C. J. Chivers - NYT
Bryan Denton/The New York Times
9.mar.2012 - Hassan Aboud (esq) e Abu Ayman em Sarmin, na Síria
A voz de barítono de Hassan Aboud disfarçava a malevolência de suas
palavras. "Oh Darraji!", cantava. "Nosso Estado nos deu munição e nos
enviou para assassinar vocês."
Esse Estado é o autoproclamado
Estado Islâmico (EI), o grupo terrorista que controla parte do
território da Síria e do Iraque e recentemente projetou sua violência
até Ancara, Beirute, Paris e San Bernardino, na Califórnia.
Um
duplo amputado de fala macia que às vezes é carregado às reuniões por
colegas pistoleiros, Aboud é um comandante do EI que também dirige uma
rede de assassinos, incluindo os que mataram Darraji, um ex-subordinado,
com tiros e fogo.
A gravação de seu canto circulou entre antigos parceiros este ano. Um réquiem assustador, que serve como prova e confissão. Aboud, que desertou dos rebeldes sírios para o grupo terrorista em 2014, estava admitindo o assassinato ainda não solucionado de ex-amigos.
"Arrancamos a cabeça de Adeeb Abbas", continuou ele, citando outro de seus antigos asseclas, que explodiu sobre uma motocicleta em uma estrada. "Espalhamos seu sangue imundo."
Então ele prometeu matar mais, enquanto um coro masculino entoava para os marcados para morrer: "Vamos liquidar todos os traidores".
Desde que alcançou proeminência como ameaça internacional, o EI tenta glorificar seus membros, descrevendo-os como guerreiros religiosos que pegaram em armas para proteger outros muçulmanos sunitas e espalhar sua visão de Deus. Mas a jornada de Aboud, e seu recrutamento pelo EI, inclusive com dinheiro, parte de roteiros que enfatizam a religiosidade ou a defesa civil.
É a crônica de um combatente subterrâneo, ferido e obscurecido por sua longa luta, a biografia --cheia de rivalidades e fratricídio-- de um comandante islamista tarimbado e outrora apreciado cujos atos se tornaram mais violentos e vingativos conforme ele penetrou na órbita do EI.
Aboud, segundo seus ex-vizinhos e parceiros, abandonou a defesa de sua cidade natal por dinheiro, poder e a licença de imoralidade que veio com a adesão ao Estado Islâmico. Seu caminho não parecia os arcos pintados com aerógrafo da propaganda jihadista, mas uma história da máfia do Oriente Médio e os efeitos corruptores da guerra.
O trajeto das fileiras subalternas da jihad a uma figura temida do subterrâneo foi moldado por diversas forças. Elas incluem a invasão americana do Iraque em 2003 e a opressão da população muçulmana sunita que vivia na fronteira pelos governos de Damasco e de Bagdá. Foi instigado pela matança indiscriminada de civis pelas forças de segurança sírias desde 2011, depois canalizado pela paciente trama de um grupo jihadista, antes estilhaçado, que se reanimou para eclipsar a Al Qaeda.
Em última instância, sua corte ao EI oferece uma visão incomumente detalhada de como o grupo escolheu comandantes de uma região que produziu inúmeros militantes desde 2003. Esses homens escolhidos, seduzidos por presentes e pelo prestígio sombrio do EI, mantêm o terreno necessário para sustentar sua alegação de ser um califado.
Jornalistas de "The New York Times" se encontraram com Aboud na Síria em 2013, quando ele liderava o assédio a posições isoladas do Exército que disparavam morteiros contra a população civil próxima. Foi uma luta que ele e as centenas de rebeldes que ele liderava, conhecidos como Brigada Dawood, acabaram vencendo.
Sarmin, a cidade nas planícies da província de Idlib onde ele montou o quartel-general de sua brigada, também sofria constantes bombardeios, e ele se movimentava e aceitava reuniões com muito mais cautela que muitos comandantes rebeldes.
A entrevista foi arranjada pelo genro de seu chefe, mas os seguidores de Aboud fizeram todos esperarem no porão de uma mesquita durante parte da tarde antes de levar o grupo a um prédio abandonado na cidade parcialmente evacuada e marcada pela batalha.
Aboud foi trazido às pressas para dentro por seus carregaodres. Tinha perdido combatentes na batalha da véspera e parecia cansado e desconfiado de seus visitantes. Suas calças cinza tinham sido dobradas duas vezes para esconder os tocos das pernas, que ele cruzou à frente quando se sentou sobre uma almofada. Ele iniciou a conversa em voz baixa, e ameaçou matar os jornalistas se o citassem erroneamente.
Abu Ayman, um fabricante de bombas que ajudou a carregá-lo até a sala, falava mais que Aboud, que escolhia as palavras com cuidado, mesmo quando repetia os clichês islamistas.
Ele se queixou das atividades de muitos rebeldes seculares, descrevendo-os como oportunistas e aproveitadores. "Há brigadas do Exército Livre da Síria", disse Aboud, que recebem armas e as "vendem no comércio". Ele afirmou, novamente com a voz suave, que a Síria está sendo mergulhada na guerra sectária pelo Irã e os que o apoiam, incluindo o governo sírio e o Hizbollah.
"O Irã está tentando restabelecer o império persa, para controlar todo o Oriente Médio", explicou ele.
Imediatamente depois da conversa, ele foi apanhado e carregado rapidamente para fora e colocado no banco dianteiro de um veículo utilitário-esportivo enlameado que saiu acelerado.
O "Times" voltou à fronteira turco-síria depois de sua deserção e mortes por vingança, para entrevistar os que trabalhavam estreitamente com Aboud.
Hoje com 30 e poucos anos, ele é um exilado de Sarmin, onde viveu a maior parte de sua vida adulta. Os ex-parceiros se referem a ele como um "wali" ou emir do EI, títulos que representam autoridade ou poder militar que o EI concede a governadores e seus membros de médio escalão.
Aboud e um de seus
irmãos lutaram contra forças americanas lá em 2004 e 2005, segundo
vários moradores da aldeia. Alguns sugeriram que a dupla voltou à Síria
como uma célula dormente ligada à Al Qaeda no Iraque, que foi fundada
por Abu Musab al-Zarqawi e que depois de sua morte, em 2006, acabou se
tornando o Estado Islâmico.
Em quase um ano e meio desde que Aboud aderiu publicamente ao EI, levando consigo a maioria de seus combatentes e muitas armas poderosas, ele foi creditado por, ou acusado de, uma ampla mistura de ação em batalha e crimes. Os que o conhecem afirma que ele liderou a captura de Palmyra, a cidade e antigo Patrimônio da Humanidade que o EI destruiu.
Apesar de toda a atividade de Aboud, porém, sua história sugere limites ao avanço dentro do grupo, que segundo analistas permanece liderado majoritariamente por iraquianos, incluindo muitos ligados ao regime desmantelado de Saddam Hussein.
Hassan al-Dugheim, um clérigo rebelde que disse ter observado Aboud desde 2011, afirmou que sua habilidade tática e sua crueldade estão fora de questão. Ele acrescentou, porém, que considera Aboud estúpido, e que o EI encontrou nele um homem que podia ser bajulado, comprado e usado.
"Os sírios são a favor da luta", explicou ele, e os que aderiram ao EI recentemente encontraram lá um telhado de vidro. "São como animais a ser cavalgados, como um cavalo ou uma mula."
Desde que Aboud chegou a Raqqa em 2014, seus parceiros contaram que tiveram apenas uma visão superficial de sua vida de militante. Eles comentam que o EI é um sistema tão fechado que pouco se sabe mesmo sobre Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do EI, e a origem de seu poder.
Aboud e sua brigada, depois que ele desertou, reduziram sua presença nas redes sociais e suas entrevistas. Suas atividades foram organizadas aos poucos, segundo disseram.
Uma aparição de Aboud ocorreu em junho em Palmyra. O ativista Khaled al-Homis, que esteve preso lá brevemente, contou que Aboud percorreu a prisão de muletas. "Ele me encontrou em privado em uma sala para me convencer a jurar fidelidade", contou.
Depois que o EI consolidou o controle de Palmyra, acrescentou, parte das equipes nos tribunais eram da Brigada Dawood, sugerindo que Aboud estava tentando governar.
Esforços para encontrar Aboud neste outono não tiveram sucesso. Mas ex-parceiros dele disseram acreditar que ele falharia nessas aspirações.
Ahmed al-Aasi, um ativista do Ahrar al-Sham, um grande grupo de combate islamista, afirmou que o papel de Aboud era óbvio --como um agente policial, um instrumento da violência proposital para ajudar o EI a ganhar território e governar pelo medo. "Com o EI não há limites, e você pode sequestrar e matar quem você quiser", disse ele. "Hassan Aboud não tem problema para matar. Ele gosta."
O ex-aliado dos rebeldes, segundo ele, "está doente da cabeça".
Um oficial militar dos EUA que analisa o EI contou que sob a pressão dos ataques aéreos e das lutas internas membros com títulos como emir e wali agora ganham poder por meio de disputas, e não por competência. "Vemos o baralho se misturar constantemente, enquanto eles tentam determinar quem vai ocupar uma função que ficou vaga", explicou ele, sendo "vaga" um eufemismo para uma morte.
Seja qual for o eventual destino de Aboud, um parente que pediu o anonimato para não sofrer retaliação disse que grande parte do legado já é conhecida. A gravação da canção de Aboud --em tom frio enquanto ele descreve a matança de antigos amigos-- foi um sinal de um homem perdido para o crime, uma revolução rançosa e um povo traído.
"Sua violência, os assassinatos, a chacina de pessoas --ele realmente está por trás disso", afirmou ele. "Agora está uma confusão, tudo o que temos é uma confusão."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
A gravação de seu canto circulou entre antigos parceiros este ano. Um réquiem assustador, que serve como prova e confissão. Aboud, que desertou dos rebeldes sírios para o grupo terrorista em 2014, estava admitindo o assassinato ainda não solucionado de ex-amigos.
"Arrancamos a cabeça de Adeeb Abbas", continuou ele, citando outro de seus antigos asseclas, que explodiu sobre uma motocicleta em uma estrada. "Espalhamos seu sangue imundo."
Então ele prometeu matar mais, enquanto um coro masculino entoava para os marcados para morrer: "Vamos liquidar todos os traidores".
Desde que alcançou proeminência como ameaça internacional, o EI tenta glorificar seus membros, descrevendo-os como guerreiros religiosos que pegaram em armas para proteger outros muçulmanos sunitas e espalhar sua visão de Deus. Mas a jornada de Aboud, e seu recrutamento pelo EI, inclusive com dinheiro, parte de roteiros que enfatizam a religiosidade ou a defesa civil.
É a crônica de um combatente subterrâneo, ferido e obscurecido por sua longa luta, a biografia --cheia de rivalidades e fratricídio-- de um comandante islamista tarimbado e outrora apreciado cujos atos se tornaram mais violentos e vingativos conforme ele penetrou na órbita do EI.
Aboud, segundo seus ex-vizinhos e parceiros, abandonou a defesa de sua cidade natal por dinheiro, poder e a licença de imoralidade que veio com a adesão ao Estado Islâmico. Seu caminho não parecia os arcos pintados com aerógrafo da propaganda jihadista, mas uma história da máfia do Oriente Médio e os efeitos corruptores da guerra.
O trajeto das fileiras subalternas da jihad a uma figura temida do subterrâneo foi moldado por diversas forças. Elas incluem a invasão americana do Iraque em 2003 e a opressão da população muçulmana sunita que vivia na fronteira pelos governos de Damasco e de Bagdá. Foi instigado pela matança indiscriminada de civis pelas forças de segurança sírias desde 2011, depois canalizado pela paciente trama de um grupo jihadista, antes estilhaçado, que se reanimou para eclipsar a Al Qaeda.
Em última instância, sua corte ao EI oferece uma visão incomumente detalhada de como o grupo escolheu comandantes de uma região que produziu inúmeros militantes desde 2003. Esses homens escolhidos, seduzidos por presentes e pelo prestígio sombrio do EI, mantêm o terreno necessário para sustentar sua alegação de ser um califado.
Jornalistas de "The New York Times" se encontraram com Aboud na Síria em 2013, quando ele liderava o assédio a posições isoladas do Exército que disparavam morteiros contra a população civil próxima. Foi uma luta que ele e as centenas de rebeldes que ele liderava, conhecidos como Brigada Dawood, acabaram vencendo.
Sarmin, a cidade nas planícies da província de Idlib onde ele montou o quartel-general de sua brigada, também sofria constantes bombardeios, e ele se movimentava e aceitava reuniões com muito mais cautela que muitos comandantes rebeldes.
A entrevista foi arranjada pelo genro de seu chefe, mas os seguidores de Aboud fizeram todos esperarem no porão de uma mesquita durante parte da tarde antes de levar o grupo a um prédio abandonado na cidade parcialmente evacuada e marcada pela batalha.
Aboud foi trazido às pressas para dentro por seus carregaodres. Tinha perdido combatentes na batalha da véspera e parecia cansado e desconfiado de seus visitantes. Suas calças cinza tinham sido dobradas duas vezes para esconder os tocos das pernas, que ele cruzou à frente quando se sentou sobre uma almofada. Ele iniciou a conversa em voz baixa, e ameaçou matar os jornalistas se o citassem erroneamente.
Abu Ayman, um fabricante de bombas que ajudou a carregá-lo até a sala, falava mais que Aboud, que escolhia as palavras com cuidado, mesmo quando repetia os clichês islamistas.
Ele se queixou das atividades de muitos rebeldes seculares, descrevendo-os como oportunistas e aproveitadores. "Há brigadas do Exército Livre da Síria", disse Aboud, que recebem armas e as "vendem no comércio". Ele afirmou, novamente com a voz suave, que a Síria está sendo mergulhada na guerra sectária pelo Irã e os que o apoiam, incluindo o governo sírio e o Hizbollah.
"O Irã está tentando restabelecer o império persa, para controlar todo o Oriente Médio", explicou ele.
Imediatamente depois da conversa, ele foi apanhado e carregado rapidamente para fora e colocado no banco dianteiro de um veículo utilitário-esportivo enlameado que saiu acelerado.
O "Times" voltou à fronteira turco-síria depois de sua deserção e mortes por vingança, para entrevistar os que trabalhavam estreitamente com Aboud.
Hoje com 30 e poucos anos, ele é um exilado de Sarmin, onde viveu a maior parte de sua vida adulta. Os ex-parceiros se referem a ele como um "wali" ou emir do EI, títulos que representam autoridade ou poder militar que o EI concede a governadores e seus membros de médio escalão.
Conheça rotina e regras de territórios dominados pelo Estado Islâmico
Em
foto de 14 de janeiro de 2015, militantes do Estado Islâmico jogam um
homem acusado de ser homossexual de um edifício, na província de
Hassakeh, na Síria AP
Eles comentam que Aboud não derivou simplesmente para o EI; ele teve
uma relação com os insurgentes sunitas subterrâneos originais, na
província iraquiana de Anbar, parte do cadinho onde se formou o Estado
Islâmico, que remonta a mais de uma década.
Em quase um ano e meio desde que Aboud aderiu publicamente ao EI, levando consigo a maioria de seus combatentes e muitas armas poderosas, ele foi creditado por, ou acusado de, uma ampla mistura de ação em batalha e crimes. Os que o conhecem afirma que ele liderou a captura de Palmyra, a cidade e antigo Patrimônio da Humanidade que o EI destruiu.
Apesar de toda a atividade de Aboud, porém, sua história sugere limites ao avanço dentro do grupo, que segundo analistas permanece liderado majoritariamente por iraquianos, incluindo muitos ligados ao regime desmantelado de Saddam Hussein.
Hassan al-Dugheim, um clérigo rebelde que disse ter observado Aboud desde 2011, afirmou que sua habilidade tática e sua crueldade estão fora de questão. Ele acrescentou, porém, que considera Aboud estúpido, e que o EI encontrou nele um homem que podia ser bajulado, comprado e usado.
"Os sírios são a favor da luta", explicou ele, e os que aderiram ao EI recentemente encontraram lá um telhado de vidro. "São como animais a ser cavalgados, como um cavalo ou uma mula."
Desde que Aboud chegou a Raqqa em 2014, seus parceiros contaram que tiveram apenas uma visão superficial de sua vida de militante. Eles comentam que o EI é um sistema tão fechado que pouco se sabe mesmo sobre Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do EI, e a origem de seu poder.
Aboud e sua brigada, depois que ele desertou, reduziram sua presença nas redes sociais e suas entrevistas. Suas atividades foram organizadas aos poucos, segundo disseram.
Uma aparição de Aboud ocorreu em junho em Palmyra. O ativista Khaled al-Homis, que esteve preso lá brevemente, contou que Aboud percorreu a prisão de muletas. "Ele me encontrou em privado em uma sala para me convencer a jurar fidelidade", contou.
Depois que o EI consolidou o controle de Palmyra, acrescentou, parte das equipes nos tribunais eram da Brigada Dawood, sugerindo que Aboud estava tentando governar.
Esforços para encontrar Aboud neste outono não tiveram sucesso. Mas ex-parceiros dele disseram acreditar que ele falharia nessas aspirações.
Ahmed al-Aasi, um ativista do Ahrar al-Sham, um grande grupo de combate islamista, afirmou que o papel de Aboud era óbvio --como um agente policial, um instrumento da violência proposital para ajudar o EI a ganhar território e governar pelo medo. "Com o EI não há limites, e você pode sequestrar e matar quem você quiser", disse ele. "Hassan Aboud não tem problema para matar. Ele gosta."
O ex-aliado dos rebeldes, segundo ele, "está doente da cabeça".
Um oficial militar dos EUA que analisa o EI contou que sob a pressão dos ataques aéreos e das lutas internas membros com títulos como emir e wali agora ganham poder por meio de disputas, e não por competência. "Vemos o baralho se misturar constantemente, enquanto eles tentam determinar quem vai ocupar uma função que ficou vaga", explicou ele, sendo "vaga" um eufemismo para uma morte.
Seja qual for o eventual destino de Aboud, um parente que pediu o anonimato para não sofrer retaliação disse que grande parte do legado já é conhecida. A gravação da canção de Aboud --em tom frio enquanto ele descreve a matança de antigos amigos-- foi um sinal de um homem perdido para o crime, uma revolução rançosa e um povo traído.
"Sua violência, os assassinatos, a chacina de pessoas --ele realmente está por trás disso", afirmou ele. "Agora está uma confusão, tudo o que temos é uma confusão."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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