terça-feira, 2 de maio de 2017

Tempo, tempo, tempo, tempo
O Brasil da Lava-Jato, que se crê em progresso, é o mesmo essencialmente incapaz de romper — um país de falsas rupturas, que, desde o berço esplêndido, optou pelas acomodações
Carlos Andreazza - O Globo 
O leitor pode — e deve — considerar lento o tempo da Justiça no Brasil, mas deve também, ou deveria, não embaralhar (ou condicionar) esse compasso arrastado (mas minimamente impessoal) ao ritmo fulanizado do calendário eleitoral. É essencial que não se confundam um e outro, e que não se pressionem ou intimidem, ou sairemos da República da impunidade para a da impunidade e do justiçamento.
Se os processos judiciais são demoradíssimos neste país, muito pior seria que de súbito se acelerassem apenas para dar respostas a demandas e expectativas eleitorais.
Vejamos o caso de Lula. Concordo que seja o líder de um projeto de poder criminoso-autoritário sem precedentes, trabalho diariamente para que a gravidade do assalto petista ao Estado brasileiro não caia na vala comum dos demais crimes revelados pela Lava-Jato, e creio que o ex-presidente será condenado em primeira instância ainda este ano; mas avalio — escrevi e reescrevo — que, apesar disso tudo, ele será candidato, e competitivo, em 2018. Não é torcida, por óbvio. É análise e projeção.
Essa leitura decorre também de haver simplesmente refletido sobre uma questão objetiva: estamos em maio de 2017, e Lula ainda não foi sequer condenado em primeira instância. Será, reforço; mas ainda não foi. No entanto, para que não possa concorrer no ano que vem, deverá estar condenado, também em segunda instância, até 1º de outubro de 2018, véspera da votação em primeiro turno.
Apertado, né?
Por favor, leitor: pense no relógio biológico brasileiro, no andamento habitual dos processos, nas múltiplas capacidades de recurso e procrastinação, e me responda se — com um ano e meio até lá — não é improvável que o ex-presidente esteja impedido de concorrer.
Fazer o quê?
O tempo da Justiça não pode correr excepcionalmente para punir alguém — mesmo que Lula. Enquanto isso, enquanto vibramos com o que supomos ser sua decomposição pública e o condenamos extrajudicialmente, ele vai se investindo de vítima e fundamentando a própria mitologia de herói.
Esse choque de tempos, entre o ritmo demorado e travado da Justiça e aquele predeterminado pelo calendário eleitoral, resultará provavelmente em que, uma vez iniciada a campanha, deparemo-nos com situações até há pouco imagináveis somente na sátira política.
Pense o leitor, por exemplo, num debate hipotético. Estamos no segundo turno. Então, confrontado pelo mediador com aquilo levantado pela Lava-Jato contra si, alguém duvida da possibilidade de um candidato defender — com convicção — a própria honra e ainda atacar o adversário em termos como os abaixo?
Fala, candidato: “Contra mim há uma simples acusação de caixa 2, um ilícito meramente eleitoral, que reconheci publicamente e pelo qual venho me desculpando ao longo de toda essa jornada. Contra o meu adversário, porém, pesa a grave denúncia de haver recebido propina, um crime de natureza penal, pelo qual ele deveria ser preso.”
Mais ou menos divertidamente, isso acontecerá. Mais ou menos escancaradamente, acontecerá. E por dois motivos. Porque, de fato, há diferenças — de peso e profundidade — entre os crimes investigados pela Lava-Jato (Deixar — como ora está — tudo num balaio cego, que a tudo iguala, é serviço pelo qual os que raptaram e saquearam o Estado eternamente agradecerão). E porque, enquanto a Lava-Jato avança para expor e punir, move-se — com igual intensidade, mas nos subterrâneos — a força contrária, monumental, a do establishment político, repactuando-se para definir novos códigos e permanecer no poder, e com os mesmos poderes.
Sempre foi assim. E assim será. O Brasil da Lava-Jato, que se crê em progresso, é o mesmo Brasil essencialmente incapaz de romper — um país de falsas rupturas, que, desde o berço esplêndido, optou pelas acomodações. De modo que, apesar de tudo o que se revela, chegaremos a 2018 com os partidos de sempre no topo da disputa (mas com a escandalosa novidade do financiamento público de campanha) e com quase todos os figurões, os mais e os menos enrolados, no páreo. É como funciona — o que inclui alguns bois de piranha abandonados ao sacrifício na travessia, para dar a impressão de sangue aos justiceiros.
Você pode sonhar — cada um com seu sonho — com Jair Bolsonaro, João Doria, Luciano Huck, Roberto Justus, Bernardinho, Joaquim Barbosa e até Sergio Moro; mas, afinal, terá de escolher entre Lula e Geraldo Alckmin.
Você, antipetista, que hoje vibra com tudo quanto venha da Justiça Federal de Curitiba, que considera geniais aqueles vídeos em que procuradores da República emparedam o Parlamento e jogam a população histérica contra a atividade política, que não vê problema em prisões preventivas que duram anos, que não tem dúvida de que conteúdo de delação premiada é prova para condenar e que trata como grave traição à pátria qualquer ressalva, ainda que mínima, ao trabalho da força-tarefa da Lava-Jato; você, por favor, lembre-se de que o PT, com tudo de criminoso que se sabe a respeito, pode ganhar a eleição em 2018, que certamente há (e como há) simpatizantes petistas no Ministério Público, que os métodos ora consagrados em Curitiba, portanto, poderão ser aplicados contra você e os seus — e que haverá também quem se extasie ao vê-los em prática e julgue moralmente imprescindível uma licença poética às leis para que todos os bandidos morram na cadeia.
A jurisprudência está criada. Para quem a puder manipular. Para quem chegar (em) primeiro.
Parabéns.

Nenhum comentário: