quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma sociedade moralmente sedentária
Percival Puggina - MSM
Li “O homem medíocre” pela primeira vez em 1999. Na época, o cetro do poder político brasileiro estava em outras mãos e a oposição de então apresentava-se como modelo das mais seráficas virtudes. Um capítulo do livro, em especial, chamou-me a atenção por parecer escrito para aquela realidade. O autor, José Ingenieros, tratava, ali, da diferença entre a mera honestidade e a virtude, bem como da falsa honestidade daqueles que a exibem como troféu.
Em todos os tempos, a ditadura dos medíocres é inimiga do homem virtuoso. Prefere o honesto e o exibe como exemplo. Mas há nisso um erro ou mentira que cabe apontar. Honestidade não é virtude, ainda que não seja vício. A virtude se eleva sobre a moral corrente, implica uma certa aristocracia do coração, própria do talento moral. O virtuoso se empenha em busca da perfeição.”
Com efeito, não fazer o mal é bem menos do que fazer todo o bem que se possa. Ser e proclamar-se honesto para consumo externo é moldar-se às expectativas da massa e isso fica muito aquém da verdadeira virtude. Não há diferença entre o covarde que modera suas ações por medo do castigo e o cobiçoso que age em busca da recompensa, afirma o filósofo portenho enquanto sentencia sobre o homem medíocre: Ele teme a opinião pública porque ela é a medida de todas as coisas, senhora de seus atos“. Temia, filósofo Ingenieros, temia. O medíocre não mais teme a opinião pública porque a nação tolerou prostituir-se em troca de umas poucas moedas.
Não demorou muito, daquela minha leitura, para que as palavras de Ingenieros desnudassem a intimidade do novo círculo de poder que se instalara no país! Presentemente, após 12 anos disso, sempre em dose crescente, estou convencido, como nunca, de que jamais enfrentaremos de modo correto a degradação das práticas políticas brasileiras se não compreendermos o que é a virtude e como ela se expressa no plano pessoal e no plano institucional.
Há alguns anos, quando se discutia com disposição semelhante à de agora a conveniência e o conteúdo de uma reforma política, instalou-se na opinião pública ampla convergência quanto à indispensabilidade de ser criado preceito que impusesse a fidelidade partidária. “É preciso estabelecer a fidelidade partidária!”, clamavam as vozes nas calçadas, em torno das mesas de bar, nas academias e nos salões do poder. Cansei de alertar, em sucessivos artigos, contra a falsa esperança que a nação depositava nesse instrumento de coerção. Tudo que se lia sobre o assunto passava a impressão de que a infidelidade partidária sintetizava nossos males políticos e era o coração ético de uma boa reforma. Por quê? Nunca entendi. Há coisas que se repetem sem explicação plausível.
Decorridos, já, sete anos de vigência do instituto da fidelidade partidária está demonstrado que ela em nada melhorou o padrão das relações institucionais entre o governo e o parlamento, nem a conduta dos agentes políticos nacionais.
É preciso distinguir, portanto, a virtude que se alcança por adesão voluntária a um determinado bem, da virtude intrínseca a modelos institucionais que inibem a conduta não virtuosa. A fidelidade será, sempre, um produto da vontade humana. O pérfido só renunciará a perfídia quando ela se mostrar inconveniente. O venal pode trocar de camiseta, mas só não terá preço se não houver negócio a ser feito. É por esse motivo que quando o STF proclamou a constitucionalidade da Lei da Ficha Lima, eu escrevi que estávamos trocando de fichas, ou de fraldas como diriam alguns, mas não estávamos acabando com a sujeira que, logo iria encardir outras tantas.
Por quê? Porque essa lei parece desconhecer que a corrupção tem causas em duas fragilidades, a da moralidade individual e a institucional. No plano das individualidades, só teremos pessoas virtuosas em maior número quando forem enfrentadas certas questões mais amplas, na ordem social. Ou seja, quando:
• a virtude for socialmente reconhecida como um bem a ser buscado;
• escolas e universidades retomarem o espírito que lhes deu origem e levarem a sério sua missão de formação e informação e não cooptação;
• famílias e meios de comunicação compreenderem a relação existente entre o desvario das condutas instalado na vida pública e o estrago que vêm produzindo na formação da consciência moral e na vida privada dos indivíduos;
• o Estado deixar de ser fonte de privilégios;
• for vedada a filiação partidária dos servidores públicos;
• forem extintos os CCs na administração direta, indireta e Estatais;
• a sociedade observar com a atenção devida o método formativo e educacional das corporações militares;
• voltar a ser cultivado o amor à Pátria;
• a noção ideológica de “la pátria grande” for banida por inspirar alta traição;
• as Igrejas voltarem a reconhecer que sua missão salvadora nada tem a ver com sociedade do bem estar social, mas com sociedade comprometida com os valores que levam ao supremo Bem.

Não há virtude onde não há uma robusta adesão da vontade ao Bem. E isso não acontece por acaso. É uma busca que exige grande empenho.

Contudo, a democracia (governo de todos), não é necessariamente aristocracia (governo dos melhores). E será sempre tão sensível à demagogia quanto a aristocracia é sensível à oligarquia. Portanto, numa ordem democrática, como tanto a desejamos, é necessário estabelecer instituições que, na melhor hipótese, induzam os agentes políticos a comportamentos virtuosos ou, com expectativas mais modestas, inibam as condutas viciosas. Ora, o modelo político brasileiro parece ter sido costurado para compor guarda-roupa de cabaré. Não há como frear a corrupção que se nutre num modelo institucional que a favorece tão eficientemente, seja na ponta das oportunidades, seja na ponta da impunidade, vale dizer, pela via das causas e pela via das consequências. Não estou falando de leis que a combatam, mas de um modelo político que a desestimule.
Como? Adotando procedimentos e preceitos comuns nas Forças Armadas. Libertando a administração pública dos arreios partidários, por exemplo. Ao entregar para o aparelhamento partidário a imensa máquina da administração (que a mais elementar prudência aconselharia afastar das ambições eleitorais), o Brasil amarra cachorro com linguiça e dá operosidades e dimensões de serraria industrial ao velho e solitário “toco”. “É politicamente inviável fazer isso no Brasil”, estará pensando o leitor destas linhas em coro com a grande maioria dos que, entre nós, exercitam poder político. Eu sei, eu sei. Não sou ingênuo. Está tudo errado, mas não se mexe. As coisas são assim, por aqui.
Do mesmo modo como a fusão do Governo (necessariamente partidário e transitório) com a Administração (necessariamente técnica e neutra porque permanente no tempo) cria problemas e distorções de conduta, a fusão do Governo com o Estado (que, por ser de todos, não pode ter partido) faz coisa ainda pior no plano da política interna e externa. Desde a proclamação da República, todo governante trata de aparelhar o Estado e exercer influência sobre suas estruturas.
Por fim, quero lembrar que o relativismo moral veio para acabar com a moral. O novo totalitarismo elegeu como adversário os valores do Ocidente. Multidões, sem o perceber, tornaram-se moralmente sedentárias.
Abandonaram os exercícios que moldam a consciência e fortalecem a vontade. Ao fim e ao cabo, em vez de uma sociedade onde os indivíduos orientam suas vidas segundo os conceitos que têm, constituímos uma sociedade onde os indivíduos conformam seus princípios e seus valores à vida que levam.

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