorsão, Camargo respondeu:
- Ah, doutor, porque na verdade o mercado em geral estava contente, satisfeito com aquilo que estava acontecendo. (...) Então, vai denunciar para quê?
Foi essa a explicação que Moro considerou ter sido dada "com muita singeleza".
Apesar das frequentes menções de Moro à Operação Mãos Limpas, faxina anticorrupção da Itália nos anos 90, a fonte mais farta de sua inspiração jurídica é a Justiça americana. Nela, admira sobretudo a eficácia: julga, condena e prende. Ou absolve. Sem delongas, preliminares infindáveis, cascatas de recursos. Nas palestras, Moro gosta de lembrar que nos EUA de 80% a 90% dos casos penais terminam em acordo. O acusado, ciente de que há prova pujante contra si, assume que é culpado em troca de pena menor. Isso evita o custo do processo e dá agilidade à Justiça.
Foi na Justiça americana que Moro buscou um instituto que, na Lava-Jato, pode acabar colocando gente graúda na cadeia: a "cegueira deliberada". No direito americano, a doutrina, conhecida por willful blindness, foi criada pela Suprema Corte. Refere-se a quem se comporta como um avestruz, enterrando a cabeça para, propositadamente, não enxergar um crime - e dele tirar algum proveito. Em setembro passado, Moro condenou réus da Lava-Jato que concordaram em fazer transações financeiras em nome de empreiteiras da Petrobras, tendo preferido não conhecer a origem do dinheiro. Como a doutrina da "cegueira deliberada" é uma inovação no direito brasileiro, advogados de defesa protestaram ruidosamente. Em outubro, Moro condenou o assessor de um deputado que emprestou sua conta bancária ao parlamentar. Entendeu que o funcionário escolhera fechar os olhos à evidência de que o deputado estava metido em roubalheiras, dado que ninguém pede a conta bancária de outros apenas para mudar de rotina.
Nos casos de lavagem de dinheiro, Moro já calçou várias condenações numa decisão tomada em 2001 pela corte de apelações dos estados da Geórgia, Flórida e Alabama. Nela, os juízes americanos condenaram o réu por lavagem de dinheiro diante da prova de que seu cliente era um narcotraficante. Entenderam que essa prova era suficiente para concluir que as transações do réu com seu cliente envolviam bens contaminados pelo crime. A Justiça espanhola também tomou decisões semelhantes. Moro bebeu na fonte americana e na espanhola. Fica claro que ele se empenha na condenação do réu quando está convencido da culpa. Nem sempre consegue, como admitiu recentemente: "Já absolvi pessoas que no meu íntimo considerava culpadas".
Moro acha que, em geral, os magistrados não gostam de colegas que falam demais fora dos autos. Chamam esse desvio de comportamento de "gilmarismo", numa referência ao falante ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mas, nem por isso, Moro fala apenas nos autos. Já se envolveu em movimento contra a corrupção no Paraná e, recentemente, propôs um projeto de lei, em tramitação no Senado, prevendo a execução da pena após confirmação da sentença em segunda instância. Hoje, o condenado só começa a cumprir pena depois que a sentença percorreu todas as instâncias possíveis, o que quase sempre leva anos. Com isso, Moro acha que o Brasil poderá evitar que a Lava-Jato resulte na frustração da Operação Mãos Limpas na Itália, que derrubou as duas principais legendas, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, mas acabou abrindo lugar à ascensão de um fanfarrão como Silvio Berlusconi, graduado nas mesmas negociatas que a faxina pretendeu varrer. Isso aconteceu, na opinião de Moro, porque a Itália, entre outras coisas, não reformou seu sistema processual, que, como o brasileiro, admite recursos a perder de vista.
Outra modalidade do ativismo de Moro é pregar para não convertidos. Em agosto, ele fez palestra no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCrim, entidade que condena fortemente os métodos de Moro. O juiz falou, colheu uns bons aplausos e ainda rendeu uma piada de aliados: "Eles são do IBCCrim, o Moro é do IBCCrau". Mas, mesmo nos autos, Moro não deixa de promover aquilo em que acredita. Em agosto de 2008, até despachou cópia de sua sentença para uma CPI que, em Brasília, discutia interceptações telefônicas. Como a sentença tratava do mesmo assunto, Moro queria fazer sua visão chegar aos parlamentares, como, aliás, deveria ser prática de todos os juízes. Moro defende a ideia de que a duração de um grampo telefônico não deve ser previamente delimitada por lei. Na sentença que enviou para Brasília, dizia que autorizara a interceptação telefônica de criminosos durante um ano inteiro e o trabalho rendera ótimos frutos: doze apreensões de drogas e armas, além de provas do crime.
Em sua tese de pós-graduação, convertida em livro em 2004, Moro não esconde que é mais favorável ao ativismo judicial do que à autocontenção. Tem predileção pelos juízes que usam sua interpretação da Constituição para "exercer relevante papel no rompimento de inércias incompatíveis com o ideal democrático". Por isso, é um admirador do juiz Earl Warren, que considera "o maior presidente da Suprema Corte americana do século XX". Ou seja: Moro prefere os juízes que se comportam como defensores ativos dos princípios da democracia. Que agem imbuídos de uma missão. Já escreveu, para espanto de juristas mais conservadores, que faltam à magistratura brasileira "interpretações judiciais criativas". Nos EUA, sua visão do papel do juiz o colocaria ao lado dos magistrados democratas, em franca oposição aos republicanos, que são visceralmente contrários ao ativismo jurídico.
O zelo de Moro pela democracia parece ter sido reforçado na Lava-Jato, mas não surgiu aí. Vem de antes. Em três de seus livros, o juiz mostra-se preocupado com a construção do regime democrático e com o combate ao crime, sobretudo o do colarinho-branco, que interfere no processo eleitoral. Em sentença ainda sobre o caso Banestado, censurou severamente um grupo de empresários que fraudara empréstimos de 7,3 milhões de reais junto ao banco para jogar a dinheirama na campanha eleitoral de 1998. A certa altura, Moro escreveu: "Tal fato é extremamente reprovável, considerando os males causados pela criação e manutenção de esquemas paralelos de doações eleitorais em um regime democrático e que levam à distorção do sistema de eleições livres".
Moro é um juiz atento à corrupção, à ética na vida pública, à qualidade dos homens públicos brasileiros. Impressiona-se, sobretudo, com a incrível resistência dos políticos que enfrentam marés de lama sem abandonar a carreira nem perder o mandato. Em uma de suas sentenças mais longas, de 245 páginas, na qual condenou o ex-tesoureiro do PT João Vaccari, Moro escreveu que considera o enriquecimento ilícito dos agentes públicos um crime menos grave do que a contaminação da política pelo crime. Na decisão em que pediu a prisão preventiva de José Carlos Bumlai, o empresário amigo do ex-presidente Lula, Moro reforçou essa visão: "O mundo da política e o do crime não deveriam jamais se misturar". Nessa sentença, num sinal de que está cada vez mais à vontade em seu ofício e com clareza de objetivos, Moro ainda se permitiu uma ironia. Como Bumlai anda por aí dizendo que fala em nome de Lula, Moro escreveu que a prisão preventiva do empresário pretendia, entre outros motivos, "estancar o potencial de danos à reputação do ex-presidente". É impossível, já diz o ditado popular, decifrar a cabeça de um juiz. Mas, no caso de Moro, quem esperar moleza certamente vai quebrar a cara.
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