Turquia ataca o inimigo errado
Ao dar mais ênfase ao combate aos curdos, Erdogan só facilita a vida do Estado Islâmico
Clóvis Rossi - FSP
A mais direta análise sobre os ataques da Turquia ao EI (Estado
Islâmico) e, principalmente, às forças curdas no Iraque é de Cengiz
Candar, colunista do jornal "Radikal" e do "site" Al-Monitor.
É assim: "Se o governo do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento, no
poder há 12 anos) se engaja em ataques diários contra alvos do PKK
[Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado terrorista pela
Turquia], ao mesmo tempo em que anuncia que tais ataques continuarão, é
preciso ser estúpido para não perceber que o objetivo é criminalizar o
PKK e marginalizar o HDP, forçando-o a cair abaixo da barreira
eleitoral".
Um pouco de memória: HDP é o Partido Democrático do Povo, também curdo,
mas legal. Obteve 13% dos votos na eleição de junho, superando a
barreira dos 10% e, com isso, tirando do AKP, do presidente Recep Tayyip
Erdogan, a maioria absoluta a que se habituara.
Sem maioria, o AKP negocia uma coligação há quase dois meses, sem sucesso, Se ela não for formada logo, haverá nova eleição.
Nelas é que a demonização dos curdos em geral e de seu braço
político-eleitoral, o HDP, pode levá-lo a não superar a barreira dos 10%
dos votos e, portanto, a ficar de fora do Parlamento –o que, por sua
vez, facilitaria a recuperação da maioria absoluta pelo partido de Recep
Erdogan.
Essa visão míope e eleitoralista pode até dar certo internamente, mas,
em matéria de enfrentamento ao Estado Islâmico –o verdadeiro inimigo da
Turquia, dos curdos, dos EUA e da Europa– tende a ser um tiro no pé.
Analisa, por exemplo, Steven Cook, pesquisador-sênior de Estudos de
Oriente Médio do Council on Foreign Relations, ao falar do apoio que os
Estados Unidos deram aos ataques turcos:
"Washington ficou na estranha posição de dar essencialmente sinal verde
para [a Turquia] combater alguns dos mais efetivos lutadores naquele
conflito [contra o Estado Islâmico] –os curdos, tanto os do PKK como
aqueles de seus primos sírios, as Unidades de Proteção do Povo".
Reforça Dan de Luce, correspondente para Segurança Nacional da revista "Foreign Policy":
"Washington pode estar autorizando Ancara a atacar as únicas forças no
terreno que se mostraram efetivas contra o Estado Islâmico."
Além do objetivo eleitoral já citado, deve estar nos cálculos de Erdogan
que a efetividade dos curdos iraquianos contra os radicais islâmicos
tende a aguçar o apetite dos curdos turcos por mais autonomia ou até
independência.
Diz, por exemplo, Tozun Bahcheli, cientista político da Western University (Canadá):
"O governo turco vê os curdos politicamente ativos como uma ameaça ainda
maior que o EI, porque põem em risco a integridade territorial turca,
ao contrário do EI, com toda a sua horrível ideologia e métodos
horrendos".
Os curdos são um grupo étnico sem território próprio e estão (ou estavam
até a semana passada) em negociações para um cessar-fogo com o governo
turco.
Os ataques recentes ameaçam claramente o processo de paz em andamento há três anos.
Só não ameaçam de fato o verdadeiro inimigo, o Estado Islâmico.
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