quinta-feira, 30 de abril de 2015

Máfias da imigração lucram com a indolência da Europa
A falta de uma política eficaz de acolhimento deixa os imigrantes africanos à mercê das redes de traficantes, cada vez mais poderosas
Pablo Ordaz - El País
Algumas horas depois de chegar ao porto siciliano de Catânia, sentindo-se pela primeira vez seguro em muito tempo, o menor somali - quase uma criança - conta sua história: "Saí da Somália no verão passado. Meus pais pagaram muito dinheiro a uma pessoa do Sudão para que me levasse junto com outras crianças à Noruega, onde vivem meus tios, mas ao chegar à Líbia me trancaram em uma casa grande porque queriam mais dinheiro. Ali passei nove meses até que meus pais conseguiram pagar o resgate e nos embarcaram para a Itália. Passei muito mal: me batiam e às vezes me deixavam vários dias sem comer. Fiquei doente e vi muita gente morrer".
Bastam cinco dias na Sicília. Nem sequer uma semana é necessária para confirmar que a Cáritas, ou a Cruz Vermelha, ou a Anistia Internacional, ou a Save the Children, ou tantas outras organizações humanitárias têm razão quando, perdendo a paciência depois de assistir a tantos naufrágios no Mediterrâneo, acusam os países europeus - dizer "Europa" se transforma em subterfúgio para evitar as próprias responsabilidades - de terem declarado guerra aos imigrantes.
"É revoltante", enfurece-se Francesco Rocca, presidente da Cruz Vermelha na Itália, "que se continue chamando de emergência uma tragédia que se repete como uma hemorragia contínua há mais de 20 anos. Não querem ver que se trata de pessoas que estão fugindo da guerra e da fome. Continua-se olhando para o outro lado."
Um lavar de mãos cujas terríveis consequências são muito fáceis de comprovar: onde as autoridades não protegem os mais frágeis, as máfias as exploram. Basta assistir no porto de Catânia à chegada dos sobreviventes do último grande naufrágio. Ou ir no dia seguinte à localidade de Mineo para conhecer as terríveis histórias de alguns dos milhares de estrangeiros confinados no maior centro de internação da Europa. Ou assistir às explicações que Francesco Lo Voi, o promotor-chefe de Palermo, dá em seu escritório sobre as redes mafiosas que traficam pessoas. Ou, se ainda ficasse alguma dúvida, escutar o calvário do menino somali capturado na Líbia pelos traficantes de pessoas.
Em qualquer desses cenários se chega à conclusão - desde que não se insista em olhar para o outro lado - de que uma rede cada vez mais densa de máfias oferece aos migrantes, a preço de ouro e de morte, aquilo que os países europeus continuam se negando a lhes conceder: um corredor seguro para fugir da guerra ou da fome e um direito de asilo que, uma vez na Europa, não os obrigue a se transformar em fantasmas ou em clandestinos.
O primeiro cenário talvez seja o mais grotesco. Sobre o cais de Catânia acontece o mesmo que um ano e meio atrás no de Lampedusa. As autoridades - neste caso um ministro do governo de Matteo Renzi, Graziano Delrio, e o presidente da região da Sicília, Rosario Crocetta, convenientemente imortalizados por dezenas de câmeras - esperam os sobreviventes do naufrágio que na madrugada de domingo tirou a vida de mais de 800 pessoas. Depois de receberem as boas-vindas oficiais, foram enviados imediatamente ao centro de internação de Mineo, junto com mais 3.200 imigrantes que esperam, às vezes durante mais de um ano, que a Itália lhes conceda asilo ou os devolva a seus países.
Em Lampedusa foi ainda pior. A cidadania honorária foi concedida a centenas de mortos, ao mesmo tempo que se iniciava o processo de expulsão do punhado de sobreviventes. O passo seguinte, o de sua internação em um centro de acolhimento, não é menos chocante.
A Itália, que com razão alega sentir-se sozinha diante do fenômeno da imigração - mais de 240 mil pessoas conseguiram cruzar o canal da Sicília nos últimos 15 meses e 5.300 perderam a vida tentando -, se vinga da Europa pela via dos fatos. Mas, embora segundo o Tratado de Dublin o imigrante ou refugiado político tenha que iniciar a petição de asilo no país europeu ao chegar, e essa petição deve incluir a coleta da impressão digital em um período não muito superior a três dias, os dados reais são eloquentes: das 170 mil pessoas que chegaram à Itália no ano passado, cerca de 100 mil desapareceram poucos meses depois, sem deixar rastro.
Uma vez superada a perigosa travessia do Mediterrâneo, a grande maioria dos migrantes, seja por seus próprios meios ou entregando-se novamente às máfias, segue seu caminho para o norte da Europa. De fato, durante a recente operação dirigida pela promotoria de Palermo contra uma máfia de tráfico de pessoas, alguns componentes da rede viviam no centro de acolhimento de Mineo, lado a lado com suas vítimas.
"Trata-se de uma organização muito eficiente", explica o promotor Lo Voi. "Os principais chefes estão na Líbia, têm contatos sólidos na Sicília e pontos de referência no resto da Itália e em outros países europeus. Movimentam-se como se fossem agências de viagens, isto é, oferecendo aos imigrantes as passagens de ônibus, ou mesmo ônibus inteiros para viajar pela Europa. Têm a capacidade de abrigar os imigrantes na Líbia enquanto seus familiares completam o pagamento."
O promotor Lo Voi, mais acostumado a enfrentar a velha Cosa Nostra do que as novas redes internacionais, diz que por enquanto não encontrou nenhum vínculo entre "os escravagistas do século 21" - como os definiu Renzi - e o terrorismo jihadista. Quanto a se a máfia siciliana se associou a um negócio que representa "entre 80 mil e 100 mil euros de lucro por barco", sua resposta é enigmática: "Prefiro não responder a essa pergunta agora".
Há outra pergunta que também ainda não tem resposta. O menor somaliano e tantos outros sobreviventes do Mediterrâneo trouxeram, junto com suas terríveis vivências, um espelho em que a sociedade europeia em geral, e a italiana muito em particular, não têm como deixar de se olhar: somos ou não racistas?
Na Itália, algumas formações, sobretudo a Liga Norte e certas ramificações do partido de Silvio Berlusconi, estão tentando pescar votos no medo do estrangeiro. Matteo Ianniti, da Rede Antirracista de Catânia, afirma que as pessoas são mais sensatas que seus políticos: "Os políticos falam em ir à Líbia bombardear os barcos, enquanto as pessoas comuns dizem que é preciso acolher os imigrantes. Se os deixarmos afogar-se, nossa consciência se afogará com eles."
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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