Um crime sem perdão
Nuno Saraiva - DN
Não
há outra maneira de classificar o que se passou na madrugada de 14 de
dezembro no Hospital de São José: a morte de um homem de 29 anos após
três dias de espera por uma cirurgia urgente é um crime. Podemos dar as
voltas que quisermos, imputar aos cortes cegos que certamente existiram
nos anos da crise e debilitaram o Serviço Nacional de Saúde o que
aconteceu, que não há desculpa que nos possa aliviar a revolta. Diz o
bastonário da Ordem dos Médicos, num intolerável exercício de
autojustificação da classe, que "há muitos mais casos" como o de David
Duarte, como se a vida de um doente pudesse ser negligenciada por mais
legítimas que sejam as reivindicações sindicais. É verdade, os médicos
foram fortemente penalizados pela política de austeridade orçamental e,
com eles, os cuidados públicos de saúde degradaram-se. Mas, perante
situações de emergência em que o que se joga é a vida de um ser humano,
exige-se a um hospital que ponha de lado a política e aja em
conformidade com aquilo que é a sua função. É por isso incompreensível
que em São José, sabendo-se que não existe escala de neurocirurgia ao
fim de semana, não tenha ocorrido a ninguém um pedido de ajuda a outro
hospital ou mesmo a mobilização de uma equipa especializada que,
certamente, não se recusaria a cumprir aquilo que são dois dos
mandamentos impostos pelo juramento de Hipócrates: "A Saúde do meu
Doente será a minha primeira preocupação" e "Guardarei respeito absoluto
pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso
dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade". A
conclusão que tiramos das reações nas corporações da saúde, por injustas
que sejam as generalizações, é a de que neste como noutros casos os
doentes não são a prioridade e, pior, o respeito pelo valor supremo está
refém de questões de natureza laboral. Não, isto não é moralismo nem
demagogia, é a constatação da trágica realidade. E sim, as opções
políticas têm consequências. O país em que hoje vivemos é seguramente
diferente e mais desigual. A ideologia que defende a privatização da
saúde como de outros serviços essenciais tem naturalmente como efeito a
fragilização do SNS. Mas não há maior serviço prestado aos que o querem
desmantelar do que a introdução de um clima de falta de confiança nos
hospitais públicos. E foi isso que aconteceu no Hospital de São José.
Além da morte criminosa de um doente, houve um crime de lesa-SNS.
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