O anticlímax
Merval Pereira - O Globo
A antecipação
da aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal
(STF), de notícia bombástica, foi transformada em anticlímax por
decisão do próprio, o que fala bem dele.
Não caiu na tentação de
entrar para a política e anunciou sua saída de cena em momento em que
ela não tem a menor importância para o jogo de interesses que está em
plena ebulição nos bastidores partidários.
Se houvesse decidido
concorrer, e poderia fazê-lo até mesmo à Presidência da República, teria
sido mais criticado do que normalmente é, e todo seu trabalho como
relator do processo do mensalão estaria colocado sob suspeição.
Se
permanecesse no STF até depois da eleição, talvez pudesse ser nomeado
por um candidato oposicionista que eventualmente vença para um cargo
qualquer, desde ministro até embaixador — dando o troco no Itamaraty que
o reprovou, ele está convencido disso, por racismo.
Escolhido por
Lula para representar a diversidade racial no Supremo, Joaquim Barbosa
recusou-se a atuar como um preposto do presidente que o nomeara, e
marcou sua presença no plenário do STF pela independência de posições e
pelo desassombro verbal. E entrará para a História do tribunal pela
condução polêmica, mas eficiente, do processo do mensalão.
Poliglota,
com formação nas melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa,
lamentava que as pessoas não olhassem seu currículo, mas a cor de sua
pele. Ele sempre considerou inaceitável a interpretação que resultasse
em penas mais leves nos casos em julgamento do mensalão, pela gravidade
que via neles, e teve de enfrentar críticas de advogados, inclusive da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos próprios pares, como o
ministro Luís Roberto Barroso — que, entrando no julgamento em sua
segunda fase, a dos embargos infringentes, acusou o plenário anterior do
STF de exacerbar seletivamente as penas no caso de formação de
quadrilha para deixar os condenados mais tempo em regime fechado,
especialmente José Dirceu.
Já como presidente do Supremo, o
ministro Joaquim Barbosa rebelou-se contra essa acusação, dizendo que
Barroso fazia um discurso meramente político sob uma capa de
tecnicalidade.
Aproveitando que Barroso, ao explicar sua expressão
“ponto fora da curva”, disse que ela significava também — além da
exacerbação das penas — “o rompimento com uma tradição de leniência e
impunidade em relação a certo tipo de criminalidade política e
financeira”, Joaquim Barbosa aparteou-o dizendo que na prática,
defendendo a prescrição do crime de quadrilha, Barroso estava sendo
leniente com os crimes que parecia condenar em seu discurso político.
Barbosa
encarnou para o cidadão comum a indignação contra a histórica
impunidade das classes dirigentes no Brasil, o herói vingador em busca
de Justiça, com a capa preta tradicional que lhe dava a aparência de um
Batman tupiniquim.
As críticas de Barbosa ao sistema penal
brasileiro, explicitadas em diversas ocasiões em entrevistas ou mesmo em
declarações em meio aos julgamentos de que participava, explicam seu
empenho em dar penas mais pesadas aos réus.
Em sua opinião, o
sistema penal brasileiro, é “risível”. A preocupação com a prescrição de
algumas penas, como a de lavagem de dinheiro, era realmente um dos
objetivos da aplicação de pena maior por parte do relator Joaquim
Barbosa, e ele chegou a admitir isso na discussão com Barroso.
Por
isso, também, ele errou a mão ao tratar de certos assuntos, como a
permissão para que o ex-todo-poderoso Dirceu trabalhasse fora no regime
semiaberto. Embora a legislação diga que somente depois de cumprir 1/6
da pena é que o condenado tem esse direito, a jurisprudência tem
superado essa exigência há muitos anos, até mesmo pela impossibilidade
de manter em cadeias apropriadas todos os condenados.
Todo o
processo do julgamento do mensalão correspondeu a um avanço da
cidadania, inclusive os bate-bocas ocorridos no plenário do STF
transmitidos ao vivo e a cores pela TV Justiça. Até mesmo o grau de
endeusamento a que foi levado o relator do processo, o ministro Barbosa,
faz parte desse aperfeiçoamento de nossa democracia, que chegará um dia
a não precisar de heróis.
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