Andrew Higgins - NYT
Baseando-se em suas experiências como jovem oficial na artilharia das forças armadas da Rússia imperial durante a Guerra da Crimeia, de 1853 a 1856, Leon Tolstói descreveu em "Crônicas de Sebastopol" como um soldado russo ferido, cuja perna havia sido amputada acima do joelho, lidou com a dor agonizante.
"A coisa principal, a sua honra, é não pensar", comentou o amputado de Tolstói. "Se você não pensar, não é nada demais. Praticamente tudo nasce de pensar."
Praticamente ninguém na Crimeia, no entanto, parece seguir o conselho, principalmente aqui em Sebastopol. Com quase todas as ruas principais com o nome de algum herói militar russo ou de alguma batalha horrível, seu lindo calçadão na orla dominado por um "monumento aos navios afundados" e sua praça central em homenagem ao almirante imperial que comandou as forças russas contra as tropas francesas, britânicas e turcas no século 19, Sebastopol constantemente pensa na guerra e em suas agonias.
Sebastopol nunca parou de pensar nas perdas de guerra, e sua população sempre é bombardeada com lembranças da Guerra da Crimeia, que envolveu um cerco à cidade que durou quase um ano, entre 1854 e 1855, e a Segunda Guerra Mundial, quando a cidade resistiu obstinadamente às forças nazistas, até que finalmente caiu em julho de 1942 --e nunca foi capaz de lidar com a cisão realizada em 1954 pelo líder soviético Nikita Khrushchev.
Empunhando uma caneta em vez de uma faca, Khrushchev ordenou que Sebastopol e o resto da Crimeia fossem transferidos para a República Socialista Soviética da Ucrânia. Na época, a operação causou pouca dor, pois tanto a Rússia quanto a Ucrânia pertenciam à União Soviética, que cloroformizava as divisões étnicas, linguísticas e culturais com repressão.
Quando a Ucrânia tornou-se uma nação independente e separada, perto do final de 1991, no entanto, Sebastopol --lar da Frota do Mar Negro da Rússia desde o século 18-- começou a reclamar, e seus gritos culminaram com a decisão do Parlamento da Crimeia na quinta-feira (6) de realizar um referendo no dia 16 de março sobre o rompimento com a Ucrânia e a formalização da integração à Rússia novamente. Os moradores, em júbilo, reuniram-se em Sebastopol.
Explicando as agonias da cidade esta semana para um grupo de visitantes, em sua maioria russos, no museu de Guerra da Crimeia em Sebastopol, a guia Irina Neverova contou como o Reino Unido, a França, a Turquia, a Alemanha e outras nações tinham tentado sem sucesso reduzir o domínio russo sobre a região ao longo dos séculos.
"Cada pedra e cada árvore em Sebastopol está encharcada de sangue, com a bravura e a coragem dos soldados russos", disse Neverova, que se queixou dos livros escolares escritos sob as instruções das autoridades ucranianas que quase não mencionam o heroísmo de Sebastopol e preferem se concentrar nos feitos dos combatentes nacionalistas ucranianos no oeste da Ucrânia, a quem muitos russos veem como traidores e não como heróis.
"Aqui obviamente é a Rússia, e não a Ucrânia", disse Neverova mais tarde em uma entrevista.
Durante muitos anos depois do colapso da União Soviética em 1991, as vozes que pediam o retorno da Crimeia à Rússia eram uma coleção heterogênea de veteranos de guerra no Afeganistão e de grupos políticos marginais. Envoltos em bandeiras russas e soviéticas, eles regularmente pediam um referendo sobre o status da Crimeia, mas nada conseguiam, pois eram considerados apenas loucos perigosos nostálgicos da União Soviética.
Mas tudo isso mudou no mês passado, quando manifestantes em Kiev, capital da Ucrânia, tiraram o presidente Viktor Yanukovich do poder. A televisão russa, muito assistida na Crimeia, e os meios de comunicação locais controlados por empresários pró-Rússia começaram a retratar a queda de Yanukovich como um golpe fascista.
Isso transformou uma causa marginal e aparentemente condenada em uma reedição de lutas heroicas, permitindo que os inimigos do Estado ucraniano em Sebastopol se lançassem como herdeiros da resistência aos exércitos invasores de Hitler.
Milhares de moradores se reuniram em Sebastopol diante do escritório do prefeito nomeado por Kiev, à sombra de um gigantesco monumento da Segunda Guerra Mundial, na praça Nakhimov, em homenagem ao herói da Guerra da Crimeia Pavel Nakhimov, e obrigaram-no a renunciar em favor de Alexei Chaly, um nacionalista russo e empresário conhecido por seu patrocínio a memoriais de guerra.
Por toda a cidade, emergiu um grito de guerra ressuscitado dos cercos por potências estrangeiras no passado: "Aguente firme, Sebastopol". O slogan agora decora um palco montado na praça central para comícios pró-Rússia, com concertos do coro da Frota do Mar Negro e dançarinos cossacos.
Nem todos aqui foram tomados pela maré de fervor patriótico russo, mas quem não se envolveu está mantendo a cabeça baixa. Victor Negarov, uma voz solitária de dissidência que organizou uma série de comícios pouco frequentados em apoio aos manifestantes em Kiev, foi espancado no mês passado por ativistas pró-Rússia. Ele se escondeu com medo de ser atacado. Sua foto, endereço, número de telefone celular e até mesmo detalhes da placa de seu carro foram divulgados na internet por grupos pró-Rússia, que o chamam de traidor em conluio com os fascistas.
Negarov, um programador de computador de 28 anos de idade, causou especial fúria ao dar uma entrevista para a televisão ucraniana em que questionou a autoimagem de Sebastopol como uma cidade de heróis sempre vitoriosos, observando que a cidade lutou ferozmente, mas acabou perdendo para inimigos estrangeiros tanto na Guerra da Crimeia quanto na Segunda Guerra Mundial.
Com as instalações militares ucranianas na Crimeia agora sitiadas por pistoleiros uniformizados fortemente armados e sem identificação, mas cujos veículos têm placas russas, Negarov vê pouca esperança de que a Ucrânia seja capaz de recuperar rapidamente o seu próprio território. "É uma situação muito ruim. Muitos apoiam as forças russas aqui. Eu não sei como consertar isso", disse ele, desanimado. "Quase todo mundo já sofreu lavagem cerebral."
Enquanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin, insistiu nesta semana que os homens armados não identificados que agora controlam a Crimeia não têm nada a ver com o Kremlin e são voluntários locais em autodefesa que compraram seus uniformes nas lojas, os moradores pró-Rússia em Sebastopol comemoraram sua chegada como prova de que Moscou se mobilizou para forçar a separação da Crimeia da Ucrânia. "Vamos continuar o que começamos. Temos a Rússia por trás de nós", diz um banner hasteado na frente do escritório do prefeito.
Balaclava, um bairro periférico de Sebastopol, foi o local de uma das batalhas mais famosas da Guerra da Crimeia. Foi uma vitória russa rara durante o conflito e foi um golpe devastador para a moral das forças britânicas, que enviaram a "Brigada Leve" ao que o poeta inglês Alfred Lord Tennyson chamou de "vale da
morte".
O surgimento, no final de semana, de um longo comboio de veículos
militares russos gerou êxtase entre muitos moradores de Balaclava. Quase
todos falam russo e foram criados com histórias de bravura militar
russa contra os invasores estrangeiros.
A tomada russa da
Crimeia já é tão completa que os voos comerciais para Kiev a partir do
principal aeroporto da região, perto de Simferopol, a capital regional a
80 km de Sebastopol, agora saem do terminal internacional, em vez do
doméstico, como faziam até a semana passada. A mudança sugere que Kiev e
o resto da Ucrânia agora são classificados como território estrangeiro.
Soldados russos patrulham o estacionamento do aeroporto e, embora ainda
não tenham identificação em seus uniformes, pararam de fingir que não
são russos. Quando perguntado de onde vinha, um soldado mascarado no
aeroporto disse que estava com a infantaria russa e tinha sido enviado
para a Crimeia há uma semana, em uma missão para proteger a região
"contra o inimigo, a Ucrânia".
Tradutor: Deborah Weinberg
Nenhum comentário:
Postar um comentário