Todo presidente serve a dois senhores —o eleitor e o legislador
Ao analisar o presidencialismo bipartidário dos EUA, Richard Neustadt,
em livro seminal ("Presidential Power", 1960), observou que a
Constituição americana teria gerado um dilema: a criação de um "governo
de instituições separadas que compartilham poderes". Se esse dilema é
presente no bipartidarismo americano, no presidencialismo fragmentado
brasileiro tende a se exacerbar, pois raramente o presidente governa sem
aliados.
Embora os eleitores esperem que o presidente tenha condições de governar
e resolver unilateralmente os problemas do país, a Constituição de fato
nega tal capacidade. Pois, por terem bases locais de sobrevivência
política, legisladores nem sempre compartilham as preferências nacionais
do presidente.
Na sua sempre perspicaz coluna nesta Folha, o sociólogo Celso Rocha de Barros reagiu a interpretações feitas ao meu artigo do caderno "Ilustríssima" (29/10).
Argumenta Celso que se o governo Temer apresenta baixo custo de
governança, isso não se deve à gerência de coalizão, mas sim à exclusão
do próprio pilar eleitoral do presidencialismo. Para Celso,
diferentemente de FHC, Lula e Dilma, "por não ter sido eleito", Temer
prescinde de compromissos com os eleitores.
Arguto, Celso dá sentido à sua leitura, mas ao mesmo tempo me provoca
questionamentos: como explicaríamos diferenças na gestão de coalizões de
distintos presidentes?
Por exemplo, o que teria levado FHC, eleito e reeleito no primeiro
turno, a se comportar de forma tão análoga a Temer (supostamente sem o
"crivo das urnas") apresentando ambos resultados semelhantes de
performance legislativa com custo relativamente baixo de governança?
FHC e Temer foram capazes de gerenciar coalizões ideologicamente
homogêneas e compartilhar poderes com parceiros, mirando a preferência
mediana do Congresso.
No caso de FHC, isso se deu independentemente de dúvidas sobre sua legitimidade eleitoral.
Portanto, o modo de se relacionar com parceiros e a performance
legislativa do presidente não estariam relacionadas a constrangimentos
eleitorais.
Caso interessante também é o dos governos petistas. Os governos de Lula e
o primeiro de Dilma concentraram poder no próprio PT, montando
coalizões heterogêneas e distantes das preferências do Congresso.
Ao privilegiar uma relação direta com o eleitor, negligenciando os
parceiros em coalizão, teriam sido os governos petistas mais fiéis ao
eleitor?
Medidas como o uso de bancos públicos para reduzir o spread bancário,
controle de preços ou desonerações tributárias que favoreceram setores
empresariais específicos, por exemplo, foram respostas a compromissos
com os eleitores pobres?
O presidencialismo não deve ser enxergado como um atalho para se
contornar as potenciais discrepâncias de preferências entre o presidente
(o suposto representante direto da sociedade) e o Congresso.
Afinal, não é porque uma relação tem natureza conflituosa que ela deve ser evitada a qualquer preço.
Presidentes necessariamente devem servir a dois senhores: o eleitor e o
legislador —pois seja Deus ou o diabo, é sempre o eleitor quem escolhe.
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