Teresa de Sousa - Público
Pela segunda vez, quando se trata de um desafio directo aos fundamentos da Europa, é a voz de Merkel que se ouve e é ela que tenta ter uma visão de longo prazo
1. Não sei se por mérito próprio ou demérito alheio, Angela Merkel foi a única voz audível e consequente perante uma vaga de refugiados só comparável com a II Guerra, dispostos a arriscar tudo para chegar à Europa. A chanceler conseguiu colocar o assunto no topo da agenda europeia e não é provável que alguém o consiga tirar de lá.
Pela
segunda vez, quando se trata de um desafio directo aos fundamentos da
Europa, é a voz dela que se ouve e é ela que tenta ter uma visão de
longo prazo. A primeira foi durante a crise ucraniana, quando decidiu
que a agressão russa era uma ameaça à segurança europeia e agiu em
conformidade, apesar das reservas de alguns dos seus parceiros mais
fixados nas vantagens económicas. Desta vez, foi a sua voz que rompeu um
silêncio ensurdecedor de uma larga maioria de governos europeus,
dispostos a ignorar uma tragédia sem nome. A imprensa alemã dá várias
explicações, nem todas boas, para este protagonismo da chanceler, que
não se resume a palavras: a Alemanha está preparada para receber até ao
fim do ano perto de 800 mil refugiados. Diz que o líder do SPD e
vice-chanceler Sigmar Gabriel foi o primeiro a ir a Heidenau, perto de
Dresden, enfrentar as manifestações e os ataques contra um dos campos de
refugiados. Ou que o silêncio de Merkel durou tempo de mais. É
possível. Mas isso não tira o valor às suas palavras. E também é verdade
que a chanceler tem há muito duas preocupações fundamentais, que não
mereceram particular atenção. Ela sabe que a Alemanha é o último dos
países a poder dar-se ao luxo de ver um partido de extrema-direita
racista criar raízes. As razões são óbvias. Até agora tem conseguido
conter as tentativas da Alternativa para a Alemanha e do Pegida, um
movimento contra os imigrantes de todas as espécies com raízes sobretudo
na parte Leste do país, onde de resto se registam a maioria dos ataques
aos campos de refugiados. Merkel enfrenta-os, como fez agora em
Dresden, e conta com 60 por cento de compatriotas que pensam como ela. A
sua segunda preocupação é o envelhecimento da população alemã a um
ritmo muito elevado, que lhe tem servido também para defender a
austeridade e a poupança. Tem o apoio da classe empresarial, que sabe
até que ponto precisa de mão-de-obra especializada ou indiferenciada
para alimentar a actividade económica. “Precisamos de mão-de-obra: serve
qualquer cor”, dizia recentemente um empresário citado pela Spiegel. Como escreve a Economist,
a imigração e o afluxo de refugiados são uma mais-valia para a Europa,
incluindo o Reino Unido. Vêm para trabalhar arduamente por uma
oportunidade. “Dêem-lhes trabalho”, aconselha a velha revista britânica
em sintonia com muitos empresários alemães.
2. O passo seguinte da chanceler é mais difícil: convencer os seus parceiros europeus a criar condições para receber um número muito maior de refugiados. François Hollande foi na segunda-feira a Berlim discutir com a chanceler o que fazer. Apesar da bela língua de Voltaire, o Presidente não assumiu compromissos. Prefere centrar-se no terrorismo dos “lobos solitários” que tem fustigado o país. Não quer abrir espaço ao discurso anti-imigrantes que Nicolas Sarkozy está sempre disposto tirar da algibeira e ainda não se convenceu que não é cedendo à agenda de Marine Le Pen que consegue uma reeleição. Para a França dos Direitos do Homem é muito pouco. Aliás, o Monde interrogava-se recentemente sobre o estranho silêncio da esquerda francesa perante a tragédia das migrações. Se não houver uma resposta comum, corajosa, realista mas digna dos valores que a Europa gosta de apregoar ao mundo, a violência racista pode ser o próximo degrau. “O que me inquieta é ver o ressentimento, a rejeição, o medo em alguns sectores da população, ateando fogo aos campos de refugiados, empurrando os barcos que chegam às costas (…). Isto não é a Europa”, disse Jean-Claude Juncker. O problema é que outros valores menos louváveis vêm ao de cima rapidamente. O novo Presidente polaco, que vem do lado católico e conservador, avisou que a Polónia não está em condições de receber mais do que 60 refugiados com a condição de serem cristãos. Em Budapeste, Viktor Orbán dedica-se à construção de muros na fronteira sérvia. E mesmo nos países de longa tradição humanitária, como a Suécia (que, em termos relativos, é o país que recebe mais gente), o partido populista de direita está hoje no cimo das sondagens, beneficiando da situação. A Europa fez demasiadas concessões aos extremos, que agora dificultam qualquer acção positiva face a um problema que desafia a sua história e os seus valores. Reflecte um mundo em desordem para o qual tem de estar preparada. A maioria dos refugiados vem da Síria e da Líbia, fugindo do Estado Islâmico, da guerra e desespero. O primeiro passo é mudar a Convenção de Dublin sobre o asilo, estabelecendo uma regra comum. Como dizia Antonio Vitorino, a Grécia concede direito de asilo a 1 por cento dos pedidos, a Suécia a 80 por cento.
3. Entretanto, um novo factor de incerteza que, até recentemente, ninguém queria sequer considerar, pode matar no ovo a recuperação da economia mundial. A turbulência nas bolsas chineses e a previsão de uma queda maior do que o previsto do crescimento da economia da China lançaram ondas de pânico nos mercados internacionais e puseram muita gente a fazer contas. Os analistas dividem-se sobre a gravidade da crise, ou melhor, sobre a capacidade de Xi Jinping de controlar uma aterragem suave da economia chinesa, que não poderia manter-se eternamente com taxas de crescimento de 10 por cento ao ano. Para uns, Pequim vai manter o controlo, mesmo que com acidentes de percurso. Para outros, a queda do mercado accionista, com perdas enormes para os pequenos investidores chineses é muito mais profunda. Xi anunciou a transição de um modelo assente nas exportações e no investimento para uma maior aposta no consumo interno. Será um processo complexo que não ficará imune à turbulência social. A liderança chinesa sabe que a sua legitimidade assenta, já não na ideologia comunista, mas na capacidade de dar aos chineses uma perspectiva de vida melhor. Um crescimento anémico corta esta dinâmica fundamental. E os chineses, naturalmente, já não aceitam tudo. “O nacionalismo pode vir a ser a fonte primeira da legitimidade do Partido Comunista, que deixa de conseguir garantir a subida rápida do nível de vida”, diz Richard Haass, director do Council for Foreign Relations. Este nacionalismo já não o velho, de Mao, construído contra o Ocidente, que exigia a destruição de todos os símbolos da cultura ocidental. Mas outro, com outra proveniência história, contra a agressão japonesa antes e durante a II Guerra Mundial. Xi terá de geri-lo com algum cuidado porque quem resistiu ao Japão foram as forças do Kuomintang de Chang Kai-shek, que Mao acabaria por derrotar apenas em 1949. O Presidente chinês vai presidir no início de Setembro a um dos maiores desfiles militares de que há memória para celebrar os 70 anos do fim da Guerra Mundial, a que passou agora a chamar “a vitória da guerra mundial antifascista e da guerra popular da China contra a agressão japonesa”. A instabilidade regional que Pequim está a alimentar com as suas reivindicações territoriais, a reacção nervosa do Japão, que procura alargar a sua margem de manobra militar, duvidando do empenho americano na sua defesa, ou a sorte dos países da ASEAN, que se joga entre Washington para a segurança e Pequim para a economia, são sinais preocupantes. A única certeza é que o que acontecer na China afectará a vida de toda a gente, como já se está a ver no Brasil ou em África. E mesmo que os economistas alemães digam que não afectará a Alemanha, a queda das vendas de VW para a China (um terço do seu mercado) já é uma realidade. Resta o mercado de último recurso que são os Estados Unidos. Também aqui as mudanças são rápidas e inesperadas. Quem apostou no declínio inevitável da economia americana, tem agora a surpresa de vê-la crescer a 3,7 por cento no seguindo trimestre. Só haveria uma maneira de gerir estas imprevisibilidades com benefícios para todos: a cooperação entre Washington, Pequim e Bruxelas para tentar governar a globalização em vez de reagirem cada um para seu lado. A alternativa é ligeiramente assustadora.
2. O passo seguinte da chanceler é mais difícil: convencer os seus parceiros europeus a criar condições para receber um número muito maior de refugiados. François Hollande foi na segunda-feira a Berlim discutir com a chanceler o que fazer. Apesar da bela língua de Voltaire, o Presidente não assumiu compromissos. Prefere centrar-se no terrorismo dos “lobos solitários” que tem fustigado o país. Não quer abrir espaço ao discurso anti-imigrantes que Nicolas Sarkozy está sempre disposto tirar da algibeira e ainda não se convenceu que não é cedendo à agenda de Marine Le Pen que consegue uma reeleição. Para a França dos Direitos do Homem é muito pouco. Aliás, o Monde interrogava-se recentemente sobre o estranho silêncio da esquerda francesa perante a tragédia das migrações. Se não houver uma resposta comum, corajosa, realista mas digna dos valores que a Europa gosta de apregoar ao mundo, a violência racista pode ser o próximo degrau. “O que me inquieta é ver o ressentimento, a rejeição, o medo em alguns sectores da população, ateando fogo aos campos de refugiados, empurrando os barcos que chegam às costas (…). Isto não é a Europa”, disse Jean-Claude Juncker. O problema é que outros valores menos louváveis vêm ao de cima rapidamente. O novo Presidente polaco, que vem do lado católico e conservador, avisou que a Polónia não está em condições de receber mais do que 60 refugiados com a condição de serem cristãos. Em Budapeste, Viktor Orbán dedica-se à construção de muros na fronteira sérvia. E mesmo nos países de longa tradição humanitária, como a Suécia (que, em termos relativos, é o país que recebe mais gente), o partido populista de direita está hoje no cimo das sondagens, beneficiando da situação. A Europa fez demasiadas concessões aos extremos, que agora dificultam qualquer acção positiva face a um problema que desafia a sua história e os seus valores. Reflecte um mundo em desordem para o qual tem de estar preparada. A maioria dos refugiados vem da Síria e da Líbia, fugindo do Estado Islâmico, da guerra e desespero. O primeiro passo é mudar a Convenção de Dublin sobre o asilo, estabelecendo uma regra comum. Como dizia Antonio Vitorino, a Grécia concede direito de asilo a 1 por cento dos pedidos, a Suécia a 80 por cento.
3. Entretanto, um novo factor de incerteza que, até recentemente, ninguém queria sequer considerar, pode matar no ovo a recuperação da economia mundial. A turbulência nas bolsas chineses e a previsão de uma queda maior do que o previsto do crescimento da economia da China lançaram ondas de pânico nos mercados internacionais e puseram muita gente a fazer contas. Os analistas dividem-se sobre a gravidade da crise, ou melhor, sobre a capacidade de Xi Jinping de controlar uma aterragem suave da economia chinesa, que não poderia manter-se eternamente com taxas de crescimento de 10 por cento ao ano. Para uns, Pequim vai manter o controlo, mesmo que com acidentes de percurso. Para outros, a queda do mercado accionista, com perdas enormes para os pequenos investidores chineses é muito mais profunda. Xi anunciou a transição de um modelo assente nas exportações e no investimento para uma maior aposta no consumo interno. Será um processo complexo que não ficará imune à turbulência social. A liderança chinesa sabe que a sua legitimidade assenta, já não na ideologia comunista, mas na capacidade de dar aos chineses uma perspectiva de vida melhor. Um crescimento anémico corta esta dinâmica fundamental. E os chineses, naturalmente, já não aceitam tudo. “O nacionalismo pode vir a ser a fonte primeira da legitimidade do Partido Comunista, que deixa de conseguir garantir a subida rápida do nível de vida”, diz Richard Haass, director do Council for Foreign Relations. Este nacionalismo já não o velho, de Mao, construído contra o Ocidente, que exigia a destruição de todos os símbolos da cultura ocidental. Mas outro, com outra proveniência história, contra a agressão japonesa antes e durante a II Guerra Mundial. Xi terá de geri-lo com algum cuidado porque quem resistiu ao Japão foram as forças do Kuomintang de Chang Kai-shek, que Mao acabaria por derrotar apenas em 1949. O Presidente chinês vai presidir no início de Setembro a um dos maiores desfiles militares de que há memória para celebrar os 70 anos do fim da Guerra Mundial, a que passou agora a chamar “a vitória da guerra mundial antifascista e da guerra popular da China contra a agressão japonesa”. A instabilidade regional que Pequim está a alimentar com as suas reivindicações territoriais, a reacção nervosa do Japão, que procura alargar a sua margem de manobra militar, duvidando do empenho americano na sua defesa, ou a sorte dos países da ASEAN, que se joga entre Washington para a segurança e Pequim para a economia, são sinais preocupantes. A única certeza é que o que acontecer na China afectará a vida de toda a gente, como já se está a ver no Brasil ou em África. E mesmo que os economistas alemães digam que não afectará a Alemanha, a queda das vendas de VW para a China (um terço do seu mercado) já é uma realidade. Resta o mercado de último recurso que são os Estados Unidos. Também aqui as mudanças são rápidas e inesperadas. Quem apostou no declínio inevitável da economia americana, tem agora a surpresa de vê-la crescer a 3,7 por cento no seguindo trimestre. Só haveria uma maneira de gerir estas imprevisibilidades com benefícios para todos: a cooperação entre Washington, Pequim e Bruxelas para tentar governar a globalização em vez de reagirem cada um para seu lado. A alternativa é ligeiramente assustadora.
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