sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Relatório aumenta mistério sobre operação francesa que matou mentor de ataques
Um documento ao qual o "Le Monde" teve acesso traz poucas respostas sobre as circunstâncias do ataque
Stéphanie Marteau, Simon Piel e Soren Seelow - Le Monde
Christophe Ena/AP
19.nov.2015 - Destruição causada no prédio onde ocorreu a operação, em Saint-Denis19.nov.2015 - Destruição causada no prédio onde ocorreu a operação, em Saint-Denis
Uma rua repleta de entulho, vidro e madeira proveniente das janelas do prédio de Saint-Denis onde ocorreu o ataque, e várias porcas, que provavelmente estavam em um cinturão explosivo acionado por um dos homens escondidos.
Mas também muitos pedaços de corpos. De um lado, "uma cabeça humana ainda ligada a um pedaço de coluna vertebral". De outro, "um pedaço de rosto" com uma barba por fazer. Mais adiante, um dente humano, um molho de chaves, um livro escrito em árabe e um teclado de computador quebrado.
A violência do ataque conduzido pelo RAID [unidade tática de elite da polícia francesa], no dia 18 de novembro às 4h15, contra os ocupantes do apartamento da rua do Corbillon, onde estava escondido Abdelhamid Abaaoud, o suposto coordenador dos atentados de 13 de novembro, foi tão grande que a polícia judiciária só conseguiu começar seu levantamento às 14h. Ou seja, quase três horas após o fim das operações conduzidas pelo RAID. O prédio ameaçava desabar "após o uso de explosivos pelas forças de ordem e pelos ocupantes do prédio", eles observaram em um relatório ao qual o "Le Monde" teve acesso.
Ao mesmo tempo, uma outra equipe inspecionava o pátio interno do prédio e os apartamentos vizinhos. No segundo andar, os investigadores descobriram em uma sala um corpo sem vida—o de Abdelhamid Abaaoud, que foi projetado para o andar de baixo depois de detonado o cinturão explosivo de seu cúmplice. Ele apresentava "ferimentos profundos, o rosto irreconhecível e alguns trapos de roupa", detalharam os policiais. Às 18h30, os primeiros levantamentos foram concluídos. O prédio estava em tal estado que eles duraram quatro dias.
Vazamentos logo deram a entender que uma mulher-bomba havia se explodido durante o ataque. Sem esperar o feedback completo da operação, Jean-Michel Fauvergue, diretor do RAID, divulgou um relato da intervenção para a imprensa. Já na quinta-feira (19), ele afirmou que seus homens haviam sido alvo de fuzis AK-47, uma maneira de justificar a violência e a duração do ataque.
Todos esses elementos foram repetidos no dia 24 de novembro em uma coletiva de imprensa pelo procurador de Paris, François Molins. O magistrado afirmou que os policiais levaram "tiros muito pesados e quase ininterruptos 'durante quase uma hora'", sendo que o RAID fez uso de granadas e deram quase 5 mil tiros.
Mas à medida em que o prédio foi sendo reforçado, os investigadores reconstituíram uma versão mais realista de como o ataque aconteceu. Nenhuma mulher-bomba foi encontrada em meio aos escombros. A cabeça que passou pela janela era de um homem que ainda não foi identificado. Tarde da noite, em 19 de novembro, os investigadores descobriram em meio aos destroços o corpo da prima de Abdelhamid Abaaoud, Hasna Ait Boulahcen, com o rosto virado para o chão, asfixiada e sem "nenhum vestígio de perfuração".
Nenhuma arma de guerra foi encontrada, ao contrário do que possa ter dado a entender o relato do diretor do RAID. O tiroteio "pesado" citado pelo RAID esbarrou em uma constatação irrefutável: somente uma Browning semiautomática foi encontrada em meio aos escombros no dia 20 de novembro, sem pente mas com uma bala. Na pistola, a polícia encontrou uma impressão digital de Abdelhamid Abaaoud. Até hoje, foi a única arma dos terroristas que descobriram. "É possível atirar sem pente, mas uma bala por vez", explica um policial. Evidentemente, o fogo "pesado" não foi tão intenso quanto o relatado.

"Eles preparavam suas bombas"

A maior parte das munições na verdade foi disparada pelos policiais de elite. Já no dia seguinte ao ataque, a polícia judiciária fez uma primeira contagem das munições apreendidas. Eles registraram mais de 1.500 cartuchos disparados e 4 invólucros de granada vindos "provavelmente, segundo os técnicos do laboratório central do governo de Paris, de tiros efetuados pelos policiais do RAID".
A busca minuciosa pelos escombros se revelou proveitosa. No pátio do prédio, os investigadores encontraram um pé direito, bem como um pedaço de perna provavelmente pertencente ao homem que se explodiu pouco antes. A réplica de uma pistola automática e seu pente vazio de qualquer munição foram descobertos em seguida.
Raras vezes uma intervenção policial na França foi tão intensa assim. Os detalhes fornecidos por um depoimento, bem como por diversos dados de telefonia, deram a entender que pessoas—inclusive Abdelhamid Abaaoud—armadas de AK-47 e de explosivos haviam se refugiado em um apartamento em Saint-Denis. Hasna Ait Boulahcen teria contado que "vizinhos tentavam puxar papo, mas que eles não queriam pois estavam preparando suas bombas, não queriam ser incomodados". Ela mesma teria dito que "brincou com a AK-47".
"Foi nesse estado de espírito que o RAID chegou ao lugar", explica o Ministério do Interior para justificar esse fogo pesado. "Do ponto de vista operacional, a intervenção foi um sucesso", segundo o Ministério. "O risco de que uma armadilha tenha sido preparada para os policiais não devia ser descartado", uma vez que desde a investigação sobre a célula de Verviers, na Bélgica, sabiam que Abdelhamid Abaaoud queria atacar as forças de ordem. Os membros do comando se preparavam para atacar novamente em La Défense, temores confirmados pela descoberta, dentro do apartamento, da bolsa de Hasna, na qual foi encontrado um interruptor preto envolto em fita adesiva cinza e fios elétricos.
Depois de ter contado à imprensa sobre esse ataque pouco convencional, Fauvergue optou por ser conciso no comunicado que ele fez no dia 20 de novembro à direção central da polícia judiciária. Seu relatório de três páginas ("Condições de interpelação de seis indivíduos durante a intervenção de 18 de novembro"), ao qual o "Le Monde" teve acesso, acompanhado de uma planta baixa do apartamento, contribuiu para deixar ainda mais confuso esse ataque.
Além de detalhes sobre a maneira como estrangeiros em situação irregular que ocupavam o imóvel foram interpelados—e feridos por tiros de neutralização de snipers no caso de dois deles--, somente três elementos tinham ligação direta com o confronto do RAID e da equipe de Abaaoud.

"Deixem-me sair"

"Houve vários disparos vindos do apartamento", enquanto suas equipes tentavam pela segunda vez arrombar a porta com a ajuda de explosivos, ele explica sem indicação cronológica. Além disso, "concomitantemente aos tiros pesados de armas de fogo dos indivíduos presentes (...), diversas granadas estouraram aos pés dos agentes presentes na escadaria sem que estes pudessem determinar com precisão a posição dos indivíduos que as lançaram. Alguns instantes depois, granadas lançadas a partir dos andares de cima ou do telhado do prédio também explodiram no pátio interno", ferindo cinco policiais, um deles a tiros. Jean-Michel Fauvergue mencionou um tiro de sniper contra uma pessoa "combativa e determinada" posicionada no telhado.
Lendo-se esse relatório, não se consegue nenhuma resposta às questões levantadas sobre a estratégia de operar "tiros de saturação" para impedir a aproximação de um eventual homem-bomba. Também não houve nenhuma menção às razões pelas quais os explosivos colocados pelo RAID na porta do apartamento não funcionaram.
Não foi dada nenhuma explicação sobre as conversas que os homens do RAID tiveram com Hasna Ait Boulahcen quando ela pediu para sair por duas vezes. "Ela está com as duas mãos à vista na janela", disse um policial, antes de começar um diálogo: "Senhor, por favor, deixe-me sair, deixe-me sair pelo menos", diz a mulher, que continua: "Ele vai explodir alguém! Senhor, estou com medo, estou com medo."
E nada sobre o momento em que um dos terroristas detonou seu cinturão explosivo. Nada sobre o fato de que uma única pistola automática possa ter sozinha dado a impressão às equipes do RAID de estarem sendo alvos de "um fogo pesado". Nem a direção da RAID, nem a direção geral da polícia nacional quiseram responder a nossas perguntas.
Em um resumo da investigação de flagrante de 14 de dezembro e ao qual o "Le Monde" teve acesso, afirma-se que "violentas trocas de tiro" ocorreram "durante quase duas horas", especificando que os "acusados" fizeram uso de "granadas ofensivas" e de "arma de fogo". Arma no singular, um termo que também serviria para descrever esse ataque.

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