A função do TSE é zelar pela lisura do processo eleitoral, avaliando se houve cumprimento do livre exercício do direito de votar e ser votado. Atuar fora da esfera eleitoral é abusivo, já que extrapolaria os limites de competência da Corte
OESP
Estátua de Montesquieu, de Clodion, no Museu do Louvre, em Paris. Ele conhecia “o espírito das leis”
O Estadão, PARA NÃO VARIAR, publica um
editorial primoroso nesta sexta. Trata justamente do julgamento que
acontece no TSE. Sim, coincide plenamente com o que tenho escrito a
respeito. E eu me orgulho disso porque, dali, costuma sair um bom
pensamento.
Em dias em que tantos palpiteiros e
abelhudos opinam com os cotovelos, é bom saber que há gente zelando pelo
Estado de Direito. Leiam o texto.
*
Desde terça-feira, o País assiste ao julgamento do processo contra a chapa Dilma-Temer, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por suposto abuso de poder político e econômico. Apontado como o maior caso da história do tribunal, esse julgamento, transmitido pela televisão, deveria ser uma aula de direito e civismo, a ser aproveitada por todos os interessados no desenvolvimento da vida política nacional.
Desde terça-feira, o País assiste ao julgamento do processo contra a chapa Dilma-Temer, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por suposto abuso de poder político e econômico. Apontado como o maior caso da história do tribunal, esse julgamento, transmitido pela televisão, deveria ser uma aula de direito e civismo, a ser aproveitada por todos os interessados no desenvolvimento da vida política nacional.
Mas isso talvez não esteja acontecendo.
Para quem assiste ao julgamento, a primeira grande surpresa vem da
confusão com que alguns ministros tratam o papel do TSE, como se ele não
fosse um tribunal eleitoral. Num momento, o relator do caso, ministro
Herman Benjamin, reconhece que “o bem jurídico que tutela essas ações
(eleitorais) é a legitimidade e a normalidade do processo eleitoral,
cuja lisura é elemento indispensável à concretização do valor
democrático no regime político brasileiro. (…) Ninguém sai preso daqui,
nem com condenação penal”. Depois, no entanto, sem qualquer
constrangimento, o relator discorre sobre os fatos da ação como se
estivesse num tribunal penal e o seu papel fosse condenar criminalmente
os réus.
A função do TSE é zelar pela lisura do
processo eleitoral, avaliando se houve cumprimento do livre exercício do
direito de votar e ser votado. Atuar fora da esfera eleitoral é
abusivo, já que extrapolaria os limites de competência da Corte. A
rigor, passaria a ser um tribunal de exceção. Por isso, ainda que se
faça um bonito discurso sobre a importância de a Justiça não ser
conivente com a impunidade, a tentativa de levar o TSE para um
julgamento além da esfera eleitoral desrespeita o Estado Democrático de
Direito e a Constituição. É sempre bom lembrar que arbitrariedades desse
tipo não levam a bom porto.
Outra esquisitice desses dias de
julgamento é o tratamento dispensado a alguns fatos conexos ao processo.
O relator defendeu ardorosamente que o TSE não pode julgar com os
“olhos fechados”, devendo buscar a verdade real dos fatos. Parece coisa
óbvia, já que estão julgando um caso complexo. A cegueira deliberada em
relação a algum ponto do processo feriria o senso de justiça. No
entanto, o ministro Herman Benjamin não falava nesse sentido. Conforme
esclareceu mais adiante, com essas palavras ele queria que o conteúdo
das delações da Odebrecht fosse necessariamente apreciado pelo TSE já
que se trataria de fato público e notório. “Só os índios não contatados
da Amazônia não sabiam que a Odebrecht havia feito colaboração. Se isso
não é fato notório, não existirá outro”, disse o ministro Herman
Benjamin.
Uma coisa é a existência, pública e
notória, da delação de 77 diretores e executivos da empreiteira
Odebrecht. Outra é tomar os fatos narrados nas delações como verdade
verdadeira, a dispensar posteriores provas. O fato de todo mundo saber
que as delações foram feitas não significa que o seu conteúdo
corresponda à verdade ou relate os fatos com fidelidade e correção.
Não se nega a argúcia do argumento do
ministro Benjamin, fazendo parecer que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (STF), no sentido de afirmar que um tribunal não pode
desconhecer um fato público e notório, conduziria à pretendida conclusão
de presumir como verdadeiro o conteúdo das delações da Odebrecht. Mas
esse modo de apreciar os fatos proposto pelo relator está bem distante
do que dispõe o Direito, pois sabe que descuidos nesse campo produzem
não pequenas injustiças. Além de estabelecer uma série de procedimentos
para garantir isenção na produção das provas, a lei prevê que as partes
possam refutar os fatos narrados, apresentar esclarecimentos, etc. Dessa
forma, seria um tanto extravagante que o TSE, no caso mais importante
de sua história, pactuasse com uma apreciação descuidada das provas,
dando por verdadeiro o que não passou por um efetivo contraditório. Como
também é público e notório, as delações da Odebrecht ainda são objeto
de investigação.
O papel do juiz exige isenção. Deve
antes estar disposto a ser mal interpretado pela opinião pública do que
causar uma injustiça. O caso em questão é de especial gravidade, pois
não envolve apenas Dilma Rousseff e Michel Temer. Um equívoco do TSE
causaria um dano direto a todo o País. É bom, portanto, não ignorar os
critérios seguros do bom Direito.
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