segunda-feira, 30 de março de 2015

A distinta realidade entre a bilionária filha do presidente de Angola e uma cidadã comum
Nicholas Kristof - NYT
Nicholas Kristof/NYTDelfina Fernandes mora em uma cabana com teto de palha, sem água corrente nem luz Delfina Fernandes mora em uma cabana com teto de palha, sem água corrente nem luz
Esta é a história de duas mulheres, cada uma delas um símbolo, à sua maneira, de um dos países mais corruptos e disfuncionais do mundo. Uma delas é Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África. Filha do presidente de Angola, ela vale US$ 3 bilhões e é a única mulher bilionária da África, além de ser a mais jovem entre os bilionários, de acordo com a revista "Forbes".
A revista descobriu que todos os seus principais investimentos angolanos estão em empresas que buscam fazer negócios lá ou foram conquistadas por um rabisco da caneta de seu pai. Ela tem gostos extravagantes. Para seu 10º aniversário de casamento, ela pagou a passagem de convidados do mundo inteiro para passar dias em uma celebração luxuosa. Santos não quis comentar, mas é vista por muitos como um símbolo do status de Angola como um dos países mais corruptos do mundo --"corrupção numa escala nunca antes vista na África", disse-me o jornalista angolano Rafael Marques de Morais.

Outra realidade

A outra mulher, mais típica, é Delfina Fernandes, e a conheci no fim de uma viagem de chacoalhar os ossos passando por estradas de terra impossíveis de tão esburacadas em um vilarejo chamado Kibanga, na parte norte do país. Cega de um olho, ela mora em uma cabana com teto de palha, sem água corrente nem luz, e sem acesso a serviços de saúde.
Fernandes desenrolou um tapete de palha, feito à mão, no chão e se sentou ao meu lado, contando que ela tinha perdido dez filhos (sua vizinha, Ana Luciano --que tinha perdido apenas quatro e agora estava com um quinto filho com malária-- confirmou). Talvez a dor mais excruciante que uma mãe pode sofrer é perder um filho, e isso aconteceu dez vezes para Fernandes.
É impossível ter certeza de como seus filhos morreram porque, como metade da população do país, a família está fora do alcance do sistema de saúde. Portanto, seus filhos nunca tiveram certidões de nascimento ou atestados de óbito. No entanto, um bom palpite é que eles sucumbiram à malária e à desnutrição.
Ao todo, Fernandes, 50, diz que teve 15 filhos, dos quais cinco sobreviveram. Ela nunca ouviu falar de prevenção da gravidez, assim como as outras mulheres com quem conversei na estrada, e, em todo caso, não há nenhum método disponível nas áreas rurais locais.
Para pessoas como Fernandes, a vida não é tão diferente do que era há algumas centenas de anos atrás. Não existe escola nesta região, então ela e todos na vizinhança são analfabetos. Vários moradores com quem conversei nunca tinham ouvido falar dos Estados Unidos ou de Barack Obama, não sabiam reconhecer uma única letra e não tinha ideia de que a malária é causada por mosquitos.

Sem atendimento

"Cinquenta por cento dos angolanos vive fora do alcance de qualquer serviço de saúde", observou Stephen Foster, cirurgião norte-americano que dirige um hospital rural perto de Lubango. "Eles ainda usam o que o curandeiro tradicional lhes daria se eles viessem vê-lo no século 17."
Fernandes foi gentil e hospitaleira – e também estóica. Ela não se queixou em nenhum momento, e só quando eu perguntei sobre seus dentes que estão apodrecendo e desintegrando ela reconheceu que tinha perdido tantos que estava com dificuldades para comer. Ela disse que tem uma dor de dente que não dá trégua, e que o único alívio da agonia vem quando ela está dormindo.
Ela não demonstrou nenhum sinal de raiva contra o governo, e quando sondei para ver quem ela culpava por seu sofrimento, ela disse suavemente: "foi Deus que levou os meus filhos".
Isso pode ser um pouco injusto em relação a Deus. Um relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional) no ano passado observou que Angola tem uma dos conjuntos de recursos naturais mais ricos por pessoa na África, mas o país fez muito menos do que seus vizinhos para ajudar as pessoas comuns. E quando o FMI reavaliou as contas de Angola de 2007 a 2010, encontrou inicialmente US$ 32 bilhões faltando.
"A corrupção do governo era endêmica em todos os níveis", disse o Departamento de Estado dos EUA sobre Angola no seu relatório anual sobre direitos humanos de 2013.
Angola está classificada em 161º lugar entre os 175 países avaliados no "índice de percepções sobre corrupção" da Transparência Internacional. A série "Fazendo Negócio", do Banco Mundial, classifica Angola em 187º lugar entre 189 países em questão de cumprimento de contratos.
Este é um problema global, é claro, e não só de Angola. Dois novos livros, "Thieves of State" ["Ladrões do Estado"], de Sarah Chayes, e "The Looting Machine" ["A Máquina de Pilhagem"], de Tom Burgis, documentam a forma como a corrupção é uma catástrofe em muitos países pobres. Angola é simplesmente um exemplo extremo.
Esta corrupção é também o motivo pelo qual 150 mil crianças morrem por ano em Angola antes dos 5 anos de idade. O orçamento da saúde é sistematicamente pilhado: Morais, o jornalista angolano, cita os US$ 58 milhões que foram destinados para reformar um determinado hospital – e depois praticamente desapareceram.
As diferenças entre Santos e Fernandes são imensas, mas compartilham um interesse pela indústria do petróleo. Santos monetizou esse interesse, e quando perguntei a Fernandes se ela sabia que Angola era fica em petróleo, ela ficou um pouco confusa com a pergunta, mas disse logo que ela, também, valoriza a gasolina quando consegue comprar um gole. "Eu coloco na boca", disse ela, "para aliviar minha dor de dente."

Nenhum comentário: