Ben Hubbard - NYT
O assassinato que quase custou a cabeça de Bandar al-Yehiya começou por causa de uma dívida antiga que tinha com um amigo próximo.
Com dificuldades para levantar o dinheiro, Yehiya convidou o amigo para ir à sua casa e ofereceu um rifle como pagamento. Mas quando o amigo recusou, Yehiya ficou com raiva e atirou no peito dele, deixando-o morto no sofá da sala, disse o irmão do morto, Faleh al-Homeidani.
Yehiya confessou o assassinato. De acordo com a interpretação rígida da lei islâmica feita na Arábia Saudita, ele deveria enfrentar a punição que tornou a justiça saudita famosa em todo o mundo: a decapitação em praça pública. Mas a execução nunca aconteceu.
O sistema de Justiça da Arábia Saudita é regularmente condenado por grupos de defesa dos direitos humanos por violar o devido processo legal, pela falta de transparência e pela aplicação de penas como a decapitação e a amputação. A crítica tem crescido à medida que casos sauditas chegaram ao noticiário no exterior: um blogueiro liberal foi espancado por criticar líderes religiosos; ativistas foram presos por defender reformas; uma mulher foi presa sem acusação por mais de dois meses por dirigir um carro.
Tais decisões levaram a comparações com o Estado Islâmico, que decapita regularmente seus inimigos e também declara que aplica a Shariah, a lei islâmica.
Mas Yehiya se salvou da execução por causa de uma reavaliação do uso de punições severas no sistema saudita. Seu caso passou por uma odisseia tortuosa de um ano através da lei e da tradição. Yehiya se regenerou na prisão, xeiques e figuras da realeza apelaram por sua vida, e ele acabou sendo poupado por uma das filhas do homem que ele matou a tiro.
O indulto de Yehiya foi fruto de um sistema de justiça pouco compreendido fora do reino, baseado em séculos de tradição islâmica e que prioriza a estabilidade e a rígida adesão à moral islâmica, acima dos direitos e liberdades individuais.
"As punições que estão no Alcorão – a partir de Alá, o misericordioso e onipotente – são o que preservam a segurança nesse país", disse Faisal bin Mishaal bin Saud bin Abdulaziz, príncipe da província de Qassim, onde aconteceu o crime de Yehiya.
"Se não houvesse retribuição", disse o príncipe Faisal, "seria o caos total". Mas também existem, embutidos no sistema, caminhos para a misericórdia.
Alguns crimes e suas punições são claros no sistema saudita, como a execução para o assassinato, amputação para o roubo, e chibatadas para o sexo antes do casamento ou o consumo de álcool. O estado saudita também tem leis modernas para crimes como tráfico de drogas e uso de armas, bem como para crimes cibernéticos e terrorismo, que, segundo grupos de direitos humanos, o governo costuma usar para punir dissidentes não-violentos.
Mas muitos crimes e suas punições não estão definidos com clareza, incluindo roubo de carro desarmado, tentativa de roubo, atos sexuais que não chegam à relação sexual, assédio e fraude. Isso dá grande autonomia aos juízes, que são treinados na Shariah e não são restringidos pelos precedentes jurídicos, para definir os crimes e determinar as punições.
Observadores dizem que esta decisão guiada por um conservadorismo profundo muitas vezes leva a punições severas para aqueles indivíduos que são vistos como ameaças à natureza religiosa do Estado, como os liberais.
Muitos advogados sauditas acreditam que o processo contra Raif Badawi, um blogueiro liberal que foi condenado a dez anos de prisão e mil chibatadas, aconteceu porque ele atacou o establishment religioso, uma ação que se acredita ser mais desestabilizadora do que o adultério ou até mesmo do que o assassinato.
"Os juízes são muito conservadores, então eles tendem a usar sua autonomia para tomar decisões muito conservadoras que às vezes embaraçam a família real internacionalmente", disse Stéphane Lacroix, professor associado da Universidade Sciences Po, em Paris, que estuda a Arábia Saudita.
O fato de Yehiya assassinar seu amigo, Mutlaq al-Homeidani, em 2002, chocou o povo de Qassim, uma província de dunas de areia e vilarejos espalhados no centro da Arábia Saudita, onde os laços tribais são fortes e os moradores têm orgulho de seu conservadorismo.
Os dois homens costumavam visitar com frequência a casa um do outro, e Homeidani, policial da Guarda Nacional, tinha uma mulher e cinco filhos que perderam seu provedor. Ambos os homens também eram de tribos importantes, o que levantou o fantasma da possibilidade de assassinatos por vingança se os parentes do morto não achassem que a justiça havia sido feita.
"Não temos nada exceto a lei da Shariah", disse o irmão da vítima, Faleh al-Homeidani. Isso significa a decapitação pública de Yehiya.
Yehiya foi condenado à morte como retribuição, o que significa que só os herdeiros da vítima poderiam perdoá-lo. Mas ele foi poupado da morte imediata porque cada um dos herdeiros deve concordar, e o filho mais novo da vítima tinha apenas três anos, estando abaixo da idade legal de consentimento, de 15 anos. Então Yehiya foi para a prisão para esperar o menino crescer até poder concordar em mandar cortar a cabeça do assassino de seu pai.
Muitos muçulmanos acreditam que salvar uma vida, mesmo a de um assassino, gera uma recompensa no céu para a pessoa, então a possibilidade de um perdão por parte dos herdeiros das vítimas abriu toda uma área de ativismo com o objetivo de impedir as execuções.
Depois da condenação de Yehiya, sua família fez campanha em seu nome, e ele se tornou um líder religioso na prisão, ganhando o respeito dos clérigos, que assumiram sua causa. Grande parte do trabalho ficou a cargo de Sheikh Rashid al-Shalash, um clérigo falante, de olhos arregalados, que lidera uma comissão na província de Qassim que faz campanha pelo perdão de criminosos.
Por motivos religiosos, ele se esforça para conseguir o perdão, visitando as famílias das vítimas e levantando dinheiro para pagar aquelas que optam por perdoar. E como o perdão é possível até o momento da execução, os casos às vezes terminam com um grande drama em praça pública.
A Arábia Saudita executou 88 pessoas em 2014, enquanto 35 pessoas foram executadas nos Estados Unidos. Trinta execuções sauditas foram sentenças de retribuição de assassinatos, de acordo com a Human Rights Watch. Embora as estatísticas sobre as indulgências não estejam disponíveis, Sheikh Shalash garantiu o perdão em 13 dos 17 casos que assumiu nos últimos anos. Cerca de metade não envolveu dinheiro, ao passo que algumas famílias receberam centenas de milhares de dólares, disse ele. Em um caso, os herdeiros receberam US$ 1,3 milhão.
A notícia do caso de Yehiya se espalhou à medida que o filho do homem assassinado se aproximava da adolescência, e clérigos importantes pediram a misericórdia aos herdeiros.
Membros da família real visitaram e enviaram representantes, e líderes tribais poderosos ofereceram cheques em branco, disse Homeidani, irmão da vítima. Sua resposta nunca mudou: "se for questão de dinheiro, o homem vai morrer". Mas uma vez que qualquer um dos herdeiros pode conceder o perdão, Sheikh Shalash investigou todos os nove até que encontrou um vestígio de simpatia: Noura, filha da vítima.
Sheikh Shalash pediu ao diretor da escola secundária de Noura para sondar a menina e arranjou uma conversa com ela por telefone, disse ele. Mais tarde, ela assinou um perdão oficial quando tinha 17 anos. Seus familiares não sabiam de nada e ficaram chocados quando descobriram, disse Homeidani, mas aceitaram que era direito dela.
"Se o matarem, como isso beneficiará meu pai?", ela disse, segundo ele. "Se Deus quiser, haverá uma recompensa para o meu pai e ele vai para o céu."
Sheikh Shalash temia que, apesar do perdão, a família do homem morto pudesse se vingar se Yehiya fosse solto. Então seu comitê deu US$ 800 mil à família, e mais US$ 130 mil para Noura por causa de sua boa ação.
Noura está agora no segundo ano da universidade; sua família não permitiu que ela fosse entrevistada.
Yehiya, que saiu da prisão em 2011 aos 33 anos, também se recusou a comentar. Ele recentemente se casou e se formou em Direito.
Na mesinha de centro da sala de estar de Sheikh Shalash, há uma espada de ouro e prata, decorada com uma placa agradecendo-lhe por "salvar o pescoço do jovem Bandar al-Yehiya". Os dois homens mantêm em contato.
Tradutor: Eloise de Wylder
Yehiya confessou o assassinato. De acordo com a interpretação rígida da lei islâmica feita na Arábia Saudita, ele deveria enfrentar a punição que tornou a justiça saudita famosa em todo o mundo: a decapitação em praça pública. Mas a execução nunca aconteceu.
O sistema de Justiça da Arábia Saudita é regularmente condenado por grupos de defesa dos direitos humanos por violar o devido processo legal, pela falta de transparência e pela aplicação de penas como a decapitação e a amputação. A crítica tem crescido à medida que casos sauditas chegaram ao noticiário no exterior: um blogueiro liberal foi espancado por criticar líderes religiosos; ativistas foram presos por defender reformas; uma mulher foi presa sem acusação por mais de dois meses por dirigir um carro.
Tais decisões levaram a comparações com o Estado Islâmico, que decapita regularmente seus inimigos e também declara que aplica a Shariah, a lei islâmica.
Mas Yehiya se salvou da execução por causa de uma reavaliação do uso de punições severas no sistema saudita. Seu caso passou por uma odisseia tortuosa de um ano através da lei e da tradição. Yehiya se regenerou na prisão, xeiques e figuras da realeza apelaram por sua vida, e ele acabou sendo poupado por uma das filhas do homem que ele matou a tiro.
O indulto de Yehiya foi fruto de um sistema de justiça pouco compreendido fora do reino, baseado em séculos de tradição islâmica e que prioriza a estabilidade e a rígida adesão à moral islâmica, acima dos direitos e liberdades individuais.
"As punições que estão no Alcorão – a partir de Alá, o misericordioso e onipotente – são o que preservam a segurança nesse país", disse Faisal bin Mishaal bin Saud bin Abdulaziz, príncipe da província de Qassim, onde aconteceu o crime de Yehiya.
"Se não houvesse retribuição", disse o príncipe Faisal, "seria o caos total". Mas também existem, embutidos no sistema, caminhos para a misericórdia.
Alguns crimes e suas punições são claros no sistema saudita, como a execução para o assassinato, amputação para o roubo, e chibatadas para o sexo antes do casamento ou o consumo de álcool. O estado saudita também tem leis modernas para crimes como tráfico de drogas e uso de armas, bem como para crimes cibernéticos e terrorismo, que, segundo grupos de direitos humanos, o governo costuma usar para punir dissidentes não-violentos.
Mas muitos crimes e suas punições não estão definidos com clareza, incluindo roubo de carro desarmado, tentativa de roubo, atos sexuais que não chegam à relação sexual, assédio e fraude. Isso dá grande autonomia aos juízes, que são treinados na Shariah e não são restringidos pelos precedentes jurídicos, para definir os crimes e determinar as punições.
Observadores dizem que esta decisão guiada por um conservadorismo profundo muitas vezes leva a punições severas para aqueles indivíduos que são vistos como ameaças à natureza religiosa do Estado, como os liberais.
Muitos advogados sauditas acreditam que o processo contra Raif Badawi, um blogueiro liberal que foi condenado a dez anos de prisão e mil chibatadas, aconteceu porque ele atacou o establishment religioso, uma ação que se acredita ser mais desestabilizadora do que o adultério ou até mesmo do que o assassinato.
"Os juízes são muito conservadores, então eles tendem a usar sua autonomia para tomar decisões muito conservadoras que às vezes embaraçam a família real internacionalmente", disse Stéphane Lacroix, professor associado da Universidade Sciences Po, em Paris, que estuda a Arábia Saudita.
O fato de Yehiya assassinar seu amigo, Mutlaq al-Homeidani, em 2002, chocou o povo de Qassim, uma província de dunas de areia e vilarejos espalhados no centro da Arábia Saudita, onde os laços tribais são fortes e os moradores têm orgulho de seu conservadorismo.
Os dois homens costumavam visitar com frequência a casa um do outro, e Homeidani, policial da Guarda Nacional, tinha uma mulher e cinco filhos que perderam seu provedor. Ambos os homens também eram de tribos importantes, o que levantou o fantasma da possibilidade de assassinatos por vingança se os parentes do morto não achassem que a justiça havia sido feita.
"Não temos nada exceto a lei da Shariah", disse o irmão da vítima, Faleh al-Homeidani. Isso significa a decapitação pública de Yehiya.
Yehiya foi condenado à morte como retribuição, o que significa que só os herdeiros da vítima poderiam perdoá-lo. Mas ele foi poupado da morte imediata porque cada um dos herdeiros deve concordar, e o filho mais novo da vítima tinha apenas três anos, estando abaixo da idade legal de consentimento, de 15 anos. Então Yehiya foi para a prisão para esperar o menino crescer até poder concordar em mandar cortar a cabeça do assassino de seu pai.
Muitos muçulmanos acreditam que salvar uma vida, mesmo a de um assassino, gera uma recompensa no céu para a pessoa, então a possibilidade de um perdão por parte dos herdeiros das vítimas abriu toda uma área de ativismo com o objetivo de impedir as execuções.
Depois da condenação de Yehiya, sua família fez campanha em seu nome, e ele se tornou um líder religioso na prisão, ganhando o respeito dos clérigos, que assumiram sua causa. Grande parte do trabalho ficou a cargo de Sheikh Rashid al-Shalash, um clérigo falante, de olhos arregalados, que lidera uma comissão na província de Qassim que faz campanha pelo perdão de criminosos.
Por motivos religiosos, ele se esforça para conseguir o perdão, visitando as famílias das vítimas e levantando dinheiro para pagar aquelas que optam por perdoar. E como o perdão é possível até o momento da execução, os casos às vezes terminam com um grande drama em praça pública.
A Arábia Saudita executou 88 pessoas em 2014, enquanto 35 pessoas foram executadas nos Estados Unidos. Trinta execuções sauditas foram sentenças de retribuição de assassinatos, de acordo com a Human Rights Watch. Embora as estatísticas sobre as indulgências não estejam disponíveis, Sheikh Shalash garantiu o perdão em 13 dos 17 casos que assumiu nos últimos anos. Cerca de metade não envolveu dinheiro, ao passo que algumas famílias receberam centenas de milhares de dólares, disse ele. Em um caso, os herdeiros receberam US$ 1,3 milhão.
A notícia do caso de Yehiya se espalhou à medida que o filho do homem assassinado se aproximava da adolescência, e clérigos importantes pediram a misericórdia aos herdeiros.
Membros da família real visitaram e enviaram representantes, e líderes tribais poderosos ofereceram cheques em branco, disse Homeidani, irmão da vítima. Sua resposta nunca mudou: "se for questão de dinheiro, o homem vai morrer". Mas uma vez que qualquer um dos herdeiros pode conceder o perdão, Sheikh Shalash investigou todos os nove até que encontrou um vestígio de simpatia: Noura, filha da vítima.
Sheikh Shalash pediu ao diretor da escola secundária de Noura para sondar a menina e arranjou uma conversa com ela por telefone, disse ele. Mais tarde, ela assinou um perdão oficial quando tinha 17 anos. Seus familiares não sabiam de nada e ficaram chocados quando descobriram, disse Homeidani, mas aceitaram que era direito dela.
"Se o matarem, como isso beneficiará meu pai?", ela disse, segundo ele. "Se Deus quiser, haverá uma recompensa para o meu pai e ele vai para o céu."
Sheikh Shalash temia que, apesar do perdão, a família do homem morto pudesse se vingar se Yehiya fosse solto. Então seu comitê deu US$ 800 mil à família, e mais US$ 130 mil para Noura por causa de sua boa ação.
Noura está agora no segundo ano da universidade; sua família não permitiu que ela fosse entrevistada.
Yehiya, que saiu da prisão em 2011 aos 33 anos, também se recusou a comentar. Ele recentemente se casou e se formou em Direito.
Na mesinha de centro da sala de estar de Sheikh Shalash, há uma espada de ouro e prata, decorada com uma placa agradecendo-lhe por "salvar o pescoço do jovem Bandar al-Yehiya". Os dois homens mantêm em contato.
Tradutor: Eloise de Wylder
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