Nas
sociedades humanas, pelo menos nas grandes e ricas como a nossa, há uma
complexidade incomparavelmente maior à dos aparelhos de TV e na verdade
ninguém a entende bem o suficiente para consertá-la ou melhorá-la.
Devem
existir bons argumentos para ser anti-conservador em circunstâncias
particulares. Mas há algum bom argumento para ser anti-conservador em
todas as circunstâncias? Se existissem, eles teriam manifestadamente a
necessidade de serem argumentos universais: universais o bastante para
serem filosóficos, ou pelo menos para ser alvo de interesse dos
filósofos.Tem se usado apenas um argumento demasiadamente universal para o anti-conservadorismo – até onde eu sei – e não é um muito bom. Esse foi um argumento tão cogitado, que dificilmente qualquer um nos últimos 150 anos levantou-o por educação, de modo que ele já perdeu toda a sua influência. Eu o chamo de “Todos riram do argumento de Cristóvão Colombo”, chamemos pelo nome mais curto “O argumento de Colombo”. Eis como é composto esse argumento: “Em quase toda a história da humanidade, pessoas que trouxeram inovações, fossem elas de crença ou de comportamento, encontraram hostilidade. Morte, perseguição, prisão, ou no melhor dos casos, a negligência; essas foram as recompensas mais comuns pelos seus esforços. Sejam quais forem as melhoras efetivamente realizadas na vida humana, sejam nas nossas opiniões ou nas nossas práticas, elas sempre dependeram, e sempre vão depender, de um inovador em primeiro lugar. Nós devemos, portanto, não apenas tolerar, mas receber de braços abertos os inovadores”.
A origem da argumentação remonta a Sócrates, quando no julgamento que lhe tirou a vida, ele mereceu na verdade, não a morte, mas uma pensão vitalícia do Estado pelo estímulo intelectual e moral gerado na ocasião. Mas o locus classicus moderno é, sem dúvida, o ensaio On Liberty (1859) de John Stuart Mill. E a forma que Mill deu ao argumento (que é essencialmente a mesma dada acima) se alastrou pelo mundo. A cada dia que se passou desde a publicação de Mill, foi um dia em que a publicação se tornou mais influente. Na dissolução intelectual e moral do Ocidente no século XX, todos os passos dados dependeram dos conservadores serem desarmados – em algum ponto crítico – pelo argumento de Colombo: ele foi usado pelos revolucionários ao reivindicarem que qualquer resistência tida contra eles era apenas outra instância da imerecida hostilidade pela qual os inovadores benéficos passaram tão frequentemente no passado.
O ensaio de Mill não ficou sem resposta durante sua época. Alguns conservadores viram de modo suficientemente claro tanto a periculosidade como a fraqueza do argumento de Colombo. A melhor resposta ao ensaio On Liberty foi o livro Liberty, Equality, Fraternity (1878) de J. F. Stephen (irmão de Leslie Stephen, portanto o tio de Virginia Woolf). O desafio foi muito desigual intelectualmente: Stephen fez picadinho de Mill. Mas historicamente, seu livro sumiu sem deixar rastros, enquanto o ensaio de Mill continuou a conquistar espaço dia após dia.
Nós não precisamos de livros para nos dizer o quão perigoso o argumento de Colombo é: nós temos como professor a autoridade muito maior da experiência – expériences nombreuses et funestes (como Laplace disse em outra ocasião). Pois “Todos eles riram de Cristóvão Colombo” levou a uma transição – tanto natural como racional – a “É uma proposta ultrajante, mas nós certamente vamos considerá-la”. Isso se transpassou naturalmente o bastante para “Nós devemos considerá-la porque é uma proposta ultrajante”. Em consequência, isso nos trouxe a incontrolável violência e irracionalidade como pôde ser vista nos países livres em 1987. Pessoas que se renderam, em suas próprias mentes, ao direito de ridicularizar as ideias mais absurdas, ou a reprimir as condutas mais depravadas, são (como se diz de modo vulgar na Austrália) história.
Quanto à fraqueza do argumento de Colombo, é algo perfeitamente flagrante. Sem dúvida é verdade que, para cada mudança para melhor que venha a acontecer, seja em pensamento ou em prática, primeiro alguém teve de embarcar em uma nova empreitada. Mas é igualmente verdade que primeiro alguém teve de embarcar em uma nova empreitada para que qualquer mudança para pior também viesse a acontecer. E devem ter pelo menos tantas propostas que foram ou tem sido para pior quanto aquelas que foram ou têm sido para o bem. Mas se as más inovações do passado têm sido tão comum quanto as boas, então nós temos pelo menos o mesmo tanto de razão para concluir que nós devemos desencorajar os inovadores no futuro tanto quanto devemos concluir que temos o dever de encorajá-los.
Como pode um argumento tão fácil de responder alguma vez se impor sobre pessoas inteligentes? Fácil. É simplesmente uma questão de se certificar de fazer o que Wittgenstein em outra ocasião chamou de uma dieta unilateral de exemplos. Não mencione os inovadores do passado a menos que tenham sido ‘inovadores-para-melhor’. Atenha-se interminavelmente aos exemplos de Colombo, Copérnico, Galileu, Bruno, Sócrates e (se você achar que eles vão dar conta) Jesus. Esconda o fato de que deve ter existido pelo menos um ‘inovador-para-pior’ para cada um desses (sobrecarregados) homens de bem. Nunca mencione Lênin ou Pol Pot, Marx ou Hegel, Robespierre ou o Marquês de Sade, ou os gênios esquecidos a quem a humanidade está em débito pelas incontáveis teorias insanas que jamais tiveram continuidade na astronomia, geologia ou biologia. Não há fraqueza no argumento de Colombo que não possa ser mais do que compensada por uma suficientemente tendenciosa escolha de exemplos.
Na verdade, com certeza os ‘inovadores-para-pior’ foram sempre muito mais numerosos que os ‘inovadores-para-melhor’: eles sempre devem ser. Considere primeiramente o lado prático. Você entende os aparelhos de televisão bem o bastante para consertar os quebrados ou os que não estão funcionando bem? Provavelmente não: poucos conhecem. E se você, sendo parte da maioria, mesmo assim tentar consertar ou melhorar um aparelho de televisão problemático, há apenas uma chance em um milhão, por conta da complexidade do aparelho, que você não vá deixar o aparelho pior do que já estava. Agora nas sociedades humanas, pelo menos nas grandes e ricas como a nossa, há uma complexidade incomparavelmente maior à dos aparelhos de TV e na verdade ninguém a entende bem o suficiente para consertá-la ou melhorá-la. Em qualquer reivindicação feita em favor de um ‘consertador’ de sociedades, há de se saber que não há esse tipo de gente como há os consertadores de aparelhos de TV. Então, se alguém começar a tentar a praticar uma nova ideia de conserto ou melhora de sociedade, é uma chance em um bilhão que ele não vá de fato tornar as coisas piores se ele tentar muda-las. É evidente a existência da possibilidade de tornar as coisas melhor, mas isso é trivialmente verdade: assim como é possível, apesar de tudo, um furioso chute no seu aparelho de TV consertá-lo.
O mesmo vale para as inovações em crenças, pelo menos em ciências como a física e a química; pois essas são estruturas intelectuais de um tamanho e riqueza comparável às nossas estruturas sociais. Mesmo lá, é claro, é sempre possível que um herético ou amador esteja certo e o establishment científico esteja errado. Mas essa possibilidade é baixa, como eu apontei: a coisa é extremamente improvável, isso é tudo, e você seria extremamente irracional se acreditasse em qualquer caso do tipo. Físicos e químicos justamente tentam, portanto, manter uma organização profissional e um anteparo feito para excluir o crescente número de pretensos a Colombo cujas cartas começam com “Eu não tenho uma graduação científica, mas…”.
Nas ciências menos avançadas, evidentemente, a situação é proporcionalmente diferente. E quando você desce o nível para os repulsivos pardieiros, tais como a sociologia e a antropologia se tornaram, a situação é completamente oposta. Lá, qualquer inovação deve ser para melhor, e o mais absoluto amador, se ele puder pôr o pé na porta, já basta para ele se impor entre os demais, moralmente é claro, e até mesmo intelectualmente.
***
Em On Liberty
Mill recorreu a mais ampla variedade daquilo que ele escolheu chamar
“experimentos em vida”. A expressão foi uma tentativa repugnantemente
desonesta de capturar parte do merecido prestígio da ciência das coisas
que não tem a mais remota conexão com a ciência; principalmente –
preciso dizer? – certos arranjos sexuais e domésticos de um então tipo
de novela. Algumas respeitáveis pessoas o deixaram de lado por conta da
sua irregular associação com a Sra. Harriet Taylor e Mill pensou que
isso foi uma amostra da necessidade de uma nova, e mais aberta,
filosofia de vida. Não é muito mais que isso; ele provavelmente ficaria
horrorizado mesmo com algo como a Comunidade de Oneida.No entanto, apenas sessenta e poucos anos antes de Mill ter escrito On Liberty, alguns mais graves “experimentos em vida” foram realizados na França por ‘Babeufs’ e ‘Robespierres’. E mesmo quando ele escreveu o ensaio, os ‘Marxes’, ‘Bakunins’, etc., estavam enchendo a Europa com seus anúncios de um muito mais drástico “experimento em vida” que eles estavam preparando. É negligente dizer que Mill não poderia ter previsto o significado dessas coisas; outras pessoas puderam e previram o que essas coisas significavam, e ninguém na Inglaterra sabia melhor o que estava acontecendo na Europa do que Mill sabia. Quanto mais ele viveu, mais seus escritos trabalharam em favor dos “experimentos” socialistas, mesmo quando (como no caso do On Liberty) não era a intenção.
Eis aqui então uma curiosa sequência de eventos. Um filósofo publica um argumento em favor do acolhimento das inovações. Esse argumento é tão ruim que, por si só, dificilmente enganaria uma criança de dez anos. Suplementado, porém, por uma tendenciosa seleção de exemplos, esse argumento se espalha pelo mundo e faz mais que qualquer outra coisa para trazer a presente dissolução interna e a irresolução externa dos países livres.
E ainda há pessoas acreditando que filósofos e truques baratos não têm importância.
Tradução: Leonildo Trombela Junior
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