O presidente viu definhar seu primeiro mandato e a metade do segundo sem ter aprendido como se relacionar com o Congresso
Dorrit Harazim - O Globo
Na noite de quinta-feira
passada, a grade de programação dos três principais canais de televisão
aberta dos Estados Unidos foi mantida por todos. A ABC transmitiu um
episódio inédito do seriado “Grey’s anatomy”. A CBS apresentou o oitavo
episódio da comédia “The Big Bang theory”. E quem sintonizou na NBC pôde acompanhar o reality show “The biggest loser”, que premia quem consegue perder mais peso.
Nenhuma cedeu espaço à aguardada fala do presidente Barack Obama sobre o sistema imigratório do país. Uma fala que durou menos de 15 minutos e representou o ponto de inflexão mais arriscado do atual governo.
“É incompreensível que as grandes emissoras não tenham transmitido o discurso do presidente”, indignou-se o senador independente pelo estado da Virgínia, Bernie Sanders. “Elas prestaram um desserviço ao povo americano e falharam na sua obrigação de servir ao bem púbico. Não importa quem é a favor ou contra essa reforma. O país precisa claramente de um debate inteligente e informado sobre o tema.”
Quem não titubeou em atrasar a premiação do Grammy Latino de música para transmitir Obama ao vivo foi a rede Univision, de língua espanhola. Ela acabou obtendo a segunda maior audiência da noite na faixa etária dos 18 aos 35 anos. Tudo a ver.
Para a oposição do Partido Republicano, o anúncio do decreto presidencial — que alivia milhões de imigrantes da ameaça de deportação, estabelece normas para arrancá-los da clandestinidade e lhes dá acesso legal ao mercado de trabalho — é uma afronta inadmissível. Afronta à Constituição, afronta ao Congresso, afronta ao eleitorado que menos de um mês atrás deu uma surra nos candidatos democratas ao Legislativo.
“Provocação tirânica”, “bomba partidária”, “cesarismo”, “anarquia”, “impeachment” foram algumas das palavras que brotaram na catarse verbal da oposição. O deputado Mo Brooks, do Alabama, chegou a aventar a hipótese de pena de prisão para Obama. O senador Tom Coburn, de Oklahoma, previu “momentos de anarquia e um surto de violência” no país. Coube ao líder da Câmara, John Boehner, resumir a visão predominante entre seus pares: “O presidente Obama cimentou seu legado de fora da lei e desperdiçou o pouco de credibilidade que ainda lhe restava.”
Apesar da retórica, nem os republicanos querem deportar todos os imigrantes sem documentação instalados em solo americano. Embora de forma não explícita, está entendido que esse segmento da população desempenha uma função vital na economia e precisa de algum tipo de regulamentação.
Mesmo quando a oposição varre fatos e números para baixo do tapete, eles existem. E são eloquentes. Dos estimados 11 milhões de ilegales, mais da metade (62%) está há dez anos ou mais inserida no país. Entre os adultos, um de cada cinco é casado com quem tem cidadania americana ou visto de residência permanente. E quase 4,5 milhões de todas as crianças nascidas nos Estados Unidos são filhos desses pais ou mães em situação irregular.
A tese da sangria econômica e do fardo social associado à imigração irregular tampouco se sustenta. Dados do conceituado (e apartidário) Instituto de Politica Econômica e Tributária, sediado em Rhode Island, revelam que essa fatia da população pagou pelo menos 11,2 bilhões de dólares de impostos em 2010. Estima-se também que sete milhões de trabalhadores sem documentos depositaram mais de 100 bilhões de dólares no fundo de seguridade social e aposentadoria pública (Social Security) ao longo da última década. Pouca coisa não é.
Em sua essência, a insurreição parlamentar ao decreto executivo tem como alvo principal Barack Obama e não tanto os ilegales beneficiados pela medida. No ambiente político-partidário de alta toxicidade que reina em Washington desde a posse de Obama seis anos atrás, é ele o inimigo, o homem a abater. Se necessário, a emparedar. Em última instância, a destituir do cargo.
Inversamente, Obama viu definhar seu primeiro mandato e a metade do segundo sem ter aprendido como se relacionar com o Congresso. Empilhou frustrações e fracassos. Viu se esfarelar o extraordinário capital de confiança e esperança com que foi eleito e reeleito. Talvez tenha recorrido à medida executiva para começar a preencher o verbete, por enquanto minguado, a que terá direito nos livros de História.
Desde sua derrota nas eleições legislativas do mês passado, Obama parece decidido a se reinventar no tempo que lhe resta, desconstruindo o figurino de “pato manco” que costuma ser o destino de todo presidente em fim de mandato. Em ritmo acelerado e simultâneo, decidiu destravar impasses históricos, como a relação com o Irã e com o meio ambiente. E quer ver progressos palpáveis em questões-chave do ideário democrata, como a reforma da imigração.
O timing do anúncio da quinta-feira tornou a medida duplamente indigesta para a oposição, pois dentro de poucas semanas o Partido Republicano empossará sua maioria no Senado e na Câmara. As chances de o projeto de reforma ser aprovado na nova legislatura, portanto, seriam nulas.
Ainda assim, argumenta o analista David Gergen, conselheiro político de quatro presidentes americanos, Obama talvez devesse ter aguardado, tentado alguns meses de negociação infrutífera com o novo Congresso. Só então partir para a medida executiva que, na avaliação de Gergen, é boa para o país.
Acusado de estar subvertendo a Constituição e agir como um monarca, em vez de se comportar como um presidente enfraquecido por um Congresso hostil, Obama consultou dezenas de especialistas em leis de imigração antes de decidir dar o bote. Ele próprio, como se sabe, foi professor de Direito Constitucional em Harvard. Sem falar que antecessores seus (Ronald Reagan, George Bush pai, Bill Clinton e George W. Bush) também recorreram a medidas unilaterais para impedir deportações de imigrantes.
Mas nada disso conta. Como diz uma de suas eleitoras mais ardentes, “se você ama Obama, o cara do decreto é o que você ama. Se você o odeia, esse também é o cara que você odeia”.
Nenhuma cedeu espaço à aguardada fala do presidente Barack Obama sobre o sistema imigratório do país. Uma fala que durou menos de 15 minutos e representou o ponto de inflexão mais arriscado do atual governo.
“É incompreensível que as grandes emissoras não tenham transmitido o discurso do presidente”, indignou-se o senador independente pelo estado da Virgínia, Bernie Sanders. “Elas prestaram um desserviço ao povo americano e falharam na sua obrigação de servir ao bem púbico. Não importa quem é a favor ou contra essa reforma. O país precisa claramente de um debate inteligente e informado sobre o tema.”
Quem não titubeou em atrasar a premiação do Grammy Latino de música para transmitir Obama ao vivo foi a rede Univision, de língua espanhola. Ela acabou obtendo a segunda maior audiência da noite na faixa etária dos 18 aos 35 anos. Tudo a ver.
Para a oposição do Partido Republicano, o anúncio do decreto presidencial — que alivia milhões de imigrantes da ameaça de deportação, estabelece normas para arrancá-los da clandestinidade e lhes dá acesso legal ao mercado de trabalho — é uma afronta inadmissível. Afronta à Constituição, afronta ao Congresso, afronta ao eleitorado que menos de um mês atrás deu uma surra nos candidatos democratas ao Legislativo.
“Provocação tirânica”, “bomba partidária”, “cesarismo”, “anarquia”, “impeachment” foram algumas das palavras que brotaram na catarse verbal da oposição. O deputado Mo Brooks, do Alabama, chegou a aventar a hipótese de pena de prisão para Obama. O senador Tom Coburn, de Oklahoma, previu “momentos de anarquia e um surto de violência” no país. Coube ao líder da Câmara, John Boehner, resumir a visão predominante entre seus pares: “O presidente Obama cimentou seu legado de fora da lei e desperdiçou o pouco de credibilidade que ainda lhe restava.”
Apesar da retórica, nem os republicanos querem deportar todos os imigrantes sem documentação instalados em solo americano. Embora de forma não explícita, está entendido que esse segmento da população desempenha uma função vital na economia e precisa de algum tipo de regulamentação.
Mesmo quando a oposição varre fatos e números para baixo do tapete, eles existem. E são eloquentes. Dos estimados 11 milhões de ilegales, mais da metade (62%) está há dez anos ou mais inserida no país. Entre os adultos, um de cada cinco é casado com quem tem cidadania americana ou visto de residência permanente. E quase 4,5 milhões de todas as crianças nascidas nos Estados Unidos são filhos desses pais ou mães em situação irregular.
A tese da sangria econômica e do fardo social associado à imigração irregular tampouco se sustenta. Dados do conceituado (e apartidário) Instituto de Politica Econômica e Tributária, sediado em Rhode Island, revelam que essa fatia da população pagou pelo menos 11,2 bilhões de dólares de impostos em 2010. Estima-se também que sete milhões de trabalhadores sem documentos depositaram mais de 100 bilhões de dólares no fundo de seguridade social e aposentadoria pública (Social Security) ao longo da última década. Pouca coisa não é.
Em sua essência, a insurreição parlamentar ao decreto executivo tem como alvo principal Barack Obama e não tanto os ilegales beneficiados pela medida. No ambiente político-partidário de alta toxicidade que reina em Washington desde a posse de Obama seis anos atrás, é ele o inimigo, o homem a abater. Se necessário, a emparedar. Em última instância, a destituir do cargo.
Inversamente, Obama viu definhar seu primeiro mandato e a metade do segundo sem ter aprendido como se relacionar com o Congresso. Empilhou frustrações e fracassos. Viu se esfarelar o extraordinário capital de confiança e esperança com que foi eleito e reeleito. Talvez tenha recorrido à medida executiva para começar a preencher o verbete, por enquanto minguado, a que terá direito nos livros de História.
Desde sua derrota nas eleições legislativas do mês passado, Obama parece decidido a se reinventar no tempo que lhe resta, desconstruindo o figurino de “pato manco” que costuma ser o destino de todo presidente em fim de mandato. Em ritmo acelerado e simultâneo, decidiu destravar impasses históricos, como a relação com o Irã e com o meio ambiente. E quer ver progressos palpáveis em questões-chave do ideário democrata, como a reforma da imigração.
O timing do anúncio da quinta-feira tornou a medida duplamente indigesta para a oposição, pois dentro de poucas semanas o Partido Republicano empossará sua maioria no Senado e na Câmara. As chances de o projeto de reforma ser aprovado na nova legislatura, portanto, seriam nulas.
Ainda assim, argumenta o analista David Gergen, conselheiro político de quatro presidentes americanos, Obama talvez devesse ter aguardado, tentado alguns meses de negociação infrutífera com o novo Congresso. Só então partir para a medida executiva que, na avaliação de Gergen, é boa para o país.
Acusado de estar subvertendo a Constituição e agir como um monarca, em vez de se comportar como um presidente enfraquecido por um Congresso hostil, Obama consultou dezenas de especialistas em leis de imigração antes de decidir dar o bote. Ele próprio, como se sabe, foi professor de Direito Constitucional em Harvard. Sem falar que antecessores seus (Ronald Reagan, George Bush pai, Bill Clinton e George W. Bush) também recorreram a medidas unilaterais para impedir deportações de imigrantes.
Mas nada disso conta. Como diz uma de suas eleitoras mais ardentes, “se você ama Obama, o cara do decreto é o que você ama. Se você o odeia, esse também é o cara que você odeia”.
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