Nossos malvados preferidos
Merval Pereira - O Globo
A Operação Lava-Jato está nos revelando um país que
suspeitávamos existir, mas nos recusávamos a enfrentar de maneira
rigorosa. Explicitações desmoralizantes de um modo de ser nada
republicano revelam uma ética pública que reflete a moral privada, não
apenas de corruptos e corruptores, mas de todos nós, cidadãos, que
afinal de contas somos os responsáveis por colocar no Congresso e no
Executivo figuras que necessariamente nos representam como sociedade.
Tão chocante quanto ver e ouvir delações de executivos da Odebrecht,
especialmente de seu patriarca Emilio, explicando as relações promíscuas
com parlamentares e governantes com um ar de superioridade de quem está
nessa vida subterrânea há muitos anos, foi ver e ouvir o dono da JBS
descrever um leilão de deputados contra e a favor do impeachment da
ex-presidente Dilma, como se fossem os bois que compra para seu
abatedouro.
Em consequência, revela-se outro defeito de nossa formação: temos
malvados preferidos. Os nossos, quando denunciados, são perseguidos por
conspirações subterrâneas, em alguns casos guiados até mesmo do
exterior. Os outros, nossos inimigos, mais que adversários, são culpados
de tudo e muito mais. O Ministério Público e a Polícia Federal têm o
estranho dom de descobrir todas as safadezas de nossos inimigos e de
perseguir implacável e injustamente nossos preferidos.
E é nessa dicotomia moral que está a raiz de nossos problemas.
Enquanto perdoarmos nossos companheiros, encontrando as mais bizarras
explicações para situações indefensáveis, e quisermos a letra dura da
lei, ou mesmo aceitarmos ignorar a lei para punir nossos adversários, o
país não sairá desse lamaçal em que nos encontramos faz tempo.
A situação é tão esdrúxula que os mesmos procuradores, a mesma
Polícia Federal, são instituições respeitáveis quando descobrem as
falcatruas em que um figurão tucano está metido, e passam a ser
vendidos, com atuação política enviesada, quando anunciam os atos
corruptos de um figurão do PT. E vice-versa.
Aproveitando essa lassidão moral, os corruptores agem nos dois lados,
sem partidarização, oferecendo os mesmos préstimos a tucanos, petistas,
peemedebistas e outras siglas menores, da mesma maneira que as raízes
do mensalão estavam no empresário mineiro que ajudara o PSDB a testar
sua tecnologia de corrupção com o dinheiro público.
Deu tão certo que o PT importou o método, mais aperfeiçoado até, e
ampliando seu escopo, recém-chegado ao poder e carente de tecnologia
mais avançada. Tinham experiência municipal, logo acostumaram-se aos
novos ares federais, institucionalizando a roubalheira como método de
governo.
A impunidade que campeava no país em relação aos criminosos do
colarinho branco, fossem empresários ou políticos, permitia que esses
esquemas se disseminassem na política partidária, assim como é
apartidária a maioria parlamentar que hoje sustenta um governo do PMDB,
PSDB, DEM e ontem sustentava um governo petista, e se prepara para
novamente apoiar outro governo.
Hay gobierno? Soy a favor parece ser o lema desses nossos
representantes, que continuam a agir da mesma maneira, sem se dar conta
de que o país, aos trancos e barrancos, vai mudando e exigindo uma nova
postura diante dos escândalos. E qual é a solução que está sendo tramada
por baixo dos panos em Brasília?
Uma anistia ampla, geral e irrestrita que permita que ex-presidentes
não vão para a cadeia, que atuais e antigos parlamentares sejam
perdoados pelos financiamentos de caixas 1, 2 e quantas mais apareçam
nas investigações criminais.
Não há uma alma que inclua nessa negociação um mea-culpa
generalizado, não há quem imagine que é preciso colocar limitações às
falcatruas, limitações apenas à atuação dos que os investigam. Mas há
esperanças à vista. Assim como o esquema de corrupção nacional parece
ser o maior já registrado na política internacional, justamente por isso
nenhum país teve que realizar uma crítica tão drástica de suas práticas
políticas, tendo os valores éticos como objetivo.
As instituições brasileiras resistem à crise, mesmo quando parecem
consumidas pelas mazelas que estão sendo combatidas. Mas a sociedade
precisa permanecer em estado de alerta para impedir que se perca essa
oportunidade de avanços democráticos.
Porque ainda há quem considere que é preciso fechar os olhos a certos
desvios éticos escancarados, para permitir que as reformas avancem. Ou
que a suposta melhoria da desigualdade social justifica um ou outro
desvio do líder populista. Sem compreender que todos os avanços
conseguidos através de métodos corruptos são um atentado à democracia e
têm bases falsas, que logo ruirão.
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