sábado, 29 de março de 2014

Leis de direitos autorais mantêm livros eletrônicos trancados
Hilmar Schmundt - Der Spiegel
Quando o escritor alemão Johann Gottfried Seume fez seu famoso "Passeio a Siracusa", como chamou seu livro sobre sua caminhada de nove meses à Sicília em 1802, ele fez questão de visitar várias bibliotecas locais ao longo do caminho. Na época, frequentemente era impossível retirar livros. Se quisesse lê-lo, tinha que fazê-lo lá.
Hoje, a situação fechou o círculo. Se um estudante em Friburgo quiser ler uma cópia física de um livro da biblioteca universitária em Basel, ele ou ela pode simplesmente requisitar um exemplar por meio de um empréstimo interbibliotecas. Mas se apenas uma versão eletrônica estiver disponível, os empréstimos interbibliotecas geralmente não são uma opção. O estudante não terá escolha a não ser tomar um trem e seguir para a Suíça para ler o livro em um computador da universidade.
É um paradoxo. Livros que viajaram por todo o mundo por meio de empréstimo interbibliotecas, na era do papel do século 20, são salvaguardados localmente na era da Internet. De fato, é a própria facilidade com que as publicações eletrônicas podem ser enviadas para todo o mundo que resultou em agora serem trancadas atrás de grades digitais. O livro não vai ao leitor, o leitor vem ao livro –como no século 19.
Os empréstimos interbibliotecas foram formalizados na Prússia em 1893 com o "edital referente a empréstimo". Mas ele não se aplica ao novo mundo eletrônico. Hoje, as editoras ditam suas condições às bibliotecas, motivadas por seu medo justificável de cópias pirateadas. Infelizmente, são os leitores honestos que pagam o preço.
Muitas editoras não emitem licenças de empréstimo para livros eletrônicos: editoras alemãs influentes como Droemer Knaur, Kiepenheuer & Witsch, S. Fischer e  Rowohlt, por exemplo, não são encontradas na biblioteca de empréstimo online em língua alemã Onleihe. Isso significa que obras importantes como o novo estudo definitivo da Primeira Guerra Mundial, do cientista político Herfried Münkler, de Berlim, não pode ser pego por empréstimo eletronicamente. É uma situação que seria inimaginável no mundo do papel.

'Absurdos deliciosos'

De fato, muitos livros eletrônicos só existem em plataformas fechadas como iBooks da Apple ou Kindle da Amazon. E os programas de proteção usados por muitas editoras tornam o acesso aos seus produtos ainda mais difícil. A Adobe, cujo sistema fornece a base para a maioria dos livros eletrônicos, atualmente está revisando seu programa. Consequentemente, muitos aparelhos leitores mais velhos poderão não mais exibir os livros eletrônicos mais novos.
A questão não é apenas o mais recente romance policial best-seller. A questão é o centro da economia do conhecimento: ensaios, artigos e livros de pesquisadores. "Nós temos milhares de livros eletrônicos que poderíamos disponibilizar aos nossos usuários pela Internet", diz Harald Müller, bibliotecário chefe do Instituto Max Planck para Direito Público e Direito Internacional Comparável em Heidelberg. "Mas frequentemente não podemos porque as licenças são muito restritivas."
As leis de direito autoral geralmente levam a "absurdos deliciosos", diz Müller. Se, por exemplo, ele quiser ler um ensaio de uma biblioteca americana por empréstimo interbibliotecas, "eles o imprimirão em papel e o enviarão por fax –e então eu escanearei para nossos computadores aqui". Enviá-lo como anexo por e-mail é proibido.
É legítimo, é claro, as editoras tentarem se defender de violações de direitos autorais. Mas, por ora, as estratégias que elas empregam são quase exclusivamente uma inconveniência para leitores bem-intencionados. Os usuários de bibliotecas, por exemplo, "não podem imprimir nossos livros eletrônicos ou salvá-los em pendrives", diz Oliver Hinte, chefe da comissão legal da Associação das Bibliotecas Alemãs. Mas o que alguém deve fazer? Copiar trechos à mão?
"Soluções técnicas apropriadas para impedir a pirataria estão disponíveis há muito tempo", diz Gerald Schleiwies, do sistema municipal de bibliotecas em Salzgitter, perto de Hanover. "Marcas d'água digitais permitem que os documentos sejam personificados. Meu nome está presente de modo proeminente em cada página e não pode ser tão facilmente removido como a chamada cópia protegida."
Schleiwies está escrevendo atualmente sua tese de Ph.D. e viaja por toda a Alemanha para sua pesquisa. Ele tem cinco cartões de biblioteca diferentes. "O escaneamento e envio por e-mail de trechos não é mais permitido", ele diz.

O fantasma do direito autoral

Há abundância de exemplos absurdos. Franco Moretti, por exemplo, um professor de inglês da Universidade de Stanford, ganhou renome com seu estudo "Atlas do Romance Europeu". Mas sua pesquisa termina no ponto em que leis rígidas de direitos autorais, que protegem obras por até 70 anos após a morte do autor, representam um obstáculo. É perigoso copiar obras mais atuais de literatura, diz Moretti. "O fantasma do direito autoral as mantêm protegidas demais para fazermos incursões. É uma pena."
"Atualmente, os detentores de direitos autorais costumam estar em uma posição única de poder", diz Hinte. "Uma reforma e simplificação das leis de direitos autorais há muito é necessária."
Em muitos casos, são os leitores que, por meio de seus impostos, pagam os autores nas universidades cujos estudos eles não podem ter acesso. Também é provável que muitos professores não possam pagar a assinatura da revista científica na qual o trabalho deles é publicado. Assinaturas de até 15 mil euros por ano não são uma raridade. "The Journal of Comparative Neurology", por exemplo, custa mais de 20 mil euros por ano. Os autores que publicam suas obras nessa revista geralmente não veem um único centavo por seu trabalho. Editoras como a Reed Elsevier, em comparação, conseguem regularmente margens de lucro antes dos impostos de mais de 25%.
"As editoras de revistas científicas ganham muito dinheiro porque coletam seu produto gratuitamente dos contribuintes e então o vende de volta a preços inflacionados", diz Günter M. Ziegler, um ilustre matemático da Universidade Livre de Berlim.
Até dois anos atrás,. Ziegler era coeditor de duas revistas de matemática na Reed Elsevier. Então ele se juntou a um boicote que já conta com o apoio de 14 mil outros. Ele agora está trabalhando para uma revista acadêmica que está disponível para todos pela Internet, segundo os princípios do acesso aberto. A Elsevier diz que o conflito é mais um equívoco do que um conflito de interesses.

De volta ao futuro

Concessões iniciais foram feitas. Em janeiro, instituições como o centro de pesquisa nuclear CERN, com sede em Genebra, começaram a pagar a Elsevier um valor fixo pela publicação de revistas de física que então se tornam disponíveis gratuitamente.
Ajustes na lei de direitos autorais costumam ser minúsculos, mas eficazes. Esse é o caso de obras mais antigas cujos autores não podem mais ser determinados. Antes, por exemplo, jornais velhos e amarelados não podiam ser digitalizados até que todos os escritores envolvidos fossem contatados. Obras de valor cultural estavam sendo sacrificadas no altar do direito autoral. Desde o início deste ano, novas regras referentes a limitações e exceções no direito autoral facilitam a digitalização de obras órfãs.
A minimudança também possibilita aos pesquisadores postarem seu trabalho na Internet –mas apenas um ano após sua publicação em uma revista científica. Os primeiros deverão fazê-lo em 2015.
Até lá, pessoas em busca de publicações ou artigos específicos serão forçadas a caçar a oferta artificialmente limitada de livros eletrônicos pelo privilégio de lê-los nos monitores da biblioteca e fazer anotações à mão, como os monges costumavam fazer. Ou como Seume fez durante sua jornada a Siracusa há mais de 200 anos. De volta ao futuro.
Tradutor: George El Khouri Andolfato

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