Eduardo Giannetti e o autoengano
“O Estado só poderá se minimizar quando o mercado for minimamente
civilizado”, li no Facebook, numa das poucas vezes que o acessei durante
o feriado de carnaval.
Pensei em responder… “O Estado nunca irá se minimizar por iniciativa
própria. Seus agentes precisam dele grande e gordo. A sociedade é que
precisa pressioná-lo neste sentido. Quanto à civilização do mercado,
você deveria torcer para que ele nunca deixe de ser selvagem, para que
ele nunca deixe de ser um ambiente altamente competitivo, com as
empresas tentando devorar umas as outras, pois é isso que faz salários,
produtos e serviços chegarem às pessoas. Como conta a história, todas as
tentativas de controle do mercado resultaram em colapso econômico. Se o
que te preocupa são os abusos e crimes de grandes empresas privadas,
entenda que quanto maior o Estado, maiores as probabilidades de essas
mesmas empresas manterem negócios ocultos com agentes públicos, os quais
usarão a própria máquina estatal para preservá-las de qualquer acusação
como forma de preservarem a si mesmos. O correto é primeiro reduzir o
Estado para que ele seja apenas um agente da lei (Justiça), tendo,
assim, o distanciamento e a independência necessária para julgar os
desvios das grandes empresas”.
Lembrando-me que o autor da frase é um conhecido meu, convicto
socialista da zona sul do Rio de Janeiro, preferi debochar da
publicação. Dias depois, num ônibus em Florianópolis, sentou-se à minha
frente um casal de militantes do PSTU. Decidi me divertir um pouco:
fantasiando-me de ignorante, puxei conversa para saber sobre o movimento
socialista. Impressionado com a convicção com que o casal defendia as
mais absurdas versões da realidade, lembrei-me de um livro de Eduardo
Giannetti, Auto-engano, de 1998.
Giannetti, com sua conhecida serenidade, esclarece sobre as mentiras
que, antes de serem repassadas, são absorvidas como verdades absolutas, o
que nos ajuda a entender a razão dos socialistas propagarem ideias e
procedimentos tão absurdos – creem, piamente, que para um país
conquistar o padrão de vida da Noruega, ele precisa adotar as políticas
econômicas da Venezuela.
Em seu livro, Eduardo Giannetti começa expondo o engano como um
recurso natural de autopreservação e até de qualificação social e sexual
(coincidindo com a tese que exploro em meu livro Natureza Capital), com
o autor citando diversas espécies animais e suas estratégias de
sobrevivência, passando pelas interpretações antropomórficas que fazemos
da natureza – “do choro do elefante, da crueldade da hiena, da timidez
dos macacos, do tédio dos animais de pasto e da alegria dos golfinhos” –
chegando aos nossos mais modernos recursos, tanto por meio de
analgésicos para nos enganar a respeito da doença, quanto pelo hábito de
adiantar o relógio para nos enganarmos a respeito do tempo.
Seja qual for a mentira sobre o mundo ou sobre si mesmo, o sucesso de
sua propagação depende da convicção do autor sobre essa mesma mentira –
o autor deve ser o primeiro a acreditar. Muito antes da coincidência
nos discursos, os socialistas compartilham uma profunda convicção sobre
si mesmos. Sentem-se mais evoluídos moral e espiritualmente que os
outros seres humanos. Creem que a honestidade, que a bondade e que a
sabedoria são virtudes exclusivas deles. Creem ter o poder de enxergar o
que cada pobrezinho do planeta precisa – e que cada um deles é um
injustiçado! A despeito de todos (todos!) os exemplos de países que
sofreram com o controle estatal da economia, acreditam que com “eles”
tudo será diferente, uma maravilha – “Conquistando o poder, as soluções
cairão como frutas maduras”.
Cada líder ou militante socialista tem plena certeza de que seu
perfil intelectual é o ideal para decidir sobre a vida dos demais
habitantes da galáxia. Eles não têm apegos materiais. Não têm ganâncias
nem ambições mesquinhas. Não têm vaidade e amam a todos! Desejam nada
além do que o bem da humanidade.
“O fulcro do autoengano não está no esforço de cada um em parecer o
que não é. Ele reside na capacidade que temos de sentir e de acreditar
de boa-fé que somos o que não somos”, diz Giannetti.
O autor também nos brinda ao resgatar o “paradoxo de Stalin”, o que
em muito reflete a estampa da burguesia socialista contemporânea. O
líder comunista, ao revisar a biografia que encomendara a seus
subordinados, mandou inserir a seguinte frase: “Stalin jamais deixou que
seu trabalho fosse prejudicado pela mais leve sombra de vaidade,
presunção ou idolatria”. Qual confissão de vaidade poderia ser maior que
essa? De Fidel a Lula, não há “líder do proletariado” que não seja um
vulcão de vaidades.
Daí, olhemos para os militantes socialistas: As roupas
meticulosamente desleixadas, as barbas e os cabelos premeditadamente mal
cortados, as falas caprichosamente arrastadas, o ódio maquiavelicamente
camuflado nos discursos de amor ao próximo… Apostando, sempre, na
paixão que provocam nas burguesinhas entediadas. Giannetti debocha:
“Ninguém gosta de ser enganado contra sua vontade”. Sim. Líderes e
militantes socialistas alimentam-se voluntaria e convenientemente das
mentiras que propagam; e o povo, em sua glorificada ignorância, também
adora ser enganado, desde que cada mentira seja muito bem contada, de
preferência com certa musicalidade − “A Inocência do prometer
revolucionário tem a pureza comovente da fantasia libertina de uma
virgem”.
Todos nós exercemos o autoengano cotidianamente, para os mais
diversos fins, seja para conquistarmos o amor de uma mulher, seja para
conseguirmos um novo cliente, mas este autoengano limita-se ao nosso
ambiente individual, privado. O autoengano socialista é o autoengano
coletivo − “miríade de autoenganos individuais sincronizados entre si”
−, que contagia as massas com as mentiras, com os delírios e com as
perversões mais danosas.
A coerência das ideias liberais está exatamente na consciência de que
nenhum de nós tem sabedoria suficiente para controlar a economia e a
vida das pessoas; reconhecemos a realidade de que apenas cada indivíduo
ou empresa sabe do que precisa, e que toda e qualquer caridade deve ser
voluntária. Também não nos fantasiamos com moral suficiente para tentar
impor a todas as pessoas o arquétipo intelectual do “bom homem” − as
pessoas são o que são e devem continuar sendo, desde que não interfiram
na liberdade e na paz dos demais.
Ao contrário dos socialistas, os liberais se enxergam como seres
humanos comuns, cheios de limitações e propensos a desvios, o que
justifica a ideia de que não devemos concentrar poder no Estado
justamente por ele ser ocupado por seres humanos.
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