Roger Cohen - NYT
Swen Pfoertner/DPA/AFP
14.out.2015 - Jovens sírios brincam com boneco de neve após nevasca em na Alemanha, país que recebeu milhares de refugiados e onde hoje tudo é possível. Os EUA, tomados pelo medo, passaram a tocha
Durante todo o extraordinário processo que viu cerca de um milhão de refugiados chegarem à Alemanha este ano, a chanceler Angela Merkel teve um refrão constante: "Wir schaffen das" ("Podemos fazer isto"). O gesto em questão é o mais extraordinário ato redentor de um país europeu em muitos anos.
Os alemães em geral compreenderam. Eles compreenderam que fugir da
Síria passando pelos postos de checagem do Estado Islâmico, colocar sua
família em barcos frágeis em águas revoltas e se arrastar pela Europa em
busca de um lar não é uma decisão desesperada. É uma decisão racional,
se a alternativa é ver seus filhos explodidos por uma bomba de
fragmentos ou sua filha estuprada por um jihadista. Os alemães do
pós-guerra são pessoas racionais.
Os Estados Unidos teriam de admitir cerca de quatro milhões de refugiados este ano para acolher uma porcentagem semelhante de sua população. Faltaram mais de 3,9 milhões para atingir essa marca.
A maioria dos refugiados na Alemanha vem da Síria. Os EUA admitiram cerca de 1.900 refugiados da Síria nos últimos quatro anos. Sim, você leu certo. O presidente Barack Obama agora prometeu reassentar dez mil refugiados sírios --decisão que foi contestada por mais de duas dúzias de governadores republicanos ávidos para ligar as palavras "muçulmano" ou "Oriente Médio" a "terrorista".
O que aconteceu com o "Lar dos Bravos"? Pondo de lado o fato de que a crise síria não pode ser separada dos efeitos da guerra do Iraque, por isso a responsabilidade direta dos EUA está envolvida; pondo de lado o fato de que Obama disse em 2011 que o presidente Bashar al Assad deve deixar o governo, e portanto a responsabilidade americana está envolvida; pondo de lado a "linha vermelha" presidencial que não foi mantida em 2013. Mesmo então, segundo qualquer medida racional, a reação dos EUA à crise dos refugiados sírios foi lamentável.
Para uma terra de imigrantes povoada ao longo de séculos por famílias que fugiram da guerra, da fome ou de dificuldades, foi especialmente lamentável. A Alemanha entrou em cena. O espírito do "podemos" ("Wir schaffen das") atravessou o Atlântico.
O lugar de Merkel nos livros de história já estava garantido. Ela foi a mulher que durante uma década conduziu uma Alemanha unida a alcançar uma autoconfiança notável para um país que, na virada do século, ainda não tinha certeza se poderia se permitir um orgulho moderado. Mas com sua decisão este ano de admitir refugiados sírios e outros ela se tornou uma figura europeia grandiosa, certamente equivalente a gigantes do pós-guerra na Alemanha como Konrad Adenauer, Helmut Schmidt e Helmut Kohl --talvez até os superando, porque sua Alemanha é sua própria mestra, enquanto a deles ainda estava sob a tutela americana.
"Ela não quer ser, ou se recusa a ser, a pessoa que testemunhou uma séria fratura da União Europeia", disse-me Julian Reichelt, o editor-chefe do jornal "Bild Online". "Ela aplica dinheiro nos problemas, como na Grécia. Ela vai admitir um número ilimitado de refugiados. E entrará na história como uma grande europeia que defendeu a união a qualquer preço."
Quando Merkel decidiu no último verão admitir os refugiados, ela evitou a violência que poderia ter saído de controle. Os críticos em seu Partido Democrata-Cristão a pintam como emotiva. Mas para uma líder comprometida a preservar a ideia europeia sua decisão foi racional.
Criada na Alemanha Oriental, ela deve sua liberdade à unidade da Europa. É uma questão pessoal. A última vez em que Europa foi inundada por milhões de refugiados foi em 1945, quando o Terceiro Reich desmoronou. É uma questão histórica. A Alemanha não poderia dar as costas. Mas a decisão exigia estadística (essa palavra quase esquecida) e a convicção de que qualquer risco de terrorismo poderia ser controlado.
Um milhão de refugiados mudam a paisagem. Eles estão nos supermercados, nos hospitais, nas escolas. Os alemães têm sido receptivos, apesar do enorme custo. Um partido de extrema-direita pode se beneficiar, mas o consenso é que isso tinha de ser feito.
Em consequência, na próxima geração, a Alemanha se tornará um país mais forte, mais vital, dinâmico e aberto. Abdulfattah Jandali, um imigrante sírio conhecido como John, foi o pai biológico de Steve Jobs. Talvez um futuro Jobs sírio-germânico tenha acabado de entrar na escola.
A Alemanha envergonhou seus parceiros europeus, incluindo o Reino Unido. Um programa para refugiados de âmbito europeu é necessário. A Alemanha não pode receber mais um milhão em 2016. "Não há um plano real além de ganhar tempo para colocar o resto da Europa a bordo", disse Reichelt.
Em um ano sombrio, Merkel redimiu a Europa que um dia fechou as fronteiras para os judeus que fugiam da Alemanha. Na unificação, quando Kohl falou em uma "paisagem florescente" na antiga Alemanha Oriental, foi alvo de zombaria. Mas isso passou. A Alemanha pode fazer isto. Quanto aos EUA, que não podem, é outra história. O medo e a política eleitoral constituem uma mistura explosiva.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Os Estados Unidos teriam de admitir cerca de quatro milhões de refugiados este ano para acolher uma porcentagem semelhante de sua população. Faltaram mais de 3,9 milhões para atingir essa marca.
A maioria dos refugiados na Alemanha vem da Síria. Os EUA admitiram cerca de 1.900 refugiados da Síria nos últimos quatro anos. Sim, você leu certo. O presidente Barack Obama agora prometeu reassentar dez mil refugiados sírios --decisão que foi contestada por mais de duas dúzias de governadores republicanos ávidos para ligar as palavras "muçulmano" ou "Oriente Médio" a "terrorista".
O que aconteceu com o "Lar dos Bravos"? Pondo de lado o fato de que a crise síria não pode ser separada dos efeitos da guerra do Iraque, por isso a responsabilidade direta dos EUA está envolvida; pondo de lado o fato de que Obama disse em 2011 que o presidente Bashar al Assad deve deixar o governo, e portanto a responsabilidade americana está envolvida; pondo de lado a "linha vermelha" presidencial que não foi mantida em 2013. Mesmo então, segundo qualquer medida racional, a reação dos EUA à crise dos refugiados sírios foi lamentável.
Para uma terra de imigrantes povoada ao longo de séculos por famílias que fugiram da guerra, da fome ou de dificuldades, foi especialmente lamentável. A Alemanha entrou em cena. O espírito do "podemos" ("Wir schaffen das") atravessou o Atlântico.
O lugar de Merkel nos livros de história já estava garantido. Ela foi a mulher que durante uma década conduziu uma Alemanha unida a alcançar uma autoconfiança notável para um país que, na virada do século, ainda não tinha certeza se poderia se permitir um orgulho moderado. Mas com sua decisão este ano de admitir refugiados sírios e outros ela se tornou uma figura europeia grandiosa, certamente equivalente a gigantes do pós-guerra na Alemanha como Konrad Adenauer, Helmut Schmidt e Helmut Kohl --talvez até os superando, porque sua Alemanha é sua própria mestra, enquanto a deles ainda estava sob a tutela americana.
"Ela não quer ser, ou se recusa a ser, a pessoa que testemunhou uma séria fratura da União Europeia", disse-me Julian Reichelt, o editor-chefe do jornal "Bild Online". "Ela aplica dinheiro nos problemas, como na Grécia. Ela vai admitir um número ilimitado de refugiados. E entrará na história como uma grande europeia que defendeu a união a qualquer preço."
Quando Merkel decidiu no último verão admitir os refugiados, ela evitou a violência que poderia ter saído de controle. Os críticos em seu Partido Democrata-Cristão a pintam como emotiva. Mas para uma líder comprometida a preservar a ideia europeia sua decisão foi racional.
Criada na Alemanha Oriental, ela deve sua liberdade à unidade da Europa. É uma questão pessoal. A última vez em que Europa foi inundada por milhões de refugiados foi em 1945, quando o Terceiro Reich desmoronou. É uma questão histórica. A Alemanha não poderia dar as costas. Mas a decisão exigia estadística (essa palavra quase esquecida) e a convicção de que qualquer risco de terrorismo poderia ser controlado.
Um milhão de refugiados mudam a paisagem. Eles estão nos supermercados, nos hospitais, nas escolas. Os alemães têm sido receptivos, apesar do enorme custo. Um partido de extrema-direita pode se beneficiar, mas o consenso é que isso tinha de ser feito.
Em consequência, na próxima geração, a Alemanha se tornará um país mais forte, mais vital, dinâmico e aberto. Abdulfattah Jandali, um imigrante sírio conhecido como John, foi o pai biológico de Steve Jobs. Talvez um futuro Jobs sírio-germânico tenha acabado de entrar na escola.
A Alemanha envergonhou seus parceiros europeus, incluindo o Reino Unido. Um programa para refugiados de âmbito europeu é necessário. A Alemanha não pode receber mais um milhão em 2016. "Não há um plano real além de ganhar tempo para colocar o resto da Europa a bordo", disse Reichelt.
Em um ano sombrio, Merkel redimiu a Europa que um dia fechou as fronteiras para os judeus que fugiam da Alemanha. Na unificação, quando Kohl falou em uma "paisagem florescente" na antiga Alemanha Oriental, foi alvo de zombaria. Mas isso passou. A Alemanha pode fazer isto. Quanto aos EUA, que não podem, é outra história. O medo e a política eleitoral constituem uma mistura explosiva.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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