Dinheiro foi crucial também para Ivo Nascimento Pitanguy poder se cercar de causídicos de peso e responder em liberdade provisória à acusação de homicídio culposo
Dorrit Harazim - O Globo
Dada a idade do cliente — 59 anos —, os advogados de Ivo Nascimento
Pitanguy teriam dificuldade em atribuir o fato de o réu ter atropelado e
matado o operário José Fernando Ferreira da Silva numa calçada da Gávea
dias atrás a traumas de menino rico.
Foi num rumoroso caso de 2013 envolvendo um garoto americano de 16 anos culpado de atropelar quatro pessoas no Texas que advogados introduziram a affluenza como linha de defesa perante uma corte. O esdrúxulo termo, com sonoridade de doença ou síndrome, costuma ser usado por críticos do consumismo. Ele designa os efeitos sociais e psicológicos que supostamente afetam jovens abastados de pais sem rédeas.
Ethan Couch, o adolescente texano em questão, dirigia uma picape F-350 escarlate, com oito amigos a bordo, por uma estrada secundária perto de Dallas. A turma já havia roubado duas caixas de cerveja de um supermercado e procurava uma farmácia aberta. Ethan já havia ingerido uma dosagem de álcool três vezes acima da permitida nos Estados Unidos para maiores de 21 anos. Também havia tomado Valium e fumado maconha.
De pais divorciados, ele crescera na região de Fort Worth, morando ora na mansão do pai industrial, ora na da mãe, sempre em enclaves blindados para famílias de alto padrão aquisitivo. Aluno excepcional, chegou a ser aceito numa academia reservada a 25 estudantes com QI alto, mas dela se afastou.
Segundo seus advogados, no dia do atropelamento, vivia em estado típico de privilégio, fortuna e permissividade, que o tornava incapaz de avaliar as consequências sociais de seus atos. Ou seja, sofria de affluenza. Ao longo da curta existência, já havia cometido pelo menos seis infrações penais sem ter sofrido qualquer punição — nem da lei nem dos pais.
Na noite do atropelamento, um sábado de junho de 2013, sua picape emergiu da escuridão da estrada em alta velocidade. Ethan sequer teve tempo de pisar no freio. Estraçalhou o que havia pela frente: uma cozinheira de 24 anos e seu Mercury de pneu furado; uma mãe e a filha de 21 anos que haviam saído da casa em frente para ajudar; um jovem pastor que voltava da formatura do filho e descera do carro para também oferecer ajuda. Morreram todos.
Nos EUA, cada estado tem leis de trânsito próprias, podendo a maioridade criminal oscilar dos 11 aos 18 anos. Dependendo da gravidade do crime, o juiz estabelece se o menor será ou não julgado como adulto.
No caso de Ethan, a acusação apresentou pedido de 20 anos de reclusão. A juíza da Corte Juvenil, contudo, aceitou a tese de affluenza, condenou o atropelador a dez anos de liberdade condicional e à internação compulsória por tempo indeterminado numa clínica de reabilitação paga pelos pais.
A estadia de Ethan na instituição californiana — cuja anuidade custava US$ 450 mil e que oferecia terapia equina, curso de artes marciais, opção alimentar de produtos exclusivamente orgânicos — durou 62 dias.
Depois disso, a pedido dos pais, o garoto passou alguns meses numa clínica texana mais convencional. Atualmente com 18 anos, ele frequenta um programa corretivo em Amarillo. Quando concluir a condicional, estará com 26 anos e uma vida de ficha limpa pela frente.
Se beber ou dirigir antes disso, poderá ser julgado como adulto e receber pena de dez anos de encarceramento.
Embora a affluenza ainda não conste do generoso catálogo de mais de 400 distúrbios mentais reconhecidos pela poderosa Associação Psiquiátrica Americana, não há garantia de que não venha a sê-lo um dia.
Para os familiares das vítimas do atropelador, o papel desempenhado pelo dinheiro no julgamento do réu foi decisivo por outro motivo: para a remuneração da excelsa equipe de defesa do garoto.
Dinheiro foi crucial também para Ivo Nascimento Pitanguy poder se cercar de causídicos de peso e responder em liberdade provisória à acusação de homicídio culposo. Primogênito do cirurgião plástico mais renomado do país, Ivinho, como é conhecido, também sempre conheceu a afluência.
“Cresceu à sombra dos bambus plantados na ilha do pai, um paraíso particular no mar esmeralda de Angra dos Reis, onde os pássaros do criadouro são alimentados com sardinha fresca a cada manhã”, relataram os repórteres Caio Barreto Briso e Gustavo Goulart.
A exótica síndrome introduzida como linha da defesa de Ethan Couch, porém, só foi exitosa por se tratar de um adolescente. Por uma questão de coerência, os progenitores do jovem deveriam ter sido listados como corresponsáveis — por não terem procurado corrigir as delinquências do filho mimado.
No caso de Ivo, homem adulto quase sexagenário, nem os advogados texanos conseguiriam invocar imaturidade. E ainda menos estender a seus idosos genitores o pedaço da culpa por não impedirem a irresponsabilidade fatal do filho.
No Brasil, esse naco da conta deve ser cobrado do Detran e da não aplicação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Apesar de ter 70 multas no prontuário (14 delas por dirigir embriagado), ter sido flagrado 13 vezes pela Lei Seca desde 2010 e somar 240 pontos na carteira, quando o máximo permitido são 20, Ivo Nascimento Pitanguy jamais teve a habilitação suspensa, relatou a reportagem do GLOBO. Até matar José Ferreira na noite chuvosa do dia 20, quando dirigiu, uma vez mais, alcoolizado.
É de se supor que continuaria dirigindo, não fosse pela repercussão do caso, que levou o órgão estadual a abrir processo para a suspensão de sua habilitação. É assustador descobrir que a Lei Seca tenha apreendido 26 mil carteiras de motoristas alcoolizados só em 2009 e 2010 sem, contudo, instaurar um único processo de suspensão do documento do infrator.
É desolador ler a declaração do presidente atual do Detran fluminense de que “talvez tenha faltado uma atenção” do órgão para a área de multas. Chegara a hora, admitiu, de pensar num sistema que priorize o julgamento das infrações mais graves.
Só que o Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor há 17 anos e, mesmo assim, morrem no país quase cinco pessoas por hora em acidentes — 120 por dia, mais de 42 mil por ano. Talvez a hora seja de o Detran levar um banho de lava-jato.
Foi num rumoroso caso de 2013 envolvendo um garoto americano de 16 anos culpado de atropelar quatro pessoas no Texas que advogados introduziram a affluenza como linha de defesa perante uma corte. O esdrúxulo termo, com sonoridade de doença ou síndrome, costuma ser usado por críticos do consumismo. Ele designa os efeitos sociais e psicológicos que supostamente afetam jovens abastados de pais sem rédeas.
Ethan Couch, o adolescente texano em questão, dirigia uma picape F-350 escarlate, com oito amigos a bordo, por uma estrada secundária perto de Dallas. A turma já havia roubado duas caixas de cerveja de um supermercado e procurava uma farmácia aberta. Ethan já havia ingerido uma dosagem de álcool três vezes acima da permitida nos Estados Unidos para maiores de 21 anos. Também havia tomado Valium e fumado maconha.
De pais divorciados, ele crescera na região de Fort Worth, morando ora na mansão do pai industrial, ora na da mãe, sempre em enclaves blindados para famílias de alto padrão aquisitivo. Aluno excepcional, chegou a ser aceito numa academia reservada a 25 estudantes com QI alto, mas dela se afastou.
Segundo seus advogados, no dia do atropelamento, vivia em estado típico de privilégio, fortuna e permissividade, que o tornava incapaz de avaliar as consequências sociais de seus atos. Ou seja, sofria de affluenza. Ao longo da curta existência, já havia cometido pelo menos seis infrações penais sem ter sofrido qualquer punição — nem da lei nem dos pais.
Na noite do atropelamento, um sábado de junho de 2013, sua picape emergiu da escuridão da estrada em alta velocidade. Ethan sequer teve tempo de pisar no freio. Estraçalhou o que havia pela frente: uma cozinheira de 24 anos e seu Mercury de pneu furado; uma mãe e a filha de 21 anos que haviam saído da casa em frente para ajudar; um jovem pastor que voltava da formatura do filho e descera do carro para também oferecer ajuda. Morreram todos.
Nos EUA, cada estado tem leis de trânsito próprias, podendo a maioridade criminal oscilar dos 11 aos 18 anos. Dependendo da gravidade do crime, o juiz estabelece se o menor será ou não julgado como adulto.
No caso de Ethan, a acusação apresentou pedido de 20 anos de reclusão. A juíza da Corte Juvenil, contudo, aceitou a tese de affluenza, condenou o atropelador a dez anos de liberdade condicional e à internação compulsória por tempo indeterminado numa clínica de reabilitação paga pelos pais.
A estadia de Ethan na instituição californiana — cuja anuidade custava US$ 450 mil e que oferecia terapia equina, curso de artes marciais, opção alimentar de produtos exclusivamente orgânicos — durou 62 dias.
Depois disso, a pedido dos pais, o garoto passou alguns meses numa clínica texana mais convencional. Atualmente com 18 anos, ele frequenta um programa corretivo em Amarillo. Quando concluir a condicional, estará com 26 anos e uma vida de ficha limpa pela frente.
Se beber ou dirigir antes disso, poderá ser julgado como adulto e receber pena de dez anos de encarceramento.
Embora a affluenza ainda não conste do generoso catálogo de mais de 400 distúrbios mentais reconhecidos pela poderosa Associação Psiquiátrica Americana, não há garantia de que não venha a sê-lo um dia.
Para os familiares das vítimas do atropelador, o papel desempenhado pelo dinheiro no julgamento do réu foi decisivo por outro motivo: para a remuneração da excelsa equipe de defesa do garoto.
Dinheiro foi crucial também para Ivo Nascimento Pitanguy poder se cercar de causídicos de peso e responder em liberdade provisória à acusação de homicídio culposo. Primogênito do cirurgião plástico mais renomado do país, Ivinho, como é conhecido, também sempre conheceu a afluência.
“Cresceu à sombra dos bambus plantados na ilha do pai, um paraíso particular no mar esmeralda de Angra dos Reis, onde os pássaros do criadouro são alimentados com sardinha fresca a cada manhã”, relataram os repórteres Caio Barreto Briso e Gustavo Goulart.
A exótica síndrome introduzida como linha da defesa de Ethan Couch, porém, só foi exitosa por se tratar de um adolescente. Por uma questão de coerência, os progenitores do jovem deveriam ter sido listados como corresponsáveis — por não terem procurado corrigir as delinquências do filho mimado.
No caso de Ivo, homem adulto quase sexagenário, nem os advogados texanos conseguiriam invocar imaturidade. E ainda menos estender a seus idosos genitores o pedaço da culpa por não impedirem a irresponsabilidade fatal do filho.
No Brasil, esse naco da conta deve ser cobrado do Detran e da não aplicação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Apesar de ter 70 multas no prontuário (14 delas por dirigir embriagado), ter sido flagrado 13 vezes pela Lei Seca desde 2010 e somar 240 pontos na carteira, quando o máximo permitido são 20, Ivo Nascimento Pitanguy jamais teve a habilitação suspensa, relatou a reportagem do GLOBO. Até matar José Ferreira na noite chuvosa do dia 20, quando dirigiu, uma vez mais, alcoolizado.
É de se supor que continuaria dirigindo, não fosse pela repercussão do caso, que levou o órgão estadual a abrir processo para a suspensão de sua habilitação. É assustador descobrir que a Lei Seca tenha apreendido 26 mil carteiras de motoristas alcoolizados só em 2009 e 2010 sem, contudo, instaurar um único processo de suspensão do documento do infrator.
É desolador ler a declaração do presidente atual do Detran fluminense de que “talvez tenha faltado uma atenção” do órgão para a área de multas. Chegara a hora, admitiu, de pensar num sistema que priorize o julgamento das infrações mais graves.
Só que o Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor há 17 anos e, mesmo assim, morrem no país quase cinco pessoas por hora em acidentes — 120 por dia, mais de 42 mil por ano. Talvez a hora seja de o Detran levar um banho de lava-jato.
Ivo Nascimento Pitanguy ao chegar à delegacia: preso (Foto: Reprodução / TV Globo)
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