O carnaval e o espaço público
O Estado de S.Paulo
Talvez soe antipático questionar a ampla liberdade
concedida aos blocos de carnaval para seus folguedos nas ruas de São
Paulo, mas o fato é que parece haver um mal-entendido a respeito do que
vem a ser "espaço público" e do direito a ocupá-lo.
Ao longo da última temporada carnavalesca, muito se falou da
satisfação de paulistanos que desfilaram fantasiados e se divertiram em
diversos bairros da capital, algo celebrado como uma espécie de
"retomada cívica" da cidade. Graças a esse tom eminentemente político,
os críticos do abuso desse direito costumam ser qualificados de
"reacionários" e de outros epítetos menos elegantes.
No entanto, será "reacionário" o morador que mal consegue sair de sua
casa porque a porta está obstruída por animados foliões? É mau cidadão
aquele que questiona o bloqueio indiscriminado de ruas por um grupo de
pessoas em nome da comemoração momesca? Está errado aquele que critica o
rastro fétido de lixo e urina deixado pelos blocos de carnaval na rua
onde mora?
Na Vila Madalena e em Pinheiros, os bairros mais afetados, as
reclamações não eram contra a festa em si, aliás já tradicional naquelas
regiões, mas contra a falta de fiscalização, de segurança e de
orientação de trânsito. O principal problema, portanto, é a ausência de
autoridade.
A Prefeitura até se esforçou, ao menos no papel, para estabelecer
regras e limites para os blocos da cidade neste ano. Um decreto do
prefeito Fernando Haddad, que disciplina o carnaval de rua, determina,
por exemplo, que não pode haver "cordas, correntes, grades e outros
meios de segregação do espaço que inibam a livre circulação do público".
Trata-se de uma forma de democratizar a festa, mas também de uma
maneira de deixar claro que o direito de ir e vir deve estar plenamente
garantido.
Além disso, o decreto estabelece que os blocos "não poderão
permanecer parados em pontos fixos, devendo sempre circular, como forma
de promover a melhor convivência com a vizinhança e o tráfego". Pois foi
justamente contra as paradas que mais reclamaram os moradores.
Pouco adiantou a Prefeitura prever, no decreto, "o adequado
planejamento dos eventos carnavalescos de forma a minimizar os impactos
nas áreas em que ocorrerem" e estimular "o permanente diálogo com os
responsáveis pelos blocos e assemelhados, assim como moradores e
comerciantes eventualmente envolvidos ou interessados". A ausência de
fiscalização ensejou os maiores abusos.
No Rio de Janeiro, situação semelhante vem sendo enfrentada com a
presença ostensiva de agentes do Estado, no chamado "choque de ordem",
iniciado em 2009. Ademais, a prefeitura carioca passou a exigir dados
sobre o desfile dos blocos, como previsão de início e dispersão, trajeto
e uso de carro de som. O resultado é que, apesar de levar milhões de
pessoas às ruas, os blocos do Rio têm causado relativamente poucos
transtornos - geralmente provocados por blocos "clandestinos", que saem
às ruas sem respeitar as regras.
Os blocos talvez sejam hoje, de fato, a expressão mais autêntica do
carnaval brasileiro, algo que tende a ir na direção oposta à
mercantilização da festa promovida pelas grandes escolas de samba e pela
televisão. As brincadeiras de rua lembram o carnaval do final do século
19, quando famílias saíam fantasiadas para festejar. O renascimento dos
blocos, assim, carrega a nostalgia de tempos românticos. Em São Paulo, o
número deles triplicou no último carnaval, chegando a 214, e a
Prefeitura diz esperar que o fenômeno se espalhe por outras regiões da
cidade.
No entanto, é preciso ter em conta que não estamos mais na época dos
"entrudos", embriões do carnaval de rua, quando a população das grandes
cidades era muito menor. Mesmo naqueles tempos, porém, era preciso pedir
licença ao poder público para desfilar. Ou seja: se algo não muda numa
república, em qualquer época, é a obrigação do Estado de regular o uso
do espaço público, para impedir que grupos de cidadãos - sob qualquer
pretexto, mesmo os ditos "culturais" - o privatizem.
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