segunda-feira, 2 de março de 2015

Troca de bebês na França dá lição sobre amor materno
Maïa De La Baume - NYT
Rebecca Marshall/The New York Times
Sophie Serrano e sua filha, Manon (à esquerda), em Grasse, na França Sophie Serrano e sua filha, Manon (à esquerda), em Grasse, na França
Quando Sophie Serrano finalmente segurou sua filha Manon nos braços depois que a recém-nascida, que sofre de icterícia, havia sido colocado sob a luz artificial, ela ficou espantada com a cabeleira cheia e brilhante do bebê.
"Eu não tinha percebido antes e fiquei surpresa", disse Serrano em uma entrevista em sua casa no sul da França, não longe de Côte d'Azur.
Serrano, agora com 39 anos, ficou perplexa novamente um ano depois, quando percebeu que o cabelo de sua filha tinha encrespado e a cor de sua pele era mais escura do que a dela e a de seu parceiro.
Mas seu amor pela criança superou todas as dúvidas. Embora seu relacionamento tenha se desfeito, em parte, diz ela, por causa das suspeitas do parceiro, ela cuidou com todo zelo do bebê, até que um teste de paternidade mais de dez anos depois mostrou que nem ela e nem seu parceiro eram os pais biológicos de Manon. Serrano descobriu mais tarde que uma enfermeira havia trocado bebês acidentalmente e os dado às mães erradas.
A história chegou às manchetes da França pela primeira vez em fevereiro de 2015, quando um tribunal do sul do país ordenou que uma clínica em Cannes, onde os bebês foram trocados, bem como a seguradora da clínica pagassem um total equivalente a R$ 6 milhões a serem divididos entre as famílias. O dinheiro, disse Serrano, repararia "um dano inestimável" e colocaria fim a uma provação de 12 anos.
Histórias de bebês trocados tendem a brotar na cultura popular, mais recentemente na série de TV da ABC "Switched at Birth" ("Trocadas no Nascimento", em inglês), na qual duas garotas adolescentes descobrem que foram trocadas por engano em um hospital e que suas famílias tentaram viver juntas pelo bem-estar das duas.
Mas a história de Manon e de sua mãe acidental tem reviravoltas mais complicadas do que a ficção poderia antecipar, desafiando as crenças mais estimadas sobre o apego materno.
O amor de Serrano por Manon ficou maior depois que ela descobriu que a garota não era sua filha biológica, disse ela. Ela também contou que, após conhecer a menina à qual ela tinha dado à luz, não sentiu nenhuma ligação particular com ela.
"Não é o sangue que faz uma família", disse Serrano. "O que faz uma família é o que nós construímos juntos, o que dizemos uns aos outros. E eu criei uma ligação maravilhosa com minha filha não biológica."
A decisão do tribunal acabou com a longa batalha de Serrano para conseguir uma reparação pela negligência da enfermeira. Ela disse que isso também a ajudou a silenciar os vizinhos e outros que a acusavam de não ter instinto materno e a criticavam por sua incapacidade de se identificar com a própria filha.
"Depois de quatro dias, como você pode não reconhecer seu bebê?", disse Sophie Chas, advogada da clínica, ao jornal francês "Le Figaro". "Podemos acreditar nisso quando se trata de um segundo, um dia, dois dias. Mas dez anos? As mães podem ter alguma culpa no dano criado."
Serrano responde a essa descrença alegando que ela tinha 18 anos na época e que Manon, agora com 20, era sua primeira filha. "Eu nunca poderia imaginar uma situação como esta", disse ela.
Quando Serrano deu à luz, o bebê teve icterícia neonatal e foi quase imediatamente colocado em uma incubadora. Por causa da falta de berços, uma enfermeira colocou o bebê nu no mesmo berço que outro bebê nu.
Daniel Verstraete, o advogado da outra família, que se recusou a falar publicamente sobre o caso, disse que apenas um dos bebês estava usando uma pulseira de identificação, que "pode ter caído".
Quando Manon foi entregue para Serrano após o tratamento, mãe e filha passaram pouco tempo juntas. Serrano percebeu que o cabelo do bebê era mais grosso, mas ela disse que foi convencida a tirar aquilo da cabeça.
"A enfermeira disse que as luzes do tratamento fototerápico fizeram o cabelo do bebê crescer", disse Serrano. "Eu confiei no pessoal médico. Eu era jovem. Não iria questionar a competência deles."
A outra mãe, também com 18 na época, perguntou à outra enfermeira por que seu bebê estava sem muito cabelo. Disseram a ela que a fototerapia também poderia reduzir os cabelos.
"Minha cliente não se questionou", disse Verstraete. "Uma troca de bebês era impensável. Ela não reagiu porque a autoridade médica disse que ela não deveria se preocupar."
Serrano, que morava com seu parceiro em um pequeno vilarejo perto de Grasse, criou sua filha enquanto enfrentava uma suspeita crescente dos vizinhos de que Manon, tão diferente fisicamente dos pais, poderia ser "filha do carteiro".
O relacionamento eventualmente se desfez, em parte, disse Serrano, porque seu parceiro também desconfiava e se recusava a cuidar de Manon. Quando eles se separaram, o parceiro pediu um teste de paternidade, dizendo que ele não queria pagar pensão para uma criança que ele não considerava sua.
"Eu achava que um teste de paternidade seria um alívio para nós dois", disse Serrano.
Pelo contrário, o teste revelou que Manon, com 10 anos na época, não era filha dele e tampouco de Serrano.
"Eu senti o efeito de um tsunami", disse Serrano. "Fiquei tremendamente ansiosa, a pior ansiedade que alguém pode sentir."
"De repente", ela acrescentou, "você descobre que não sabe quem é a criança que você trouxe ao mundo. Eu me perguntei como poderia encontrar minha filha. E de repente me lembrei do episódio do cabelo do bebê."
Para encontrar a família que havia recebido a filha biológica, Serrano entrou com uma queixa civil contra a clínica em 2010. Investigadores de polícia descobriram que os pais biológicos de Manon eram um casal creole da Ilha da Reunião, um território francês no Oceano Índico, que agora vivia a poucos quilômetros de Serrano.
"Quando os encontrei pela primeira vez, percebi o quanto eu me parecia com eles", disse Manon, uma mulher de olhos grandes, que estuda administração em uma escola técnica local. "Mas eu estava sentada diante de verdadeiros estranhos, e eu não sabia como me posicionar."
Seus pais biológicos são trabalhadores modestos que criaram a própria filha --a filha biológica de Serrano-- "com uma certa rigidez", disse Verstraete, o advogado.
"A mãe acordava todas as manhãs achando que nunca seria capaz de reconhecer a filha", ele acrescentou. "Não é uma ferida física. É um sofrimento moral que nunca passará."
As famílias se encontraram várias vezes, durante as quais Manon explorou suas origens creole. Mas os pais e filhas tiveram dificuldade de se relacionar e, eventualmente, pararam de se encontrar. No final, depois de alguma discussão, ambas as famílias preferiram ficar com a filha que haviam criado, em vez de ficar com a filha biológica.
"Eu percebi que nós éramos muito diferentes e que não encarávamos a vida da mesma forma", disse Serrano. "Minha filha biológica se parecia comigo, mas de repente eu percebi que eu tinha dado à luz uma pessoa que eu não conhecia e que eu não era mais a mãe daquela criança."
Em um dia recente, Serrano e Manon sentaram-se à mesa de jantar de seu apartamento moderno em Grasse para almoçar.
Serrano disse que estava se recuperando de anos de depressão. Ela está desempregada e tem outros dois filhos de um relacionamento que começou após sua separação. Seu físico frágil e maneiras reservadas contrastam com a compleição atlética e a extroversão de Manon.
Nenhuma das duas mulheres disse como gastaria o dinheiro do julgamento, mas Manon disse que sonhava em se mudar para a Inglaterra e seguir uma carreira em administração.
"A história do meu nascimento me deixou mais forte", disse Manon enquanto comia batatas fritas de um saquinho laranja de fast food. Ela disse que encontrou equilíbrio por meio da terapia, do amor de sua mãe e de seu próprio pragmatismo "profundamente arraigado".
"Eu tendo a nunca deixar nada ao acaso", disse ela com um sorriso. "Agora eu tento até prever o impensável."
Tradução: Eloise De Vylder

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