terça-feira, 3 de março de 2015

Eduardo Giannetti e o autoengano
autoengano
“O Estado só poderá se minimizar quando o mercado for minimamente civilizado”, li no Facebook, numa das poucas vezes que o acessei durante o feriado de carnaval.
Pensei em responder… “O Estado nunca irá se minimizar por iniciativa própria. Seus agentes precisam dele grande e gordo. A sociedade é que precisa pressioná-lo neste sentido. Quanto à civilização do mercado, você deveria torcer para que ele nunca deixe de ser selvagem, para que ele nunca deixe de ser um ambiente altamente competitivo, com as empresas tentando devorar umas as outras, pois é isso que faz salários, produtos e serviços chegarem às pessoas. Como conta a história, todas as tentativas de controle do mercado resultaram em colapso econômico. Se o que te preocupa são os abusos e crimes de grandes empresas privadas, entenda que quanto maior o Estado, maiores as probabilidades de essas mesmas empresas manterem negócios ocultos com agentes públicos, os quais usarão a própria máquina estatal para preservá-las de qualquer acusação como forma de preservarem a si mesmos. O correto é primeiro reduzir o Estado para que ele seja apenas um agente da lei (Justiça), tendo, assim, o distanciamento e a independência necessária para julgar os desvios das grandes empresas”.
Lembrando-me que o autor da frase é um conhecido meu, convicto socialista da zona sul do Rio de Janeiro, preferi debochar da publicação. Dias depois, num ônibus em Florianópolis, sentou-se à minha frente um casal de militantes do PSTU. Decidi me divertir um pouco: fantasiando-me de ignorante, puxei conversa para saber sobre o movimento socialista. Impressionado com a convicção com que o casal defendia as mais absurdas versões da realidade, lembrei-me de um livro de Eduardo Giannetti, Auto-engano, de 1998.
Giannetti, com sua conhecida serenidade, esclarece sobre as mentiras que, antes de serem repassadas, são absorvidas como verdades absolutas, o que nos ajuda a entender a razão dos socialistas propagarem ideias e procedimentos tão absurdos – creem, piamente, que para um país conquistar o padrão de vida da Noruega, ele precisa adotar as políticas econômicas da Venezuela.
Em seu livro, Eduardo Giannetti começa expondo o engano como um recurso natural de autopreservação e até de qualificação social e sexual (coincidindo com a tese que exploro em meu livro Natureza Capital), com o autor citando diversas espécies animais e suas estratégias de sobrevivência, passando pelas interpretações antropomórficas que fazemos da natureza – “do choro do elefante, da crueldade da hiena, da timidez dos macacos, do tédio dos animais de pasto e da alegria dos golfinhos” – chegando aos nossos mais modernos recursos, tanto por meio de analgésicos para nos enganar a respeito da doença, quanto pelo hábito de adiantar o relógio para nos enganarmos a respeito do tempo.
Seja qual for a mentira sobre o mundo ou sobre si mesmo, o sucesso de sua propagação depende da convicção do autor sobre essa mesma mentira – o autor deve ser o primeiro a acreditar. Muito antes da coincidência nos discursos, os socialistas compartilham uma profunda convicção sobre si mesmos. Sentem-se mais evoluídos moral e espiritualmente que os outros seres humanos. Creem que a honestidade, que a bondade e que a sabedoria são virtudes exclusivas deles. Creem ter o poder de enxergar o que cada pobrezinho do planeta precisa – e que cada um deles é um injustiçado! A despeito de todos (todos!) os exemplos de países que sofreram com o controle estatal da economia, acreditam que com “eles” tudo será diferente, uma maravilha – “Conquistando o poder, as soluções cairão como frutas maduras”.
Cada líder ou militante socialista tem plena certeza de que seu perfil intelectual é o ideal para decidir sobre a vida dos demais habitantes da galáxia. Eles não têm apegos materiais. Não têm ganâncias nem ambições mesquinhas. Não têm vaidade e amam a todos! Desejam nada além do que o bem da humanidade.
“O fulcro do autoengano não está no esforço de cada um em parecer o que não é. Ele reside na capacidade que temos de sentir e de acreditar de boa-fé que somos o que não somos”, diz Giannetti.
O autor também nos brinda ao resgatar o “paradoxo de Stalin”, o que em muito reflete a estampa da burguesia socialista contemporânea. O líder comunista, ao revisar a biografia que encomendara a seus subordinados, mandou inserir a seguinte frase: “Stalin jamais deixou que seu trabalho fosse prejudicado pela mais leve sombra de vaidade, presunção ou idolatria”. Qual confissão de vaidade poderia ser maior que essa? De Fidel a Lula, não há “líder do proletariado” que não seja um vulcão de vaidades.
Daí, olhemos para os militantes socialistas: As roupas meticulosamente desleixadas, as barbas e os cabelos premeditadamente mal cortados, as falas caprichosamente arrastadas, o ódio maquiavelicamente camuflado nos discursos de amor ao próximo… Apostando, sempre, na paixão que provocam nas burguesinhas entediadas. Giannetti debocha: “Ninguém gosta de ser enganado contra sua vontade”. Sim. Líderes e militantes socialistas alimentam-se voluntaria e convenientemente das mentiras que propagam; e o povo, em sua glorificada ignorância, também adora ser enganado, desde que cada mentira seja muito bem contada, de preferência com certa musicalidade − “A Inocência do prometer revolucionário tem a pureza comovente da fantasia libertina de uma virgem”.
Todos nós exercemos o autoengano cotidianamente, para os mais diversos fins, seja para conquistarmos o amor de uma mulher, seja para conseguirmos um novo cliente, mas este autoengano limita-se ao nosso ambiente individual, privado. O autoengano socialista é o autoengano coletivo − “miríade de autoenganos individuais sincronizados entre si” −, que contagia as massas com as mentiras, com os delírios e com as perversões mais danosas.
A coerência das ideias liberais está exatamente na consciência de que nenhum de nós tem sabedoria suficiente para controlar a economia e a vida das pessoas; reconhecemos a realidade de que apenas cada indivíduo ou empresa sabe do que precisa, e que toda e qualquer caridade deve ser voluntária. Também não nos fantasiamos com moral suficiente para tentar impor a todas as pessoas o arquétipo intelectual do “bom homem” − as pessoas são o que são e devem continuar sendo, desde que não interfiram na liberdade e na paz dos demais.
Ao contrário dos socialistas, os liberais se enxergam como seres humanos comuns, cheios de limitações e propensos a desvios, o que justifica a ideia de que não devemos concentrar poder no Estado justamente por ele ser ocupado por seres humanos.

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