quinta-feira, 30 de julho de 2015

O dentista que matou o leão errado
Ricardo Garcia - Público
Onda de indignação pelo abate de Cecil, o mais famoso felino do Zimbabwe, reabre discussão sobre a caça de grandes animais em África
Aos 55 anos, o dentista norte-americano Walter James Palmer nunca imaginaria vir a ser tão conhecido. O seu nome tornou-se numa das hashtags mais citadas no Twitter e no Facebook. Na página da sua clínica River Bluff Dental no site Yelp, subitamente surgiram milhares de comentários. A própria clínica em si, na avenida Rhode Island, em Bloomington, Minnesota, promete tornar-se num local de peregrinação. Um artista dedicou-lhe, ali mesmo, uma pintura nesta quarta-feira.
Palmer não deverá, porém, aparecer publicamente tão cedo, para responder a este súbito interesse. O dentista é alvo de uma fúria colectiva por ter matado Cecil, o majestático leão de juba preta que era a atracção número um do Parque Natural de Hwange, no Zimbabwe.
Palmer pagou quase 50 mil euros para abater o animal. Mas a caçada, ocorrida no princípio de Julho, era alegadamente ilegal. O leão foi atraído para fora do parque. Não havia licença para o matar.
Theo Bronkhorst, um guia profissional que acompanhou Palmer, foi esta quarta-feira acusado por um tribunal de Hwange, a 800 quilómetros da capital Harare, de nada ter feito para impedir o abate do leão. Saiu sob fiança e terá de se apresentar regularmente às autoridades. Honest Ndlovu, o dono da herdade onde tudo aconteceu foi ouvido pela justiça e regressará ao tribunal no princípio de Agosto.
Matar Cecil – com uma flechada e um tiro – foi como assassinar um ícone nacional, subitamente promovido a mártir global. Por esse acto, o dentista está a ser alvo de uma interminável torrente de ferozes comentários nas redes sociais. Pedem que lhe retirem a licença de dentista e de caçador, que seja preso, extraditado e julgado. Sugerem outras vinganças muito piores.
A polícia de Bloomington reforçou o patrulhamento perto da sua clínica, para onde estava previsto um protesto ao fim da tarde (noite em Lisboa). O estabelecimento estava encerrado. Palmer escreveu aos seus pacientes explicando que o consultório estava a ser inundado de “um substancial número de chamadas e comentários, de pessoas que estão zangadas com esta situação e com a prática da caça em geral”, segundo o jornal Star Tribune, do Minnesota, onde fica Bloomington. “Entendo e respeito que nem todos compartilhem das mesmas opiniões sobre a caça”, acrescentou.
Cecil terá sido morto sido morto no dia 1 de Julho. Foi avistado à noite, aparentemente dentro do Parque Natural de Hwange, no Oeste do Zimbabwe. Com um animal morto atado a uma carrinha, Palmer e outros caçadores que lhe serviram de guias atraíram o leão para fora do parque, segundo Johnny Rodrigues, da Zimbabwe Conservation Task Force, uma organização criada em 2001 para patrulhar a caça ilegal nos parques naturais do país.
Palmer atingiu-o com um arco e flecha, a arma de eleição com que o dentista pratica a caça a grandes animais. Ferido, o leão vagueou durante quase dois dias, até ser novamente encontrado pelos caçadores. Morreu finalmente com um tiro.
Cecil foi encontrado dias depois, sem a cabeça e a pele, supostamente retiradas como troféus de caça. Um colar com equipamento GPS, que permitia a cientistas da Universidade de Oxford acompanhar o animal, tinha sido parcialmente destruído.
Esta semana, quase um mês depois, Walter Palmer foi identificado como o caçador e duas pessoas no Zimbabwe foram presentes a tribunal.
Na terça-feira, o dentista divulgou um comunicado lamentando o ocorrido. “Contratei vários guias profissionais e eles asseguraram todas as licenças necessárias. Tanto quanto sei, tudo relacionado com esta viagem foi legal e conduzido de forma adequada”, escreveu.
O dentista disse que, até ao fim da caçada, “não fazia ideia” de que o leão era conhecido e que trazia uma coleira. “Confiei na experiência dos meus guias profissionais locais para garantir uma caçada legal”, argumentou. “Lamento profundamente que a busca de uma actividade que eu adoro e pratico de forma responsável tenha conduzido à morte deste leão”, completou Palmer.
Risco de extinção
A morte de Cecil não foi apenas o desfecho de uma expedição que correu mal. Nela estão todos os ingredientes de uma polémica candente sobre a caça legal a grandes animais em África, mesmo que estejam em risco de extinção.
Os leões (Panthera leo) são considerados “vulneráveis” pela Lista Vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza. Dos 200.000 que vagueavam quase por todo o continente africano há um século, haverá agora menos de 40.000.
Alguns países estão a permitir que determinados exemplares sejam caçados, ironicamente como uma política de preservação da espécie. Os altos valores cobrados são aplicados em projectos de conservação, muitas vezes beneficiando comunidades locais pobres. Um estudo publicado em 2011 sugere que a caça anual de um leão por cada dois mil quilómetros quadrados de área é sustentável, em termos populacionais.
Este tipo de caça é feito normalmente nas áreas próximas de parques naturais – como ocorreu no caso de Cecil. Mas também estão a ser criados leões em cativeiro, em parte para serem alvejados em zonas cercadas. Com os lucros desta actividade, teoricamente mais animais são libertados do que mortos. Na África do Sul, já há cerca de 160 herdades que trabalham desta forma, com 6000 leões, dos quais 1000 são caçados anualmente, segundo a revista National Geographic.
“A caça sustentável de troféus faz parte de uma boa gestão da conservação da vida selvagem. Incentiva as pessoas tomarem conta da natureza”, argumenta Adri Kitshoff, director da Associação de Caçadores Profissionais da África do Sul, citado pela Reuters. “É muito fácil cairmos na armadilha das emoções e não nos concentrarmos nos factos."
Enormes riscos
Edward Bourke, da fundação australiana Saving the Lion, discorda e diz que o caso de Cecil mostra precisamente o contrário, que a caça legal de grandes mamíferos tem enormes riscos. “Há pressão internacional suficiente para uma mudança. Há oportunidades para se oferecerem alternativas, incluindo ajuda internacional para o estabelecimento de ambientes seguros, como parques nacionais ou zonas de eco-turismo”, disse à Reuters.
Não são apenas os leões que têm vindo a ser abrangidos por programas de caça legal em África, mas também outros grandes mamíferos emblemáticos, como rinocerontes, elefantes, leopardos e antílopes.
O maior mercado para esta actividade é o norte-americano. No ano passado, um milionário do Texas arrematou por 319.000 euros, num leilão do Dallas Safari Club, o direito de abater na Namíbia um rinoceronte preto, uma espécie “em perigo crítico” de extinção. A população deste animal africano caiu 97% entre 1960 e 2005. Está a recuperar mas há apenas 5000 indivíduos.
Só em Abril é que o Departamento de Pescas e da Natureza dos Estados Unidos informou que autorizaria a importação da cabeça deste e de outro rinoceronte preto, cuja licença também tinha sido vendida pela Namíbia.
Não foi uma decisão fácil. As autoridades norte-americanas receberam 15.000 comentários durante a consulta pública, além de petições com 135.000 assinaturas. Entre as opiniões, estava a da organização ambientalista internacional WWF, que trabalha há 20 anos na Namíbia e era a favor da importação.
O principal argumento em favor da autorização é o de que matar alguns exemplares por ano faz parte do programa de conservação de rinocerontes da Namíbia e na verdade é precisamente para fomentar o aumento populacional – em parte por evitar as lutas entre machos. O dinheiro é aplicado na monitorização dos rinocerontes, na investigação da caça ilegal e noutras medidas relacionadas com a preservação da espécie.
Mas há uma grande pressão contra a caça aos grandes mamíferos. Em Março, a Austrália proibiu a importação ou exportação de partes de leões como troféus de caça. Dois meses depois, a companhia aérea Emirates Airlines também anunciou que passaria a recusar o transporte de troféus de leões, tigres, elefantes e rinocerontes. A South African Airways já tinha tomado uma decisão semelhante.
Os "big five"
O caso de Cecil motivou uma petição online para que o Zimbabwe pare de emitir licenças de caça para animais ameaçados. Até esta quarta-feira à noite, 500.000 pessoas já a tinham assinado.
Nos EUA, o Departamento de Pescas e da Natureza manifestou-se “profundamente preocupado” com a morte de Cecil. “Estamos a reunir factos sobre o caso e vamos auxiliar o Zimbabwe naquilo que nos solicitarem”, disse à Reuters a porta-voz Vanessa Kauffman.
O dentista Walter Palmer também se mostrou disponível para ajudar. Mas para já, será difícil vencer a onda de indignação que se gerou contra si. Logo que a sua identidade foi revelada, circularam fotos suas de outras caçadas, ao lado de grandes animais também mortos a arco e flecha – incluindo uma leopardo, um rinoceronte e um alce. Também se soube que, em 2008, Palmer foi condenado por ter abatido um urso fora da zona onde estava autorizado a caçar, em 2006, no estado de Wiscosin.
“Ele tem uma vida intensa, movimentada. Caçar é a sua grande paixão”, disse um amigo, Dennis Dun, ao jornal Star Tribune. É decididamente um homem que gosta de adrenalina: “Ele já apanhou todos os cinco dos ‘big five’ da caça em África, incluindo um rinoceronte, que é o animal mais perigoso de se caçar com arco e flecha”.

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