Le Monde
Entre os dias 13 e 24 de abril, o subcomitê jurídico do Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Sideral (Unoosa, na sigla em inglês) se reuniu em Viena (Áustria) para sua 54ª sessão. Esse grupo de intrépidos juristas, de acordo com a revista "Foreign Policy", tem por missão estender o direito internacional à medida que nações e empresas vão se aventurando mais longe da Terra.
Eles estão tentando
preencher os vácuos jurídicos que cercam, por exemplo, a limpeza dos
resíduos que se acumulam em torno do planeta: em 2009, 35 milhões de
objetos com mais de 1 milímetro gravitavam à deriva no espaço, com os
riscos de colisões aumentando a cada ano. Eles também estão avaliando
direitos e deveres de futuros robôs-mineradores em missão de exploração.
Por exemplo, deveriam eles servir ao interesse geral, enriquecer uma
companhia privada ou os dois?
Em 1959, as Nações Unidas criaram o Comitê para a Utilização Pacífica do Espaço Sideral (Copuos, na sigla em inglês), que fundou as bases de uma ampla declaração adotada em assembleia geral em 1963, desdobrada ao longo da década em cinco tratados internacionais, que hoje formam uma espécie de imprecisa legislação do espaço.
Esses textos, amplamente ratificados, preconizam o uso pacífico do espaço, da Lua e de outros corpos celestes, considerados um legado comum. Eles proclamam a liberdade de exploração e determinam que seja salvo um astronauta em dificuldades, como um marinheiro. Cada Estado deve assumir a responsabilidade legal dos objetos que eles tenham lançado, e foi criado um registro internacional para cadastrar esses objetos, cuja responsabilidade cabe à Unoosa. Mas os Estados Unidos e a Rússia têm seus próprios programas de monitoramento espacial, que eles consideram estratégicos.
Desde então, não surgiu nada para regular as questões mais fundamentais, como armas, satélites espiões e poluição da Terra (em 1978, um satélite russo espalhou seu plutônio sobre o Canadá). Alguns países dão o exemplo adotando legislações nacionais para reduzir seu "impacto ambiental", como fez a França, em 2008. Mas a governança internacional continua sendo uma utopia.
Nem os norte-americanos nem os russos, principais potências espaciais, querem negociar restrições a suas atividades. Os países europeus, menos ambiciosos, parecem mais abertos. China e Índia, potências mais recentes, têm poucas chances de se revelarem muito cooperativas.
O que nos leva ao exemplo que serve de título a esse artigo. No dia 4 de março, o astronauta norte-americano Scott Kelly e o cosmonauta russo Mikhail Kornienko chegaram à Estação Espacial Internacional (ISS). Eles estão neste exato momento passando "ao largo" da costa chilena, acima do oceano Pacífico. Eles passarão um ano sem gravidade, o mais longo voo já efetuado, e servirão de cobaia para suas respectivas agências para avaliar os efeitos que poderão surgir, algum dia, em longos voos de exploração espacial confiados não a robôs, mas a seres humanos.
Esses efeitos já são em parte conhecidos. Sem gravidade, os dois não terão mais de se sentar. A pélvis deles perderá suas bolsas sinoviais, que protegem as articulações dos quadris contra diversos choques ligados à gravidade, mas que se tornam obsoletas no espaço.
Eles urinarão uma grande parte das reservas de sangue que são armazenadas em suas pernas em terra, mas que sobem para o centro de seus corpos na estação espacial. Mas, acima de tudo, psicólogos acompanharão com atenção a evolução do humor de Kelly e Kornienko, como a reação deles ao estresse de baixa intensidade permanente que envolve uma estadia no espaço, em confinamento, em barulho quase constante…
Na pior das hipóteses, é possível até imaginar que Kelly e Kornienko algum dia poderão tentar se esganar. Se algum dia a situação realmente viesse a degringolar e um dos dois morresse, quais seriam as consequências jurídicas?
Segundo os acordos que regulam a vida da ISS, as nações-membros deverão estender sua jurisdição aos módulos da estação que financiaram. Isso vale para as patentes de descobertas científicas e, portanto, teoricamente também para um crime. Por exemplo, se Kelly assassinasse Kornienko com uma enxada dentro do laboratório Kibo, construído pelo Japão, Kelly teria de ser julgado no Japão.
E será que os Estados Unidos abandonariam seu astronauta nas mãos de juízes japoneses? Provavelmente não. Seus advogados certamente buscariam um precedente aos processos abertos contra soldados ou mercenários contratados pelo Exército norte-americano no exterior. Como, por exemplo, o emblemático julgamento de quatro ex-funcionários da Blackwater responsáveis por um massacre em Bagdá, em 2007, que foi realizado em Washington.
Contudo, o Exército norte-americano se beneficiava então de um acordo de imunidade para seus soldados e contratados, assinado com o governo iraquiano. Esse acordo especificava que seus soldados estavam sujeitos à lei norte-americana em solo iraquiano. A recusa do ex-premiê Nouri al-Maliki em manter esse acordo acelerou a saída das tropas norte-americanas do país em 2011. Enfim, havia um acordo.
No espaço, isso praticamente não existe. Ou seja, a relação de forças ainda prevalece muito sobre a lei.
Legislação espacial imprecisa
Sobre quais bases eles podem se apoiar? Durante as primeiras horas da conquista espacial, lembra a revista, o espaço permaneceu como uma pura zona sem lei. A primeira tentativa de regulação foi feita em 1958, em uma troca de cartas entre o então presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, e o primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchev. Mas eles fracassaram: a URSS havia enviado a Sputnik 1 para o espaço no ano anterior e tinha confiança em sua superioridade tecnológica, não vendo necessidade em transigir.Em 1959, as Nações Unidas criaram o Comitê para a Utilização Pacífica do Espaço Sideral (Copuos, na sigla em inglês), que fundou as bases de uma ampla declaração adotada em assembleia geral em 1963, desdobrada ao longo da década em cinco tratados internacionais, que hoje formam uma espécie de imprecisa legislação do espaço.
Esses textos, amplamente ratificados, preconizam o uso pacífico do espaço, da Lua e de outros corpos celestes, considerados um legado comum. Eles proclamam a liberdade de exploração e determinam que seja salvo um astronauta em dificuldades, como um marinheiro. Cada Estado deve assumir a responsabilidade legal dos objetos que eles tenham lançado, e foi criado um registro internacional para cadastrar esses objetos, cuja responsabilidade cabe à Unoosa. Mas os Estados Unidos e a Rússia têm seus próprios programas de monitoramento espacial, que eles consideram estratégicos.
Desde então, não surgiu nada para regular as questões mais fundamentais, como armas, satélites espiões e poluição da Terra (em 1978, um satélite russo espalhou seu plutônio sobre o Canadá). Alguns países dão o exemplo adotando legislações nacionais para reduzir seu "impacto ambiental", como fez a França, em 2008. Mas a governança internacional continua sendo uma utopia.
Nem os norte-americanos nem os russos, principais potências espaciais, querem negociar restrições a suas atividades. Os países europeus, menos ambiciosos, parecem mais abertos. China e Índia, potências mais recentes, têm poucas chances de se revelarem muito cooperativas.
O que nos leva ao exemplo que serve de título a esse artigo. No dia 4 de março, o astronauta norte-americano Scott Kelly e o cosmonauta russo Mikhail Kornienko chegaram à Estação Espacial Internacional (ISS). Eles estão neste exato momento passando "ao largo" da costa chilena, acima do oceano Pacífico. Eles passarão um ano sem gravidade, o mais longo voo já efetuado, e servirão de cobaia para suas respectivas agências para avaliar os efeitos que poderão surgir, algum dia, em longos voos de exploração espacial confiados não a robôs, mas a seres humanos.
Esses efeitos já são em parte conhecidos. Sem gravidade, os dois não terão mais de se sentar. A pélvis deles perderá suas bolsas sinoviais, que protegem as articulações dos quadris contra diversos choques ligados à gravidade, mas que se tornam obsoletas no espaço.
Eles urinarão uma grande parte das reservas de sangue que são armazenadas em suas pernas em terra, mas que sobem para o centro de seus corpos na estação espacial. Mas, acima de tudo, psicólogos acompanharão com atenção a evolução do humor de Kelly e Kornienko, como a reação deles ao estresse de baixa intensidade permanente que envolve uma estadia no espaço, em confinamento, em barulho quase constante…
Na pior das hipóteses, é possível até imaginar que Kelly e Kornienko algum dia poderão tentar se esganar. Se algum dia a situação realmente viesse a degringolar e um dos dois morresse, quais seriam as consequências jurídicas?
Segundo os acordos que regulam a vida da ISS, as nações-membros deverão estender sua jurisdição aos módulos da estação que financiaram. Isso vale para as patentes de descobertas científicas e, portanto, teoricamente também para um crime. Por exemplo, se Kelly assassinasse Kornienko com uma enxada dentro do laboratório Kibo, construído pelo Japão, Kelly teria de ser julgado no Japão.
E será que os Estados Unidos abandonariam seu astronauta nas mãos de juízes japoneses? Provavelmente não. Seus advogados certamente buscariam um precedente aos processos abertos contra soldados ou mercenários contratados pelo Exército norte-americano no exterior. Como, por exemplo, o emblemático julgamento de quatro ex-funcionários da Blackwater responsáveis por um massacre em Bagdá, em 2007, que foi realizado em Washington.
Contudo, o Exército norte-americano se beneficiava então de um acordo de imunidade para seus soldados e contratados, assinado com o governo iraquiano. Esse acordo especificava que seus soldados estavam sujeitos à lei norte-americana em solo iraquiano. A recusa do ex-premiê Nouri al-Maliki em manter esse acordo acelerou a saída das tropas norte-americanas do país em 2011. Enfim, havia um acordo.
No espaço, isso praticamente não existe. Ou seja, a relação de forças ainda prevalece muito sobre a lei.
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