Kai Friese - TINYT
Houve um tempo, décadas atrás, em que eu gostava de pensar que era o único fã de Smiths na cidade. Mas ao ler os jornais, recentemente, fiquei surpreso ao descobrir que o ex-vocalista da banda, Morrissey, compartilha uma plataforma com o partido governante fortemente chauvinista da Índia: a carne.
O Partido Bharatiya Janata é até mais moderado do que Morrissey, que acredita que toda "carne é assassinato". O partido do primeiro-ministro Narendra Modi já considerou a matança de vacas como um crime capital e, no início deste mês, aprovou uma lei no estado de Haryana, no norte do país, que torna o ato punível com apenas dez anos de prisão no máximo.
Essa lei, junto com uma similar aprovada recentemente em Maharashtra, aumenta para 20, entre 29, o número de estados indianos que proíbem totalmente o abate de vacas. Isso, contudo, não é uma maioria tão simples: embora a população da Índia seja 80% hindu e em grande parte não coma carne de boi, os avanços na proibição da carne bovina desencadearam um debate e uma confusão consideráveis. Veja você, a Índia é o segundo maior exportador de carne bovina do mundo depois do Brasil.
Como todos os nacionalismos, o indiano tem os seus ícones, e a vaca tem lugar de destaque neste panteão. E símbolos religiosos antigos como Kamadhenu, uma vaca celeste frequentemente retratada com um rosto de mulher, costumam ser usados para fins políticos. No início dos anos 70, por exemplo, um slogan eleitoral popular do Partido do Congresso foi "Vote for Calf and Cow, Forget All Others Now" ("Vote no bezerro e na vaca, esqueça todos os outros agora").
Durante a campanha eleitoral nacional do ano passado, Modi atacou o governo do Partido do Congresso por causa da "revolução rosa" nas exportações de carne bovina da Índia. No entanto, desde que ele chegou ao poder, as exportações de carne bovina aumentaram – em quase 17% de abril a novembro de 2014 em comparação com o ano anterior – ainda que seu partido tenha reprimido o consumo nacional de carne bovina. Modi acena na direção das virtudes bucólicas tradicionais para mascarar um plano agressivo de desenvolvimento voltado às exportações.
Tentando desvendar essa charada, saí na semana passada para conversar com algumas pessoas que achei que se importassem com a questão das vacas.
Surpresa. S.K. Swami, o hindu vegetariano fundador do Love4Cow Trust, uma rede de ativistas pela proteção das vacas, não tinha sentimentos fortes em relação à expansão das exportações de carne. "Há uma confusão sobre a categorização do gado", explicou. "Trabalhamos para promover as virtudes econômicas e científicas das vacas indianas. Não trabalhamos para os búfalos ou qualquer outra coisa."
Ele quis dizer que o montante de 1,89 milhão de toneladas de carne bovina que a Índia exportou em 2012-2013 veio em grande parte de rebanhos do búfalo d'água nativo Bubalus bubalis. Este animal é carne bovina, de acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e o setor global de carne, mas, na Índia, é conhecido como "buff" e não conta como carne proibida. As novas leis se aplicam apenas às vacas e bois indianos, principalmente da subespécie Bos taurus indicus, e possivelmente a carnes importadas da espécie Bos taurus. A lei, como dizem, é uma burra (do subgênero Asinus).
Eu também fui ver Chiraguddin Qureshi, proprietário muçulmano do Taj Mahal Meat Shop no bairro histórico de Nizamuddin, onde um amigo meu compra vitela para seu famoso Pothu Ulathu, ou carne frita à Kerala. Mais uma vez, surpresa. É comum assumir que, na Índia, a minoria muçulmana do país (mais de 13% da população) seja a principal consumidora de carne bovina. Entretanto, disse Qureshi em meio ao ruído sincopado de dois homens cortando carne em tocos de árvore, um bom número de seus clientes, como o meu amigo que cozinha o Pothu Ulathu, são hindus.
Afinal de contas, existem alguns poucos estados que toleram a carne, e algumas comunidades e indivíduos nominalmente hindus também gostam de carne bovina. Fora isso, tem a economia: uma consequência do tabu geral é que a carne bovina costuma ser uma das formas mais baratas de proteína na região, e um alimento básico para muitas comunidades pobres.
O gado ainda é valorizado como fonte de esterco e como mão de obra e é deixado nos pastos para se reproduzir livremente. As restrições de abate significam que os rebanhos na Índia não são abatidos como nos países com indústrias de carne bovina regulamentadas, o que contribui para um grande excedente de animais, principalmente machos mais velhos. Nos açougues de Déli, o búfalo adulto custa 180 rúpias por quilo, em comparação com 420 rúpias pela carne de cabra.
Perversamente, este mecanismo de mercado é exatamente o que tem impulsionado o crescimento das exportações de búfalo e um considerável contrabando de gado (inclusive de vacas) para Bangladesh: os preços estrangeiros são muito mais altos do que os preços locais. "Desde que este governo assumiu o poder, 80 novos abatedouros foram construídos só em Uttar Pradesh", disse Qureshi sobre o governo de Modi. "E é tudo para exportação."
E é por isso -- mais uma surpresa -- que este açougueiro quer que a exportação de carne bovina seja proibida: só os exportadores podem pagar para ficar com o melhor estoque. Ele disse que sente falta do "bife macio e rosado da infância", e dos búfalos de Punjab e Haryana. "Não podemos mais pagar por esses animais; todos eles vão para os exportadores", disse.
A velha Índia de pequenos açougueiros tradicionais está sendo esmagada pelos produtores de carne de escala industrial.
Swami, da Love4Cow Trust, também lamentou a perda de raças antigas de vacas leiteiras nativas em nome da modernização da produção de laticínios e "a moda do cruzamento com as linhas Jersey e Holandesa." "É difícil encontrar um rebanho indiano puro hoje", disse ele, lamentando pelas linhagens Sahiwal e Gir e outras linhagens ameaçadas de gado nativo.
Mais tarde naquela noite, enquanto eu observava um debate de talk-show intitulado "Beef and the 'Bone' of Contention" ["A carne e o 'osso' da discórdia"] algumas dessas contradições charmosas pareceram azedar e se transformar em ironias mais duras. Foi um típico carnaval televisivo de futilidades adversárias, sermões condenatórios e inverdades descaradas. E foi possivelmente mais representativo do temperamento nacional do que as minhas conversas.
Estava presente o imã da mesquita Jama Masjid de Déli, Syed Ahmed Bukhari, que arrastou consigo seu envergonhado cozinheiro hindu para demonstrar que é um muçulmano tolerante. "Nós comemos carne bovina", disse ele, "mas não a cozinhamos em casa." O âncora do programa confundiu ainda mais as coisas insistindo que as novas leis também proibiam o búfalo. Não proíbem. Sudhanshu Trivedi, astrólogo do ministro do Interior, disfarçou-se de racionalista: "a proibição da carne bovina é lógica, progressiva e científica." Mas Rakesh Sinha, diretor de um instituto de pesquisa de direita, superou-o, afirmando que "pesquisas científicas" tinham "provado" que comer carne é "perigoso". A afirmação é duvidosa, exceto, é claro, se você vive em Haryana.
Tradutora: Eloise De Vylder
Essa lei, junto com uma similar aprovada recentemente em Maharashtra, aumenta para 20, entre 29, o número de estados indianos que proíbem totalmente o abate de vacas. Isso, contudo, não é uma maioria tão simples: embora a população da Índia seja 80% hindu e em grande parte não coma carne de boi, os avanços na proibição da carne bovina desencadearam um debate e uma confusão consideráveis. Veja você, a Índia é o segundo maior exportador de carne bovina do mundo depois do Brasil.
Como todos os nacionalismos, o indiano tem os seus ícones, e a vaca tem lugar de destaque neste panteão. E símbolos religiosos antigos como Kamadhenu, uma vaca celeste frequentemente retratada com um rosto de mulher, costumam ser usados para fins políticos. No início dos anos 70, por exemplo, um slogan eleitoral popular do Partido do Congresso foi "Vote for Calf and Cow, Forget All Others Now" ("Vote no bezerro e na vaca, esqueça todos os outros agora").
Durante a campanha eleitoral nacional do ano passado, Modi atacou o governo do Partido do Congresso por causa da "revolução rosa" nas exportações de carne bovina da Índia. No entanto, desde que ele chegou ao poder, as exportações de carne bovina aumentaram – em quase 17% de abril a novembro de 2014 em comparação com o ano anterior – ainda que seu partido tenha reprimido o consumo nacional de carne bovina. Modi acena na direção das virtudes bucólicas tradicionais para mascarar um plano agressivo de desenvolvimento voltado às exportações.
Tentando desvendar essa charada, saí na semana passada para conversar com algumas pessoas que achei que se importassem com a questão das vacas.
Surpresa. S.K. Swami, o hindu vegetariano fundador do Love4Cow Trust, uma rede de ativistas pela proteção das vacas, não tinha sentimentos fortes em relação à expansão das exportações de carne. "Há uma confusão sobre a categorização do gado", explicou. "Trabalhamos para promover as virtudes econômicas e científicas das vacas indianas. Não trabalhamos para os búfalos ou qualquer outra coisa."
Ele quis dizer que o montante de 1,89 milhão de toneladas de carne bovina que a Índia exportou em 2012-2013 veio em grande parte de rebanhos do búfalo d'água nativo Bubalus bubalis. Este animal é carne bovina, de acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e o setor global de carne, mas, na Índia, é conhecido como "buff" e não conta como carne proibida. As novas leis se aplicam apenas às vacas e bois indianos, principalmente da subespécie Bos taurus indicus, e possivelmente a carnes importadas da espécie Bos taurus. A lei, como dizem, é uma burra (do subgênero Asinus).
Eu também fui ver Chiraguddin Qureshi, proprietário muçulmano do Taj Mahal Meat Shop no bairro histórico de Nizamuddin, onde um amigo meu compra vitela para seu famoso Pothu Ulathu, ou carne frita à Kerala. Mais uma vez, surpresa. É comum assumir que, na Índia, a minoria muçulmana do país (mais de 13% da população) seja a principal consumidora de carne bovina. Entretanto, disse Qureshi em meio ao ruído sincopado de dois homens cortando carne em tocos de árvore, um bom número de seus clientes, como o meu amigo que cozinha o Pothu Ulathu, são hindus.
Afinal de contas, existem alguns poucos estados que toleram a carne, e algumas comunidades e indivíduos nominalmente hindus também gostam de carne bovina. Fora isso, tem a economia: uma consequência do tabu geral é que a carne bovina costuma ser uma das formas mais baratas de proteína na região, e um alimento básico para muitas comunidades pobres.
O gado ainda é valorizado como fonte de esterco e como mão de obra e é deixado nos pastos para se reproduzir livremente. As restrições de abate significam que os rebanhos na Índia não são abatidos como nos países com indústrias de carne bovina regulamentadas, o que contribui para um grande excedente de animais, principalmente machos mais velhos. Nos açougues de Déli, o búfalo adulto custa 180 rúpias por quilo, em comparação com 420 rúpias pela carne de cabra.
Perversamente, este mecanismo de mercado é exatamente o que tem impulsionado o crescimento das exportações de búfalo e um considerável contrabando de gado (inclusive de vacas) para Bangladesh: os preços estrangeiros são muito mais altos do que os preços locais. "Desde que este governo assumiu o poder, 80 novos abatedouros foram construídos só em Uttar Pradesh", disse Qureshi sobre o governo de Modi. "E é tudo para exportação."
E é por isso -- mais uma surpresa -- que este açougueiro quer que a exportação de carne bovina seja proibida: só os exportadores podem pagar para ficar com o melhor estoque. Ele disse que sente falta do "bife macio e rosado da infância", e dos búfalos de Punjab e Haryana. "Não podemos mais pagar por esses animais; todos eles vão para os exportadores", disse.
A velha Índia de pequenos açougueiros tradicionais está sendo esmagada pelos produtores de carne de escala industrial.
Swami, da Love4Cow Trust, também lamentou a perda de raças antigas de vacas leiteiras nativas em nome da modernização da produção de laticínios e "a moda do cruzamento com as linhas Jersey e Holandesa." "É difícil encontrar um rebanho indiano puro hoje", disse ele, lamentando pelas linhagens Sahiwal e Gir e outras linhagens ameaçadas de gado nativo.
Mais tarde naquela noite, enquanto eu observava um debate de talk-show intitulado "Beef and the 'Bone' of Contention" ["A carne e o 'osso' da discórdia"] algumas dessas contradições charmosas pareceram azedar e se transformar em ironias mais duras. Foi um típico carnaval televisivo de futilidades adversárias, sermões condenatórios e inverdades descaradas. E foi possivelmente mais representativo do temperamento nacional do que as minhas conversas.
Estava presente o imã da mesquita Jama Masjid de Déli, Syed Ahmed Bukhari, que arrastou consigo seu envergonhado cozinheiro hindu para demonstrar que é um muçulmano tolerante. "Nós comemos carne bovina", disse ele, "mas não a cozinhamos em casa." O âncora do programa confundiu ainda mais as coisas insistindo que as novas leis também proibiam o búfalo. Não proíbem. Sudhanshu Trivedi, astrólogo do ministro do Interior, disfarçou-se de racionalista: "a proibição da carne bovina é lógica, progressiva e científica." Mas Rakesh Sinha, diretor de um instituto de pesquisa de direita, superou-o, afirmando que "pesquisas científicas" tinham "provado" que comer carne é "perigoso". A afirmação é duvidosa, exceto, é claro, se você vive em Haryana.
Tradutora: Eloise De Vylder
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