sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Vamos continuar a brincar de avestruz?
Políticas de proteção setorial são ótimas quando funcionam. O problema ocorre quando fracassam. Esse tem sido o caso da indústria automobilística nos últimos anos.
Desde o fim dos anos 2000, o setor tem tido dificuldade em competir com a produção de países como China e Coreia do Sul, nos automóveis de massa, e de alguns europeus, no caso de carros de luxo.
Em reação a essas dificuldades, o governo brasileiro criou o Inovar-Auto (Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores), que introduziu uma alíquota adicional de 30 pontos percentuais sobre os carros importados desde que o seu produtor não tivesse uma fábrica já instalada no Brasil.
Deve-se ressaltar que o Brasil faz parte da OMC (Organização Mundial do Comércio), que tem um conjunto de regras a ser obedecido pelos países signatários, como a restrição contra o tratamento preferencial para a produção nacional.
Com o Inovar-Auto, os importados sem fábricas por aqui passaram a pagar uma alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) 30 pontos percentuais maior do que os demais, o que claramente fere a regra de não discriminação dos importados. Não surpreende que tenhamos sido condenados pela OMC.
O fracasso do Inovar-Auto não se resume ao desrespeito a OMC. Segundo estudo recente do Banco Mundial, o Inovar-Auto também fracassou em estimular a pesquisa e desenvolvimento no setor, o que, oficialmente, seria o seu principal objetivo.
O programa também teve efeitos colaterais que prejudicaram ainda mais a competitividade do setor. Muitos produtores se viram compelidos a produzir por aqui, mesmo que as suas fábricas fossem pouco produtivas. Afinal, a eficiência das fábricas de carros depende da escala da produção, em geral mais de 200 mil unidades por ano. O mercado brasileiro para diversos modelos, porém, é reduzido, e o resultado foi a proliferação de pequenas fábricas para produzir poucos milhares de automóveis. Esse era o preço a pagar para evitar o imposto adicional.
Em 2013, quando a produção ainda foi muito alta, somente Fiat, Ford, GM e VW produziram mais do que 300 mil veículos por fábrica.
No bloco seguinte, tivemos a Renault com 141 mil, Honda com 135 mil e Toyota com 130 mil. Na sequência, Peugeot-Citroën com 72 mil, Mitsubishi-Suzuki com 43 mil e Caoa (Hyundai) com 35 mil.
Evidentemente, com a crise, a produção reduziu-se ainda mais, de 3,5 milhões, em 2013, para 2,1 milhões, em 2016. Neste ano, a BMW licenciou 8.690 unidades, a Mercedes, 3.080, e a Jaguar, 753.
Por qualquer critério, produzimos um número excessivo de modelos em demasiadas fábricas. Temos, atualmente, 22 montadoras de veículos produzindo no Brasil. O excesso de produtores locais resultou na imensa ociosidade do setor com a crise que se inicia em 2014.
Embora o mercado interno seja grande, ele oferece escala para apenas seis ou sete montadoras. A política de atração de diferentes marcas para produzir no país resultou em empresas produzindo em uma escala abaixo da ideal, aumentando o custo unitário dos produtos. Para continuarem lucrativas, elas dependem de benefícios fiscais.
ANESTESIA
O Inovar-Auto não atacou o problema estrutural da indústria, que é a falta de competitividade. Simplesmente concedeu uma anestesia de seis anos –de 2012 até 2017– sem enfrentar as dificuldades. De quebra, estimulou a proliferação de fábricas ineficientes, o que agravou o problema. Tática de avestruz, que enfia a cabeça no buraco para não enfrentar o problema.
O programa teve um imenso custo de oportunidade. Nosso escasso capital foi alocado a fábricas que ficaram com cerca de 50% de capacidade ociosa na crise, em vez de terem sido utilizados em outras atividades mais benéficas para a sociedade, como infraestrutura e inovação.
Não temos apenas carros mais caros, em meio a fábricas a meia capacidade e a trabalhadores demitidos. Temos menos estradas e portos.
Esse problema deve se agravar nos próximos anos. Inúmeras economias na Ásia, além da China, têm apresentado crescimento elevado, cerca de 6,5% ao ano entre 2017 e 2022, segundo o FMI. Amanhã teremos a competição, digamos, das montadoras indianas e teremos que aumentar ainda mais as medidas contra a importação.
Existem, essencialmente, dois modelos de produção de automóveis. Há um seleto grupo de países que sediam as grandes montadoras mundiais –EUA, Alemanha, Japão, França e Coreia do Sul– que, além das unidades de montagem, mantém as atividades mais nobres, como pesquisa e inovação. Ressalte-se que, desde o pós-guerra, a Coreia do Sul é o único caso de ingresso nesse grupo.
O segundo modelo de inserção é estimular o desenvolvimento de setores da indústria em que o país tem vantagens competitivas, sendo o restante da produção importado de outros países. Essa tem sido a opção da Malásia, da Turquia e da Tailândia, entre outros. O México, por exemplo, produziu, em 2015, pouco menos de 3,5 milhões de unidades, sendo 2 milhões de veículos de passageiros e 1,4 milhão de veículos comerciais leves. Quase metade da sua produção de veículos de passageiro foi destinada ao mercado externo, principalmente a outros países, como EUA e Canadá. Adicionalmente o México tem 12 acordos bilaterais e alguns acordos de comércio preferencial.
VELHOS ERROS
Foi noticiado que o governo prepara o programa Rota 2030 em substituição ao Inovar-Auto. Um novo programa deveria atacar os problemas de competitividade que afligem a indústria e tentar aumentar a especialização do Brasil em alguns tipos de veículos e componentes em meio à abertura da economia para que passemos a integrar as Cadeias Globais de Valor (CGV), como no caso do México. Foi essa opção que viabilizou a Embraer.
O pouco que se conhece do programa, porém, indica que ele repete os velhos erros, além de criar novos problemas. Continua a haver discriminação de importados na competição com os nacionais, além de aumentar os custos de conformidade e criar mais um novo regime tributário especial em meio à tentativa de avestruz em reação às vedações da OMC.
Há um injustificável benefício para o segmento de veículos de luxo, a título de estimular a inovação, mas que parece apenas subsidiar um segmento que trabalha com custos altos ao produzir em escala reduzida. São concedidos benefícios tributários para estimular a eficiência energética e a segurança veicular. As mesmas metas poderiam ser obtidas com regulação que obrigasse padrões mínimos de consumo e segurança, sem a necessidade de renúncia fiscal.
O relatório do Banco Mundial, aliás, destaca a peculiaridade do caso brasileiro de tentar produzir integralmente toda a cadeia produtiva do setor automobilístico, ao contrário da maioria das experiências dos demais países nas últimas décadas.
Desistir da estratégia do avestruz poderá reduzir a produção local de automóveis e de alguns setores da cadeia. Mas é melhor do que insistir na velha política de proteção que fracassou sistematicamente nas últimas décadas.
Sempre se cita a Austrália, que terminou por perder o setor automobilístico ao se abrir. No Brasil, no entanto, deve ser possível manter uma produção doméstica expressiva, em razão da distância que temos dos maiores centros produtores e do mercado interno bem maior do que a Austrália.
Outra opção seria tentarmos o modelo adotado pela Coreia do Sul e pelo Japão, com o desenvolvimento completo de uma indústria de capital nacional. Em ambos os casos, essa opção, adotada em tempos bem diferentes, antes das CGV, necessitou de muito esforço e de uma eficiente coordenação do setor público, além de, principalmente, muita poupança e educação básica de qualidade.
Como aponta Justin Lin, a vantagem comparativa de um país pode ser alterada profundamente em caso de rápida acumulação de capital humano e elevada poupança. Uma política industrial, nesse caso, pode auxiliar a economia a encontrar a sua nova vantagem comparativa.
Nunca perseguimos esse caminho. Não sabemos se após 60 anos seria o momento de tentarmos. A China, por exemplo, tenta desenvolver as suas montadoras. Em que pesem as elevadíssimas taxas de poupança, a qualidade do sistema educacional e a coordenação do setor público, o seu resultado não tem sido muito animador. Até o momento, 2/3 das exportações chinesas de manufaturados devem-se a empresas de capital externo. A montadora Chery procura-se integrar-se com as CGV –como no caso da Embraer.
Além do mais, não temos as condições que parecem necessárias para esse modelo. Afinal, não conseguimos prover a educação básica para a maioria da sociedade, temos uma baixa taxa de poupança e o Estado brasileiro não tem apresentado as características necessárias para coordenar programas dessa natureza. Com frequência, essas políticas apenas resultam na distribuição de benefícios a grupos de interesse, sem ganhos de eficiência.
Não é verdade que o desenvolvimento de São Paulo se deveu à instalação da indústria automobilística, afinal já era a economia mais rica e o maior mercado consumidor bem antes dos anos 1950.
Além disso, a evidência indica que os municípios de São Paulo que receberam imigrantes com maior escolaridade no começo do século 20, independentemente da sua especialização produtiva, ainda hoje apresentam maior renda por habitante.
Restam muitas dúvidas: por que se faz necessária uma política que força o contribuinte nacional a transferir renda para a indústria automobilística? Quais os seus custos e os seus benefícios? Quantos gastos sociais são sacrificados com a renúncia fiscal decorrente do incentivo à indústria automobilística? Por que esse setor e não outros?
Corrigir os equívocos do Inovar-Auto não será fácil. Teremos que viabilizar uma transição que reduza os custos do ajuste de trabalhadores e de empresas que investiram em um país que cavou o seu próprio buraco. Podemos insistir na estratégia do avestruz. Alternativamente, podemos começar a enfrentar os nossos difíceis problemas para que, finalmente, a indústria possa caminhar com as suas próprias pernas.

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