Mario Chainho - Impresso Conservador
Quando se fala sobre liberdade de expressão, o assunto costuma ser reduzido à questão da censura. Nas sociedade modernas ocidentais prevalece a ideia de que todas as formas de censura devem ser evitadas, desde que não esteja em causa o apelo a um crime tipificado em lei. Como resultado, minorias radicais, ruidosas e incansáveis, exigiram ser ouvidas até terem silenciado a maioria inerme. Assim, em algumas décadas passamos do “é proibido proibir” para um clima “politicamente correcto”, em que todo tipo de hábitos e costumes com séculos de tradição se tornaram censuráveis, ao ponto de estarem em vias de extinção, mas sem o privilégio de poderem ser considerados como “espécies em risco”.
Contra isso, surgem alguns apelos para instaurar algum tipo de censura que possa restaurar a ordem na sociedade. Mas instaurar uma censura não é mais do que instaurar algum tipo de poder, e para fazer isso é preciso já ter poder. Se não o tivermos, os apelos à censura podem ser aproveitados por quem já tem a hegemonia cultural e que poderá transpor o “politicamente correcto” inteiramente em normas legais.
Mas mesmo na improvável circunstância de conseguirmos impor uma censura segundo os princípios que nos parecem justos, coloca-se a questão de saber se isso conduziria aos resultados desejados. No romance A Farsa, Raul Brandão mostra, em poucas páginas, como pode ser asfixiante e até cruel uma sociedade regida nominalmente por princípios cristãos mas em que já desapareceram todos os sentimentos cristãos. Até as mínimas demonstrações de sofrimento são censuradas porque “Cristo sofreu muito mais por nós”. A literatura já retratou abundantemente este estado de coisas: os bons princípios deixam de o ser quando aplicados por más pessoas. E não podemos esquecer que muitas das normas legais opressoras de hoje – assim como parte do “politicamente correcto” – derivam de preceitos religiosos que foram desligados da possibilidade de perdão. O censor é apenas uma variante do carrasco e, se o carrasco é necessário em algumas circunstâncias, é ilusória a crença de que a ordem da sociedade repousa nele. Se o carrasco torna-se demasiado poderoso, ele torna-se carrasco de toda a sociedade e não apenas daqueles que descumprem a lei.
A redução da liberdade de expressão à questão da censura deriva da tendência moderna de olhar as coisas desde “cima”, fazendo abstracção das circunstâncias concretas e das pessoas envolvidas. Assim, afastado o “ruído”, as situações parecem claras e julgamos que conseguimos delinear soluções definitivas para os problemas. Na prática, este método abstractivo, quando aplicado à vida humana, apenas prolonga os problemas indefinidamente e torna as suas causas ainda mais obscuras. Neste assunto, como em muitos outros, Platão já se pronunciou com mais propriedade do que quase todos os outros que vieram depois dele, mas até hoje o que ele disse mereceu pouca atenção. Aliás, podemos até dizer que grande parte dos problemas modernos deriva da recusa em ver as situações actuais com os olhos do passado.
No diálogo Górgias, quando Polo entra na discussão, Sócrates coloca como condição que ele refreie a sua tendência para longos discursos. O jovem aprendiz de retórica fica indignado por não poder dizer tudo o que quiser. Responde Sócrates (461E – 462A):
Grande infelicidade seria a tua, caro amigo, se viesses a Atenas, o lugar da Grécia em que é maior a liberdade de expressão, para seres o único a não gozar desse privilégio. Mas considera agora a outra face da questão: se te pusesses a falar longamente, sem querer responder às minhas perguntas, não serei eu o infeliz se não me for permitido partir sem te escutar?Isto quer dizer que Platão tinha consciência da confusão que existia na altura, e que permanece até hoje, entre a liberdade de poder discursar e o direito de ser escutado. Se quem ouve não se pode ausentar, então, o discursante está na realidade a usufruir de dois direitos em simultâneo e não apenas desfrutando da sua liberdade de expressão, isto à custa da restrição dos direitos de ausência de todo o auditório. De onde pode ter vindo este engano? A confusão era quase natural na democracia ateniense, com a virtual indistinção entre vida humana e vida pública, com a consequente disputa de cargos políticos. A discussão pública tornou-se mais refinada quando os professores de retórica ambulantes, como Górgias e Protágoras, começaram a ensinar a sua arte a troco de dinheiro. Os jovens aprendiam a fazer discursos convincentes, independentemente da sua veracidade. E naturalmente que precisavam de treinar esta aptidão na praça pública, e nada melhor do que a liberdade de Atenas para acolher estes produtores de opiniões para todos os gostos.
Colocar qualquer tipo de entrave nesta actividade parecia violar os princípios que tinham feito Atenas grande e contrastante com a rival Esparta, mais severa. Contudo, Sócrates e Platão perceberam o potencial disruptivo da oratória desenfreada. A fala humana não é apenas uma articulação de sons e sentidos convencional para comunicar assuntos práticos e visíveis. O discurso influencia decisões, entendimentos sobre valores e a própria forma como nos vemos a nós mesmos. A primeira coisa que Sócrates manda perguntar a Górgias é: “Quem é ele?” Mas eles não propuseram o estabelecimento de algum tipo de censura na polis, que eles já sabiam ser mal governada e que necessitava de um tipo de restauração mais profunda. A reacção ao estado de desordem tinha de começar pelos grupos de amigos unidos pelo amor à verdade e à sabedoria, o que implicava também o repúdio por aquilo que é falso.
Hoje, as pessoas gostam de repetir a frase de Thomas Jefferson: “o preço da liberdade é a vigilância constante”. Mas o “adágio” tem o efeito quase oposto ao esperado, funcionando como uma espécie de “amortecedor de consciência”, porque a pessoa diz aquilo e fica satisfeita consigo mesma e imagina que a vigilância será exercida pelos jornalistas ou por câmaras de vigilância ou por um chip embutido em todos os cidadãos debaixo da pele ou por outra coisa qualquer que se venha a inventar.
Platão, pelo contrário, diz-nos uma das formas de colocar em prática, de forma saudável, esta vigilância: temos de exercer o nosso direito de não ouvir quem não merece ser ouvido. Não é uma escolha feita por capricho ou por inclinação pessoal; deve ser uma escolha tendo em vista a verdade. Se um indivíduo começa a discursar de uma forma que se torna quase impossível de discernir a verdade da falsidade ou se ele usa artimanhas que desviam o foco do assunto – Sócrates fala da retórica como uma forma de lisonja do público -, é mais do que legítimo não continuar a ouvir o que ele tem para dizer e esclarecer outros que possuem o mesmo direito de se ausentarem.
Aqueles que desempenham funções intelectuais têm um papel especialmente importante neste processo. A vigilância deles não se deve limitar ao exercício do direito de “não ouvir” mas, nos casos mais graves ou difíceis de destrinçar, eles devem realmente ouvir para poder explicar ao público alargado o que está em causa. Hoje, quase todos aqueles que recebem o título de “intelectual”, não apenas não estão à altura dos seus deveres como, frequentemente, os invertem. Por um lado, ao invés de ignorarem os indigentes, ignoram voluntariamente os mais capazes, para assim manterem o debate num nível de uma mediocridade confortável. Note-se que, quando o debate cai abaixo de um certo nível, ele pode ainda suportar um grande nível de divergência interna; o que não pode suportar é a comparação com algo realmente superior, ou iria dissolver-se. Por outro lado, para efeitos de imagem externa, os “intelectuais” gostam de mostrar um enorme respeito por todas as opiniões em jogo e pelos respectivos opinadores, ainda que possam haver os maiores ódios entre eles e jogos de bastidores; e esta imagem de polimento assegura que todos possam continuar com os seus cargos nas universidades, com as suas colunas nos jornais e com todo o tipo de benefícios que a classe se habituou a reclamar para si mesma como recompensa por se ter demitido do seu papel.
Face a esta traição dos intelectuais, o cidadão comum encontra-se desprotegido numa sociedade que tem a liberdade de expressão como um dos pilares fundamentais. Ele pode ouvir um sujeito propondo verdadeiras monstruosidades mas, ao mesmo tempo, é informado de que o autor daquelas propostas é uma pessoa respeitada no meio académico, é convidado para dar entrevistas e talvez já tenha ganho vários prémios. Como pode ele, um simples “zé ninguém”, achar que aquele indivíduo ilustrado não merece ser ouvido? Seria uma coisa de uma arrogância sem limites. Daqui, ele será encaminhado para uma de três conclusões: pode concluir que não entendeu nada daquilo e negará o que os seus olhos viram, porque lhe é demasiado doloroso admitir a monstruosidade ali envolvida; pode também converter-se àquelas propostas, por se convencer que elas representam o progresso ou algo do género; ou pode ainda concluir que aquilo são apenas disparates e que os “intelectuais” são todos loucos, mas ele sente-se protegido, porque acha que nada daquilo o afecta. Entretanto, chega a casa e o seu filho diz que quer mudar de sexo e ele não entende o motivo daquilo acontecer.
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