A encruzilhada de Obama
Presidente disse que os EUA só bombardeariam o Isis na Síria se a defesa da nação americana estivesse ameaçada
Dorrit Harazim - O Globo
Dentro de pouco mais de uma
semana, o noticiário estará repleto de referências a mais um
aniversário do fatídico 11 de setembro de 2001. Lembranças, flashbacks,
consequências, comparações históricas serão evocados. Inclusive as mais
capengas: o ataque terrorista contra os Estados Unidos já chegou a ser
comparado, em impacto para a desordem mundial, ao atentado contra o
arquiduque Francisco Ferdinando de 1914 que desembocou na Grande Guerra.
Dias
atrás, ao abortar suas férias para tratar do atual balaio de crises
regionais entrelaçadas, o presidente Barack Obama disse três coisas que
remetem ao 11 de Setembro e que passarão a ser minuciosamente
dissecadas. Primeiro, que um ataque militar dos Estados Unidos contra os
jihadistas do Isis atuando na Síria não é iminente. (Para quem se perde
um pouco na sopa de siglas do terror no Oriente Médio, o Isis ou Isil,
ou Estado Islâmico, agora instalado no Norte do Iraque, é o grupo que
tem por estratégia divulgar pela internet, em tempo real, as matanças,
decapitações e torturas que pratica).
Obama também declarou que,
como comandante em chefe das Forças Armadas, o presidente dos Estados
Unidos não precisa de autorização do Congresso para agir. E que os
Estados Unidos só bombardeariam o Isis na Síria se a defesa da nação
americana estivesse ameaçada.
Difícil será encontrar uma
justificativa legal para lançar ataques aéreos sobre um país que, ao
contrário do Iraque, não pediu ajuda nem autorizou claramente uma ação
dessa natureza. Já por isso, um trio de deputados democratas enviou um
ofício aos demais membros do Congresso sugerindo cautela antes de
conceder uma eventual autorização do uso de força militar a Obama para
erradicar o Isis.
Entre os signatários, um nome que honra a
enxovalhada classe política em geral e a função de membro do Legislativo
em particular: Barbara Lee.
Para entender de quem se trata, basta
ouvir o programa de rádio “Crazy power of words”(O louco poder das
palavras), produzido pela emissora pública WNYC de Nova York , acessível
via YouTube.
O programa baseia-se numa extensa reportagem do
premiado jornalista e escritor Gregory Johnsen e tem como ponto de
partida a manhã seguinte à hecatombe do 11 de Setembro. Os Estados
Unidos estavam desorientados e de joelhos após o pior ataque de sua
História em solo americano. Sentado à frente de um computador numa das
salas da Casa Branca, o subprocurador-geral do governo de George W.
Bush, Timothy Flannigan, de 48 anos, recebera a incumbência de produzir
um memorando de declaração de guerra dos Estados Unidos. E rápido, para
aprovação do Congresso.
Mas como declarar guerra contra um
atentado? O terrorismo não tem sede, capital, não é país, existe em
qualquer parte do mundo, o grupo de hoje desaparece amanhã.
Flannigan,
não sabendo por onde começar, fez o que qualquer estudante de terceira
série faz: consultou a internet e pescou um precedente de 1991, usado na
primeira Guerra do Golfo contra o Iraque. Capturou o texto,
transformou-o em documento Word e começou a trabalhar em cima do modelo.
Auxiliado por duas figuras sombrias da era Bush, David Addington e John
Yoo, ele fez alguns cortes, inseriu acréscimos, alterou frases e pronto
— apertou a tecla send.
O texto foi recebido pelos
legisladores reunidos no Capitólio sob ambiente sombrio e pesado. Tinham
se passado apenas 72 horas desde o aterrador ataque. Barbara Lee,
ativista negra desde a década de 60 que cresceu no Texas segregacionista
dos anos 50, debatia a situação com sua bancada. “Estávamos confusos”,
relembra ela hoje.
Tecnicamente, numa emergência como a do 11 de
Setembro, o ocupante da Casa Branca, exercendo o cargo de comandante em
chefe, pode decidir defender militarmente a nação sem precisar da
autorização do Legislativo. Mas, pela Constituição, o poder de declarar
guerra cabe ao Congresso, não ao Executivo. E Bush não queria agir
sozinho.
O instrumento foi intitulado Autorização para o Uso da
Força Militar (AUMF, sigla em inglês), pois desde a Segunda Guerra não
se utilizava mais a clássica Declaração de Guerra. Era deliberadamente
vago. Segundo a expressão cunhada por Gregory Johnsen, são “as 60
palavras que definiram os Estados Unidos nos últimos 20 anos”:
“O
presidente está autorizado a usar toda a força necessária e apropriada
contra nações, organizações ou pessoas que ele considere terem planejado
ou ajudado os ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001,
ou que tenham abrigado essas organizações ou pessoas, e a reverter
quaisquer atos futuros do terrorismo internacional contra os Estados
Unidos por parte dessas nações, organizações ou pessoas.”
Barbara
Lee, então com 55 anos, não dormia há duas noites debatendo e
consultando com amigos. “Estávamos em choque, com dor e raiva, e
falávamos do estado d’alma da nação”, conta a deputada, formada em
psiquiatria social. “E sabidamente não se devem tomar decisões quando se
está de luto ou com medo. Por outro lado, como ficar contra o
presidente do meu país num momento desses?”
Aprovado no Senado por todos os 96 presentes, o texto seguiu para votação na Câmara, que se esperava igualmente uníssona.
Depois
dos 16 primeiros “Sim”, chegara a vez de Barbara Lee. “Agonizei em
torno deste voto”, anunciou ela para o plenário lotado, “mas me
reconciliei com ele hoje durante uma missa em homenagem às vítimas. Ao
agir, não nos tornemos o mal que queremos erradicar, disse-nos o
reverendo. Meu voto é ‘Não’”.
Colegas ainda tentaram dissuadi-la
de ser a única voz dissonante de um placar que seria 420 x 1. Em vão.
Durante semanas, meses, anos, o gabinete da deputada foi inundado por
mais de 60 mil cartas chamando-a de traidora, terrorista, desonra
nacional. Sua carreira parecia enterrada.
Mas um telefonema
valioso lhe chegou no dia seguinte à votação. “Tenho orgulho de você,
filha”, ouviu do pai, um tenente-coronel do Exército que servira na
Segunda Guerra e na Coreia.
E, um ano após ser considerada pária
nacional, a representante da Califórnia foi reeleita para um terceiro
mandato. Anteviu o que o país não quis ver.
Chegou a vez de Obama escolher se quer trombar com Barbara Lee de frente ou prefere tê-la a seu lado.
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