Para além do populismo
ALBERTO AGGIO - O Estado de S.Paulo
"Há um fantasma que assombra a América
Latina: esse fantasma é o populismo." Com essa imagem Ernesto Laclau dá
tintas dramáticas a seu A Razão Populista, ao sintetizar suas reflexões a
respeito do que caracteriza os governos chamados de populistas na
América Latina do nosso tempo. A menção ao "fantasma do populismo"
reporta-se a uma temerária e anômala presença que, há algumas décadas,
se imaginava definitivamente afastada do continente.
Desde o pós-guerra, no século passado, uma marca pejorativa acompanha o
populismo. Ele seria o "outro" repugnante, uma manifestação aberrante e
anormal, uma síndrome, um espectro ou mesmo uma recorrente "tentação"
que acompanha os atores políticos latino-americanos como via para
alcançar e manter-se no poder. A paráfrase de Marx é imediatamente
reconhecível e se pode deduzir que Laclau pensa em reservar ao
"populismo atual" um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava
para o comunismo na Europa dos idos de 1848.
Diferentemente das expectativas de Laclau, o populismo do século 21,
pelo menos até o momento, não parece provocar as grandes esperanças que o
comunismo haveria de provocar no seu tempo, muito depois da célebre
frase de Marx. Nos países onde opera, ao contrário, exibe alguns módicos
avanços sociais, baseados principalmente na ampliação do consumo,
apresenta extremas dificuldades econômicas, com a exceção parcial da
Bolívia de Evo Morales, e em quase todos expressa inclinações
antidemocráticas preocupantes.
Para além dessas questões, as diferenciações entre esses governos levam a
uma pergunta inevitável: ainda é possível ou produtivo mobilizar o
conceito de populismo para pensar a América Latina de hoje? A pergunta
tem sentido porque o populismo é reconhecidamente um conceito
problemático, por suas ambiguidade, imprecisão, vagueza, generalização,
elasticidade, subjetividade, etc.
O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de
massas, na América Latina e no mundo. Buscava a construção de uma
sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado,
incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais.
Realizou uma "fuga para a frente", cujo objetivo era realizar
transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos
processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária.
O populismo interditou a via de passagem "clássica" para a modernidade,
caracterizada pela integração autônoma das classes populares às
estruturas políticas da democracia liberal. Ao invés disso, conectou
desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração
político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa
"história sem síntese" foi vista como a principal razão de a sociedade
latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade.
Mais do que um conceito, o populismo passou a ser, portanto, uma teoria
explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana.
A trajetória do populismo no século 20 foi, em certo sentido,
democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao
liberalismo. Foi marcada pela incompletude de um Estado de bem-estar
social limitado, de um programa nacionalista que estatizava apenas
alguns setores da economia, de uma legislação trabalhista e
corporativista que organizava as classes populares e, ao mesmo tempo,
lhes retirava a autonomia. Entretanto, o grau de coesão foi tão marcante
que tais características foram, em geral, mantidas por aqueles que
romperam com o populismo e assumiram o poder em aliança com os
militares.
A luta política contra os regimes autoritários deslocou o populismo do
centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e
promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da
cidadania. No plano mundial, as mudanças alteraram as relações entre
política e mercados, afetando todos os governos. Tudo isso parecia
enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico
passível de ser mobilizável apenas na "era dos Estados nacionais", mas
anacrônico no contexto de globalização.
Contudo a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do
pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas
recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de "revanche
do populismo", que hoje se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela
se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre
governantes e governados abriria passagem para a construção de uma
democracia direta e participativa, superior à democracia representativa,
entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século 21 busca
uma identidade integral entre a instituição do "povo-sujeito" e a
política, anulando a ideia de representação, bem como a noção de
"governo do povo", entendida como uma contradição em termos.
Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que
desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas
democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade,
avessa ao indivíduo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao
populismo do século 21, é sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da
Educação da Bolívia, como "uma espécie de autoritarismo baseado no
consenso".
O populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no
político. Nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o
antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as
liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a
ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é
maior a esse tipo de movimento, que, em termos mais apropriados, nem
deveria ser qualificado de populismo.
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