A disputa pelo 'social'
Sergio Fausto - O Estado de S.Paulo
Em debate pela TV nas eleições presidenciais francesas
de 1974, Giscard d'Estaing desconcertou François Mitterrand, que
insistia em arrogar a si a condição de único dos candidatos a ter
sensibilidade com o "social". Em frase que se tornou célebre, Giscard
atalhou metaforicamente: "Monsieur Mitterrand, vous n'avez pas le
monopole du coeur". Diz a lenda que a tirada "senhor Mitterrand, o
senhor não tem o monopólio do coração" deu a vitória ao candidato
liberal gaullista.
O Brasil não é a França, os tempos são outros, as coordenadas
políticas do mundo já não são as mesmas, mas, mutatis mutandis, será na
disputa pelo "social" que se decidirão as eleições de outubro. Disputa
não apenas em torno de agendas e programas, mas também sobre o
entendimento do que seja o "social" e sua relação com o "econômico" e o
"político".
Nesse embate, o desafio do PSDB é duplo: desconstruir a mitologia de
que o compromisso com o "social" é monopólio do PT e construir uma nova
visão sobre o que é necessário para o Brasil se desenvolver a partir da
posição alcançada nos últimos 20 anos, marcados por melhoria
significativa na maioria dos indicadores sociais.
O segundo desafio é politicamente mais importante do que o primeiro
porque o eleitor, no geral, é pragmático e voltado para o futuro
previsível. Mas é preciso mostrar que o crescimento da renda do
trabalho, a redução da pobreza e a diminuição da desigualdade são
processos que se iniciaram antes, tendo como marco fundamental a
estabilidade da moeda, e se acentuaram depois, em virtude de uma
combinação de decisões políticas e circunstâncias econômicas e
demográficas.
Não se trata de pôr em questão o mérito intrínseco das decisões
tomadas no governo Lula, mas de persuadir o eleitorado de que as
iniciativas e circunstâncias que permitiram o aumento significativo da
renda e do emprego e a redução maior da pobreza e da desigualdade nos
últimos dez anos já esgotaram grande parte dos seus efeitos positivos.
Não é tarefa fácil, mas não é impossível.
O aumento da renda pela geração de postos de trabalho vem perdendo
força. De um lado, porque o País está em virtual situação de pleno
emprego. De outro, porque se vem reduzindo - e cada vez mais - a
proporção de jovens na população brasileira, fruto do seu
envelhecimento. Ao mesmo tempo, o salário real deixou de ser beneficiado
pela valorização da taxa de câmbio. Esta foi enorme nos últimos dez
anos e só não resultou em problemas mais sérios nas contas externas por
circunstâncias internacionais excepcionalmente favoráveis na maior parte
do período. Essas circunstâncias desapareceram e a tendência do câmbio
agora é a inversa.
No novo contexto, a regra de reajuste do salário mínimo terá de ser
repensada, como já admitem economistas mais lúcidos simpáticos ao
governo. A menos que se queira dar gás adicional à inflação e/ou à
deterioração das contas públicas. A política de ganhos reais
sistemáticos do salário mínimo, bem acima da inflação, que começou no
governo FHC e se intensificou desde então, chega agora a seu limite.
Daqui em diante os ganhos deverão desacelerar. O mesmo se aplica aos
programas de transferência de renda, que não crescerão na mesma
velocidade que cresceram desde que foram criados, ainda no governo FHC,
já que não há mais tantos pobres para incorporar a esses programas como
havia no passado.
Necessita assim o País de uma nova agenda de políticas (e de quem
possa implementá-la, eis o ponto). Ela não implica ruptura com a
anterior, como tentará "demonstrar" a campanha de Dilma, mas requer
outro arranjo dos seus elementos e outra calibragem no peso relativo de
cada um. Seu foco deve estar voltado para aumentar a qualificação do
trabalhador brasileiro, homens e mulheres, sua educação, sua capacitação
para o trabalho, sua saúde, sua condição de moradia e mobilidade.
Trata-se de uma agenda que exige mais e melhores investimentos em
infraestrutura física (saneamento e transporte de massa, desde logo) e
capital humano (com a retomada da prioridade ao ensino básico, agora com
ênfase no nível médio, de 15 a 17 anos), maior eficiência na gestão e
firmeza no combate à corrupção e ao desperdício. É uma agenda a ser
defendida essencialmente pelo que representa para o avanço da qualidade
de vida e da cidadania no Brasil, em benefício de todos, mas em especial
dos ainda pobres e da "nova classe média".
Não há duvida que se deve limitar o aumento das despesas correntes do
governo, que vêm crescendo acima do PIB desde o governo FHC e, ainda
mais, nos dois últimos governos. É uma tendência insustentável, ruim
para o crescimento e para o controle da inflação. Dizer isso, porém, não
é dizer tudo. Sem querer ensinar o Padre-Nosso ao vigário, é preciso
enfatizar que a inflação é um imposto impingido principalmente sobre os
mais pobres e afirmar que o controle das contas púbicas deve ser feito
com atenção aos seus efeitos distributivos. A transferência subsidiada
de recursos do Tesouro para o BNDES é apenas um exemplo das muitas
políticas socialmente regressivas e fiscalmente temerárias adotadas
pelos governos Lula e Dilma. Também regressiva do ponto de vista social é
a estrutura de proteção excessiva à economia brasileira, parte da
explicação para os preços surreais que pagamos no Brasil, como vem
explicando com tino Edmar Bacha.
Antes e acima de tudo, o desafio começa por não temer o enfrentamento
com o PT no campo em que esse partido se arvora em monopolista da
virtude. Para tanto, consistência técnica nas propostas é indispensável.
Mas não basta. Como dizia o próprio Mitterrand, no embate com Giscard
mencionado na abertura deste artigo, "c'est pas seulement une question
de intelligence, c'est une question du coeur" (em tradução livre, "não é
apenas uma questão de inteligência, é uma questão de sensibilidade"). E
de inteligência política, sugeriria eu.
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