Não há saída da crise fora da Constituição
A Carta e as instituições têm passado, com
êxito, por duros testes, e não deve haver dúvidas de que são o caminho
para superar o atual
O Globo
Noticiada a partir do início da noite de quarta-feira pelo GLOBO, a
delação de um dos donos do grupo JBS, Joesley Batista, inclui conversa
com o presidente Michel Temer em que o empresário o informa de que paga
uma mesada a Cunha e ao operador financeiro deste, Lúcio Funaro, em
troca de seu silêncio. E teria sido encorajado pelo presidente: “Tem que
manter isso, viu?” Temer rejeita esta interpretação.
Caso tudo seja confirmado, ficará claro que pesaram muito os usos e
costumes de um tipo de prática política inaceitável, também vista no
PMDB do presidente. Temer não poderia ouvir o que ouviu sem reagir.
O Planalto passou o dia de ontem em busca da gravação — à noite
conseguiu autorização do Supremo —, para decidir sobre algum
pronunciamento de Temer. Mesmo antes de conseguir acesso ao material, o
presidente, em pronunciamento de pouco menos de cinco minutos, tachou a
gravação de “clandestina” — o que não lhe tira validade jurídica — e
garantiu que não renuncia. Falou por duas vezes, enfático.
O conluio do presidente com a venda de favores também fica exposto,
segundo a delação, pela indicação a Joesley que procure pessoa de sua
confiança, o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), para tratar de
assunto de interesse do grupo de frigoríficos junto ao Cade, órgão que
trata da defesa da livre concorrência.
Os acertos com Loures também são bombásticos. Em troca da ajuda de
Loures para que o Cade resolva a favor do JBS uma disputa com a
Petrobras sobre o preço do gás fornecido a uma termelétrica do grupo, o
deputado receberia R$ 500 mil mensais, por 20 anos, tempo da vigência do
contrato da termelétrica com a estatal para receber o combustível. Só
embolsou a primeira mesada. Tão grave quanto tudo é a menção feita pelo
amigo de Loures de que aquela proposta de propina seria informada a
alguém acima dele. Claro, falta provar.
A delação de Joesley rivaliza em gravidade com a feita pela cúpula da
Odebrecht —, pelo que se conhece até agora. Se dos testemunhos de
Emílio, Marcelo Odebrecht e executivos o ex-presidente Lula emerge como o
“chefe” do esquema de corrupção que funcionou em seus governos e na
gestão de Dilma, agora é Michel Temer, o próprio presidente da
República, que surge como protagonista.
Assim como no caso da Odebrecht, a delação de um dos donos do JBS é
multipartidária. E, neste aspecto, é tão ou mais impactante. Além de
resvalar no petista Guido Mantega — já personagem importante em delações
da empreiteira —, relatos de Joesley, também sustentados em pelo menos
uma gravação e ilustrados por fotos feitas pela PF, começaram logo na
noite de quarta a destruir a carreira política do tucano Aécio Neves,
destinatário de R$ 2 milhões pedidos pelo senador mineiro ao empresário,
alegadamente para pagar advogado na defesa contra denúncias que já
existem na Lava-Jato contra ele. Aécio nega e vincula os milhões a um
negócio imobiliário.
Negociado com frieza junto ao procurador-geral da República, Rodrigo
Janot, e o relator da Lava-Jato no Supremo, Edson Fachin, o testemunho
de Joesley foi planejado para que a Polícia Federal, com o uso de
tecnologia, rastreasse o dinheiro entregue em malas com chips, e ainda
por cima levando cédulas com numerações sequenciadas. Além dos encontros
serem fotografados/filmados, o monitoramento das rotas do dinheiro
permitiu saber, por exemplo, que o dinheiro entregue a Aécio tomou outro
rumo: em vez de alguma conta de advogado, destinou-se a Mendherson
Souza Lima, secretário do senador Zeze Perella (PMDB-MG), ligado a
Aécio. Ontem, Aécio pediu licenciamento ao Senado. Enquanto isso, sua
irmã, Andrea Neves, cúmplice do senador nos acertos com Joesley,
começava a tentar se ambientar ao Complexo Penitenciário Feminino
Estevão Pinto, em Belo Horizonte. Outro parente preso foi Frederico
Pacheco de Medeiros, o primo escalado por Aécio para receber o dinheiro.
As instituições republicanas brasileiras, reedificadas pela
Constituição de 1988, vêm sendo testadas de maneira dura desde 1992,
quando foi pedido o impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto
direto, depois dos 21 anos de ditadura militar. Pouco antes de o
impedimento ser formalmente aprovado pelo Congresso, Collor renunciou.
Assumiu o vice, Itamar Franco, como estabelece a Carta. A vida seguiu, o
Plano Real estabilizou a economia, ainda com Itamar, e, sob o governo
tucano de Fernando Henrique — o ministro da Fazenda que chancelou o
Plano —, houve grandes avanços institucionais.
Ficou provado, na prática, que se devem mesmo evitar atalhos
casuísticos para driblar a Constituição, em busca de fórmulas
salvacionistas. Veio a eleição pelo povo de um líder de esquerda, o
ex-metalúrgico Lula, e, logo no seu primeiro mandato, eclodiu o
escândalo do mensalão, a ponta do fio que levaria ao petrolão e ao
grande esquema lulopetista de drenagem de dinheiro público para um
projeto de poder de tinturas bolivarianas e o enriquecimento pessoal de
comissários e líderes petistas. Além da compra, literalmente falando, de
uma base parlamentar.
No mensalão aplicaram-se os dispositivos constitucionais e leis
correlatas, como deve ser. Pela primeira vez a Justiça, via Supremo,
punia políticos poderosos, em mais um reforço na consolidação das
instituições. Foi na esteira desse processo benéfico de características
históricas que, em março de 2014, seria criada em Curitiba a
força-tarefa da Lava-Jato, de cujo bojo emergem relatos sobre este
grande ciclo de corrupção em que o país entrou depois da
redemocratização, assentado na aliança da Nova República, hoje em
farrapos. Precisará ser costurada outra, mas não por meio de fórmulas
pretensamente mágicas, insista-se.
Enquanto a Lava-Jato avançava em ano eleitoral, a candidata petista à
reeleição, Dilma Rousseff, era abastecida por dezenas de milhões em
dinheiro sujo da Odebrecht. Serviram para pagar ao casal de marqueteiros
João Santana e Mônica Moura, hábeis em construir a sustentação
publicitária do estelionato eleitoral praticado por Dilma.
Ao continuar no poder, Dilma foi soterrada pelo castelo fantasioso
que construíra com fraudes fiscais, razão pela qual sofreria impeachment
em 2016, assumindo Temer, o vice. Foi mais um teste rigoroso vencido
pelas instituições, sustentadas pela mesma Constituição.
Há, portanto, incontáveis motivos para se confiar em que o mesmo terá
de acontecer desta vez. Como está em nota divulgada ontem pelo ministro
Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal, é preciso, “mais do que
nunca”, obedecer à Constituição e às leis. A própria História dos
últimos 25 anos dá razão ao ministro. Haja o que houver, não há outra
alternativa. Emendas para antecipar eleições e similares só fazem
ampliar o grau de incertezas, já bastante elevado.
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