Mariano Andrade - Contraponto
O ex-ministro Pedro Malan certa vez
disse que, no Brasil, até o passado é incerto. Não é 100% verdade. Há a
certeza de que o passado sempre muda para pior, trazendo consequências
que garantem que o Brasil nunca será o país do futuro.
A recente MP 806 que altera a tributação de fundos exclusivos é a perfeita demonstração disso.
Há cerca de 15 ou 20 anos, a Receita criou o “come cotas”. Parece nome de videogame vintage mas
não é – tratava-se de um sistema para antecipar a cobrança de imposto
de renda devido por cotistas de fundos de investimento.
Antes do nosso Pac-man fiscal,
os cotistas eram tributados somente no resgate. Ou seja, um investidor
pessoa-física que detivesse um título de 5 anos seria taxado apenas no
vencimento do papel, ao passo que o cotista de um fundo de investimento
que detivesse títulos de 1 ano e reinvestisse o capital todo ano só
seria taxado no resgate de suas cotas, quem sabe ao final de 10 anos.
Dito de outra forma, um fundo com estratégia de investimento de curto
prazo tinha uma benesse fiscal em comparação a um investidor
pessoa-física de longo prazo.
O come-cotas acabou com essa arbitragem?
Negativo! Apenas mudou o lado da balança. A maioria dos fundos passou a
recolher o imposto de renda do cotista a cada 6 meses, de maneira quase
que independente do prazo de sua carteira de investimentos. Isto é,
passou a ser relativamente menos interessante investir em fundos, ao
menos do ponto de vista tributário.
Os fundos exclusivos escaparam da
taxação antecipada via come-cotas pois a Receita entendeu que seu
capital tinha natureza de longo prazo. Com isso, mantiveram a regra de
cobrança apenas no resgate. Até agora. Ou melhor, até “algum lugar do
passado”, pois parte do passado muda com a MP 806. Parece filme de
fantasma que volta para assombrar. O Brasil é mesmo um filme de terror
de quinta categoria.
O que a MP 806 faz é alterar “para trás”
a regra de cobrança do imposto de renda do cotista de fundo exclusivo.
Em maio/2018, todo o imposto que estava diferido por anos e anos terá
que ser pago, e que se dane o cotista do fundo para produzir esta
liquidez. Ou seja, mudou a regra de recolhimento para exercícios fiscais
já encerrados. Como se diz no mercado, é uma “grosseria”. É análogo a
extinguir o parcelamento de um Refis contratado e exigir que a empresa,
ainda que adimplente, pague todo o imposto parcelado de uma única
vez – e que o faça agora (e que ela se vire para arrumar a liquidez).
Ou, então, que o detentor de um imóvel que valorizou ao longo do tempo
seja tributado agora, mesmo que não aliene e nem pretenda alienar o bem.
E, de novo, dane-se ele para encontrar a liquidez para honrar a mordida
desleal do leão. Não é nem mordida, é o leão passando a mão na bunda do
contribuinte.
Em suma: muda-se o passado, cria-se
insegurança jurídica e compromete-se o ambiente de negócios no país. Em
termos de arcabouço tributário, já somos piores que o Afeganistão segundo o Banco Mundial e estamos rumando para superar a Somália. Brasil e Somália, dois estados-pirata!
Qualquer existência de arbitragem fiscal
é perigosa e a Receita deveria fechar as brechas. Capitais de longo
prazo deveriam ter tributação mais vantajosa do que investimentos de
curto prazo, independente do veículo – fundo, carteira própria, qual
seja. Isso reduziria o custo de capital de longo prazo, estimulando
poupança e investimento, bem como formação bruta de capital. Os Estados
Unidos já descobriram isso há décadas e a taxação lá se dá, em geral,
pelo princípio de “look through” – a carteira de cada
contribuinte é explodida até o nível do ativo, de forma que não importa o
veículo utilizado para deter cada ativo, e sim o prazo do
investimento. Dito de outra forma, o investidor que detenha um dado
papel diretamente em sua corretora será taxado de forma idêntica a um
outro que detenha o mesmo papel via um fundo de investimentos. E, é
claro, investimentos de longo prazo gozam de taxação mais baixa. Quite simple!
No Brasil, é o oposto. Há arbitragens
fiscais de todo tipo. Há benefícios setoriais – os setores imobiliário,
agrícola e de infraestrutura podem emitir certos papéis isentos de
imposto para investidores pessoas física, e, com isso, auferem o
benefício de captar a taxas menores. Como não há almoço de graça, quem
paga isso são os contribuintes e as empresas dos setores não-ungidos,
que registram um custo de capital maior. É a versão 2.0 dos campeões
nacionais – sabemos como este filme termina, vide JBS. Esse sistema
também é convidativo às famosas malandragens brasileiras, levando até
cadeia de fast-food a se proclamar empresa agrícola para capturar o benefício. Alguém vai num veggie burger aí?
Há também a arbitragem da
sopa-de-letrinhas. FIDCs têm uma dada tributação, FIPs têm outra, FIAs
têm diferimento, etc. Ou seja, não há um claro incentivo ao capital de
longo prazo, mas há siglas mais vantajosas que outras.
Essas arbitragens não existem só no
campo dos investimentos. O sujeito que aluga um imóvel não pode deduzir
esta despesa de seu imposto de renda, mas o locatário tem que oferecer
sua renda de aluguel à tributação. Resultado: o custo de moradia sobe e
desincentiva-se a atividade imobiliária. Mas esperem: os fundos
imobiliários que detenham imóveis alugados podem distribuir essa renda
para seus cotistas com isenção de imposto de renda. Um morde-sopra
insano: a Receita dá um tabefe numa bochecha e um beijo no outro lado.
Mas não se engane, distribui muito mais tabefes do que beijinhos.
**
A MP 806 tem o claro papel de tapar
buraco fiscal – corrigindo: ajudar a tentar tapar. Não foi a primeira e
nem será a última. O Ministério da Fazenda está pendurando um estado
paquidérmico em fios de nylon, tentando maquiar o rombo fiscal com
receitas não-recorrentes. O elefante só engorda, e portanto mais fios de
nylon são necessários. O limite disso é que as pessoas se cansam da
carga fiscal tupiniquim e vão morar em outro lugar… Fenômeno este que já
está a pleno vapor e que é, de fato, a decisão racional: aqui temos
estado caro e ruim. Muito caro e muito ruim. Futebol e praia tem em
outros lugares do mundo também. Bye bye, Brazil.
Os badalados ministros Meirelles, Levy e
Malan nada fizeram além de pendurar novos fios de nylon. “Fiscalismo”
brasileiro é isso: falta coragem para parar de colocar fios e mandar o
elefante emagrecer. Ronald Reagan e Margaret Thatcher fizeram o certo:
diminuíram impostos, colocaram o elefante na dieta e construíram
economias vibrantes e décadas de progresso. Seria melhor termos um
ministro sem pompa ou renome, mas com peito para “trucar” esse processo
de cubanização que estamos vivendo há décadas: se a Receita se empenhar
em esgotar todas as fontes de arrecadação, seremos uma sociedade onde
todos dependem do estado (pois não há renda discricionária) e o estado
depende da sociedade (para tributá-la). Caipirinha goes Cuba Libre. Alguma dúvida de que trata-se de um Plunct-Plact-Zum?
A MP 806 compromete o futuro. Além de
não alinhar tributação com prazo de comprometimento do capital, ela é um
tiro no peito na indústria de fundos de investimento. Tributariamente,
passa a ser mais eficiente até para os investidores mais parrudos (e que
investiam via fundos exclusivos) deter seus investimentos diretamente
em seu CPF. Ocorre que muitos deles são médicos, engenheiros, advogados,
empresários que passarão a desviar tempo de sua atividade principal
para organizar seus investimentos e, provavelmente, terão uma carteira
pior, já que não contarão com o auxílio de um profissional do setor
financeiro. Duplamente ruim: emprego sub-ótimo de recursos (tempo e
energia) levando a uma formação de capital bruto abaixo da potencial
(rentabilidade pior comprometendo crescimento da poupança).
Se é para mexer no passado, que tal
darmos uma de McFly e voltarmos pro momento onde foram criadas as
inúmeras regalias para parlamentares? Isso sim daria legitimidade à
nossa máquina do tempo. Depois, passaríamos para apagar a criação da
seguridade pay-as-you-go e para endireitar (com trocadilho) a
lamentável Assembleia Constituinte de 1987. Seria um passeio e tanto,
como muitos sacos de entulho como lembrança de viagem. Mas tornaríamos
nosso pretérito um pouco menos imperfeito.
Acreditar que o Brasil vai viver um
ciclo longo de juros baixos com esta gestão fiscal é um otimismo
exagerado. Mais provável que tenhamos um novo vôo de galinha.
Corrigindo: como o dinheiro está acabando e os geradores de riqueza indo
para a Flórida ou Portugal, vamos ter um vôo de elefante… Temos que
torcer para termos nascido Dumbo.
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