segunda-feira, 2 de março de 2015

Desalgemem a ONU 
O uso egoísta do poder de veto no Conselho de Segurança paralisa os esforços para impedir atrocidades  
Salil Shetty - NYT
Mike Segar/Reuters
23.fev.2015 - Reunião do Conselho de Segurança da ONU, na sede em Nova York (EUA) 23.fev.2015 - Reunião do Conselho de Segurança da ONU, na sede em Nova York (EUA)
Passe os olhos pela banca de jornal ou assista a qualquer canal de notícias que esteja ligado, e você se confrontará com uma onda de horror aparentemente incessante. Corpos moles sendo retirados de escombros, bombas grandes e pequenas destruindo bairros antes arborizados. Refugiados amontoando-se para se esquentar ou arriscando vida e membros para sobreviver. Sequestros e decapitações em massa.
Da Ucrânia à Nigéria, da Líbia à Síria, os últimos 12 meses foram um ano de um derramamento de sangue angustiante. Milhões de civis se viram presos em conflitos, com a violência por parte dos estados e de grupos armados causando mortes, ferimentos e sofrimentos inenarráveis.
Pela primeira vez, a Anistia Internacional tabulou o número de países onde crimes de guerra foram cometidos: 18 em 2014, um número chocante. Entre os piores estão a Síria, a República Centro-Africana, o Iraque, o Sudão do Sul, a Nigéria e Israel e os territórios palestinos.
Como resultado do crescimento de grupos como o Estado Islâmico e Boko Haram, abusos por parte de grupos armados se espalharam além das fronteiras nacionais, atingindo pelo menos 35 países.
Diante da enormidade e da inexorabilidade desse horror é fácil se sentir sem esperança. Mas nós não somos impotentes. Nossos governos e instituições podem não ter a vontade, mas têm a capacidade, tanto individual quanto coletiva, de ajudar a proteger civis em perigo. Este é um dever que eles estão deixando de cumprir de forma desprezível.
Em nosso relatório anual que será divulgado na quarta-feira, examinamos a situação de direitos humanos em 160 países. Descobrimos que a resposta global ao conflito e aos abusos foi vergonhosa e ineficaz.
Foi permitido que armas fossem enviadas para países onde são usadas para cometer abusos graves por parte de governos e grupos armados, com quantidades imensas enviadas a Iraque, Israel, Rússia, Sudão do Sul e Síria só no ano passado. Enquanto o Estado Islâmico tomava controle de partes extensas do Iraque, encontrou arsenais vultosos, maduros para serem colhidos.
Um Tratado de Comércio de Armas histórico entrou em vigor no ano passado, fornecendo uma estrutura jurídica para limitar a transferência internacional de armas e munição. Mas muitas nações ainda precisam ratificar o tratado.
Há também uma necessidade urgente de restrições para tratar do uso de armas explosivas – incluindo bombas aéreas, morteiros, artilharia, foguetes e mísseis balísticos – que devastaram áreas habitadas.
A ONU, estabelecida 70 anos atrás para garantir que nunca mais veríamos os horrores testemunhados na 2ª Guerra Mundial, deixou de agir repetidamente, mesmo quando poderia prevenir que crimes terríveis fossem cometidos contra civis.
O uso dos poderes de veto permitiram que interesses estreitos e particulares dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – Inglaterra, China, França, Rússia e Estados Unidos – tivessem precedência em relação às necessidades das vítimas de violações e abusos graves aos direitos humanos. Isso deixou a ONU paralisada e cada vez mais desacreditada neste momento crítico.
Na semana passada, o secretário-geral Ban Ki-moon escreveu para o Conselho de Segurança, pedindo o fim da abordagem "tradicional" em relação à Síria e uma ação urgente para suspender os cercos a civis e acabar com os ataques de bombas-barril. Este apelo veio depois de quatro vetos por parte da Rússia e da China para impedir a ação do Conselho de Segurança na Síria que poderia ter ajudado a salvar vidas de civis.
Da mesma forma, o fracasso da ONU em aprovar uma única resolução durante os 50 dias de conflito em Gaza no ano passado se deveram em grande parte à ameaça de veto dos Estados Unidos. Cada fracasso como este diminui a pouco confiança que resta no Conselho de Segurança para que ele tome ações decisivas para proteger civis.
Os fracassos de nossos governos e instituições são desalentadores, mas deveriam nos impulsionar à ação. Nós apelamos para que nossos governos deem alguns passos fundamentais.
Em situações onde atrocidades em massa estão sendo cometidas – ou estão prestes a ser cometidas – os cinco estados com poder de veto deveriam se comprometer a não usá-lo. Ao fazer isso, eles desalgemarão o Conselho de Segurança, permitindo que ele proteja as vidas de civis antes, durante ou após crimes graves. Tal compromisso também enviaria um sinal claro para os autores de abusos de que o mundo não ficará sentado assistindo enquanto atrocidades em massa – crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio – acontecem.
Alguns podem argumentar que é muito pouco realista esperar que os cinco membros permanentes coloquem os civis que sofrem em terras distantes acima de seus interesses geopolíticos. Mas este pensamento é tanto moral quanto logicamente falho. A natureza do conflito global está mudando. A definição dos interesses nacionais de qualquer país não deveria mais ser vista através de uma lente nacionalista limitada.
Os conflitos não respeitam mais as fronteiras nacionais. Grupos armados e suas ideologias não se confinam a seu país de origem. A impunidade fortalece aqueles que abusam dos direitos humanos e as armas os empoderam. Enquanto a onda humana de refugiados cresce cada dia mais. Em 2014, mais de 3 mil pessoas se afogaram no Mediterrâneo tentando chegar na Europa, vindas da África e Oriente Médio.
A resposta míope de nossos líderes não foi só ineficaz como também contraprodutiva. Governos de todo o mundo recorreram a táticas "antiterror" automáticas e draconianas que só serviram para minar nossos direitos humanos fundamentais e ajudaram a criar condições de repressão nas quais o extremismo prospera.
No ano passado, 131 países torturaram ou maltrataram pessoas, e prisioneiros de consciência foram encarcerados em 62 países. Três quartos dos governos investigados pela Anistia Internacional restringiram arbitrariamente a liberdade de expressão, reprimindo a liberdade de imprensa, prendendo jornalistas ou fechando jornais. Esses números representam um aumento perturbador em relação a anos anteriores.
Líderes de governo tentaram justificar as violações aos direitos humanos falando da necessidade de manter o mundo "seguro". Mas a verdade é que não pode haver segurança genuína sem direitos humanos.
Os desafios que enfrentamos são grandes e não será fácil lidar com eles. Abusos por parte de estados são difíceis de confrontar e a crueldade de grupos armados como o Estado Islâmico e a ameaça que ele representa não pode ser subestimada.
Será necessário compromisso, visão e cooperação global. Pessoas de consciência precisam reconhecer que não somos impotentes, e que nossos governos precisam parar de fingir que a proteção dos civis está além do seu poder.

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