O governo é o maior contratante de obras e serviços, controla boa parte do crédito e é dono de empresas em setores cruciais
Carlos Alberto Sardenberg - O Globo
Não foi
apenas o capitalismo de amigos que assolou o Brasil. Foi pior: uma
mistura de dois desvios do capitalismo, o de amigos com o estatal.
A relação entre setores privados e governo existe em qualquer país capitalista, mesmo naqueles de menor presença do Estado na economia. As empresas sempre têm o que conversar com a administração pública, seja com o Executivo, seja com o Legislativo. Leis, regulamentos e burocracias afetam a atividade econômica, de modo que é normal o interesse das companhias privadas em participar de algum modo das decisões políticas.
A diferença é que essa relação pode ser legal e regulada — o caso do lobby nos Estados Unidos, por exemplo — ou, digamos, informal. Nas duas situações pode haver promiscuidade, mas é claro que a maior possibilidade de desvios ocorre no modo informal.
No mundo todo, hoje, está em curso um processo de normatizar as relações entre agentes públicos e privados. Em muitos lugares, chega-se a detalhes: os encontros devem ser públicos, com agenda oficial, o burocrata ou legislador não pode ter almoço grátis, nem presentes, e por aí vai.
Mas tudo isso é relativamente recente. Não faz muito tempo que multinacionais americanas e, sobretudo, europeias podiam abater como despesa as comissões pagas a agentes de terceiros governos, sempre de países emergentes.
Isso começou a acabar quando o governo americano se lançou num forte combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. O método principal foi seguir o caminho do dinheiro que financiava o crime. Nessa rota, os policiais, promotores e juízes chegaram aos paraísos fiscais e lá encontraram também pessoas e empresas normais, legais, mas que escondiam dinheiro do Imposto de Renda, por exemplo, ou para subornar governos, partidos políticos e seus agentes.
O primeiro grande embate internacional das autoridades americanas foi com os bancos suíços. Estes se recusavam a abrir as contas de cidadãos americanos acusados de sonegar impostos transferindo dinheiro não declarado para a Europa. Demorou, mas os bancos, punidos com multas no mercado de ações de Wall Street, acabaram entregando as contas.
Seguiu-se uma nova legislação na Suíça, na prática acabando com o sigilo bancário, assim acompanhando o que aconteceu em quase todo o mundo democrático. Isso ajudou, e muito, as operações da Lava-Jato.
(Em uma das delações da Odebrecht, um executivo explicou que a empresa fazia as “operações estruturadas” na Suíça, mas não nos EUA, onde a coisa era mais difícil. Pois a empresa acabou apanhada nos dois países, embora quase tenha conseguido tirar o dinheiro da Suíça).
Também entram em vigor os acordos internacionais que ampliam as relações e troca de informações entre polícias, órgãos da receita e bancos centrais. Leis de repatriação, como essas que tivemos no Brasil, foram editadas em diversos países. Como aqui, lá também os bancos e advogados recomendaram expressamente que seus clientes declarassem o dinheiro escondido.
Muitos bancos americanos e europeus simplesmente fecharam contas de brasileiros e mandaram um cheque para os clientes que se recusaram a declarar. Como sabiam disso? Exigiam cópias do IR no qual constasse os valores depositados no exterior.
Tudo isso para dizer que o combate à corrupção, ao dinheiro escondido, seja para qualquer fim, é universal e está em curso em toda parte. Ou seja, a Lava-Jato é um ativo brasileiro.
Vejam esta notícia de ontem: o presidente de Governo da Espanha, Mariano Rajoy, líder do Partido Popular, foi convocado como testemunha, para comparecer pessoalmente ao tribunal, obrigado a contar a verdade, com contraditório e publicidade. O processo: corrupção em obras públicas, seguida de financiamento ilegal de seu partido, que lá eles chamam de “caixa b” — sim, o nosso conhecido caixa 2.
No Brasil, essas regras sobre o comportamento dos agentes públicos e suas relações com as empresas privadas são recentes e nem sempre respeitadas. Mas depois da Lava-Jato, hoje são as empresas privadas aqui instaladas que mais se preocupam com a legalidade e a transparência de suas relações com o governo.
Têm medo da Lava-Jato e da justiça internacional. A Odebrecht está pagando multas nos EUA. Em outras palavras: se antes era lucrativo ser amigo do governo e dos partidos principais, agora ficou perigoso.
Mas o caso brasileiro é mais grave por causa do tamanho do capitalismo de estado. O governo não apenas é o maior contratante de obras e serviços, como controla boa parte do crédito, através de grandes bancos comerciais e de desenvolvimento, e é dono de empresas dominantes em setores cruciais, como a Petrobras e a Eletrobras. Tem muito espaço para os amigos.
Reduzir esse tamanho do Estado é também uma forma de combater a corrupção.
A relação entre setores privados e governo existe em qualquer país capitalista, mesmo naqueles de menor presença do Estado na economia. As empresas sempre têm o que conversar com a administração pública, seja com o Executivo, seja com o Legislativo. Leis, regulamentos e burocracias afetam a atividade econômica, de modo que é normal o interesse das companhias privadas em participar de algum modo das decisões políticas.
A diferença é que essa relação pode ser legal e regulada — o caso do lobby nos Estados Unidos, por exemplo — ou, digamos, informal. Nas duas situações pode haver promiscuidade, mas é claro que a maior possibilidade de desvios ocorre no modo informal.
No mundo todo, hoje, está em curso um processo de normatizar as relações entre agentes públicos e privados. Em muitos lugares, chega-se a detalhes: os encontros devem ser públicos, com agenda oficial, o burocrata ou legislador não pode ter almoço grátis, nem presentes, e por aí vai.
Mas tudo isso é relativamente recente. Não faz muito tempo que multinacionais americanas e, sobretudo, europeias podiam abater como despesa as comissões pagas a agentes de terceiros governos, sempre de países emergentes.
Isso começou a acabar quando o governo americano se lançou num forte combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. O método principal foi seguir o caminho do dinheiro que financiava o crime. Nessa rota, os policiais, promotores e juízes chegaram aos paraísos fiscais e lá encontraram também pessoas e empresas normais, legais, mas que escondiam dinheiro do Imposto de Renda, por exemplo, ou para subornar governos, partidos políticos e seus agentes.
O primeiro grande embate internacional das autoridades americanas foi com os bancos suíços. Estes se recusavam a abrir as contas de cidadãos americanos acusados de sonegar impostos transferindo dinheiro não declarado para a Europa. Demorou, mas os bancos, punidos com multas no mercado de ações de Wall Street, acabaram entregando as contas.
Seguiu-se uma nova legislação na Suíça, na prática acabando com o sigilo bancário, assim acompanhando o que aconteceu em quase todo o mundo democrático. Isso ajudou, e muito, as operações da Lava-Jato.
(Em uma das delações da Odebrecht, um executivo explicou que a empresa fazia as “operações estruturadas” na Suíça, mas não nos EUA, onde a coisa era mais difícil. Pois a empresa acabou apanhada nos dois países, embora quase tenha conseguido tirar o dinheiro da Suíça).
Também entram em vigor os acordos internacionais que ampliam as relações e troca de informações entre polícias, órgãos da receita e bancos centrais. Leis de repatriação, como essas que tivemos no Brasil, foram editadas em diversos países. Como aqui, lá também os bancos e advogados recomendaram expressamente que seus clientes declarassem o dinheiro escondido.
Muitos bancos americanos e europeus simplesmente fecharam contas de brasileiros e mandaram um cheque para os clientes que se recusaram a declarar. Como sabiam disso? Exigiam cópias do IR no qual constasse os valores depositados no exterior.
Tudo isso para dizer que o combate à corrupção, ao dinheiro escondido, seja para qualquer fim, é universal e está em curso em toda parte. Ou seja, a Lava-Jato é um ativo brasileiro.
Vejam esta notícia de ontem: o presidente de Governo da Espanha, Mariano Rajoy, líder do Partido Popular, foi convocado como testemunha, para comparecer pessoalmente ao tribunal, obrigado a contar a verdade, com contraditório e publicidade. O processo: corrupção em obras públicas, seguida de financiamento ilegal de seu partido, que lá eles chamam de “caixa b” — sim, o nosso conhecido caixa 2.
No Brasil, essas regras sobre o comportamento dos agentes públicos e suas relações com as empresas privadas são recentes e nem sempre respeitadas. Mas depois da Lava-Jato, hoje são as empresas privadas aqui instaladas que mais se preocupam com a legalidade e a transparência de suas relações com o governo.
Têm medo da Lava-Jato e da justiça internacional. A Odebrecht está pagando multas nos EUA. Em outras palavras: se antes era lucrativo ser amigo do governo e dos partidos principais, agora ficou perigoso.
Mas o caso brasileiro é mais grave por causa do tamanho do capitalismo de estado. O governo não apenas é o maior contratante de obras e serviços, como controla boa parte do crédito, através de grandes bancos comerciais e de desenvolvimento, e é dono de empresas dominantes em setores cruciais, como a Petrobras e a Eletrobras. Tem muito espaço para os amigos.
Reduzir esse tamanho do Estado é também uma forma de combater a corrupção.
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