Dois meses que duraram séculos
Luiz Werneck Vianna - O Estado de S.Paulo
No tempo curto de dois meses, um abismo separa o que foi o
primeiro governo Dilma deste que tarda em começar, ainda prisioneiro de
práticas e concepções das quais não será fácil desembaraçar-se. Na
política, como nos transatlânticos, mudanças inesperadas de rota são de
operação complexa e demandam convicções firmes dos seus timoneiros. Eles
devem, se desejarem evitar movimentos de amotinados, ser capazes de
apresentar suas razões e demonstrar autenticidade e determinação na
opção pela mudança de rumos.
Pois é de tal grave natureza uma das ameaças que rondam o mandato
presidencial, qual seja o de perder o apoio do seu partido, do
sindicalismo da CUT, de movimentos sociais, inclusive dos difusos como
os que somente se fazem visíveis nas redes da internet, adversos à
política que adotou em favor do ajuste fiscal, contrariando o que
alardeou em alto e bom som no curso da campanha presidencial. A
categoria dos intelectuais, a esta altura, parece irrecuperável, apesar
das cambalhotas dialéticas com que alguns se eximem da crítica e da
autocrítica.
Decerto que tais riscos têm sua origem em escolhas feitas pela
presidente, ao insistir, em sua campanha eleitoral, em caminhos já
exauridos pela macroeconomia de sua lavra e do seu ministro da Fazenda.
Verdade que um eventual reconhecimento prévio de um diagnóstico desse
tipo, que não era estranho ao círculo do poder (Lula incluído) -
evidente na opção, feita nas primeiras horas após a vitória eleitoral,
pela descontinuidade da sua política econômica com a indicação de um
nome antípoda à sua tribo doutrinária para a pasta da Fazenda -,
ter-lhe-ia custado a reeleição.
Assim, se no terreno da economia foi a mudança de cenário o que importou
para a guinada de rumos em favor do ajuste fiscal, brusca mudança de
rota a marcar a passagem do primeiro mandato presidencial para o
segundo, no caso da política esse marcador tem origem nas ações da
própria presidente.
De um lado, por ter recusado manter-se alinhada às práticas tradicionais
em seu partido, que tanto serviram a ela e ao seu antecessor,
suportadas, no fundamental, pelo eixo PT-PMDB, ao apresentar uma
candidatura de um quadro do seu partido, na disputa pela presidência da
Câmara dos Deputados, contra o peemedebista Eduardo Cunha, um franco
favorito, segundo avaliação então corrente. Como se sabe, sua derrota
eleitoral destravou uma inédita rebelião parlamentar contra a
interferência do Executivo no Poder Legislativo.
De outro, ao compor seu governo com quadros vinculados a alas
minoritárias do seu próprio partido, a presidente contrariou suas
lideranças mais influentes, e a solidão política que se estabeleceu em
torno dela tem trazido de volta o velho espantalho do impeachment,
sempre a rondar presidentes sem apoio congressual e em orfandade
partidária. Em breves dois meses, seu mandato assemelha-se ao de
presidentes malsucedidos que aguardam, com amargura, a hora da passagem
do bastão de comando a seu sucessor.
Agora, passado o carnaval, diante desse horizonte aziago que está aberto
diante de nós, a rota inevitável é a de enfrentar mar alto em águas
turbulentas, em que o timoneiro precisa estar atento a todos os sinais, e
não apenas aos que lhe vêm dos seus impulsos e convicções íntimas. Boa
será a reforma política que vier do Parlamento e que venha a ser
referendada, onde couber, pela cidadania. Esse pode ser um começo para
uma navegação menos arriscada.
Se há previsões fundamentadas de mau tempo, em particular com os
desdobramentos dos escândalos da Petrobrás, ainda em fase de apuração
por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, de desenlace
imprevisível quando os malfeitos e os responsáveis por eles vierem a
público com a formalização de um processo criminal, não se podem ignorar
os bons augúrios que nos vêm tanto da afirmação da autonomia do
Legislativo, que nos faltava - fato de importância capital nas
Repúblicas democráticas -, como a do Judiciário, a esta altura
solidamente escorada pela intensa vida corporativa das inúmeras
associações de magistrados.
Não há motivos, pois, para surtos paranoicos quanto ao destino da nossa
democracia política, embora seja certo que os próximos quatro anos nos
reservem turbulências e nova disposição nas peças sobre o tabuleiro
político. Os primeiros movimentos nessa direção já se iniciaram com a
elevação do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um estranho no ninho do
PT, às funções de primeiro-ministro, a quem se encarregou de liderar as
negociações com lideranças parlamentares a fim de aprovar o ajuste
fiscal no Legislativo, operação já iniciada com as bênçãos do PMDB. Na
sequência, devem ceder as resistências do Executivo a Eduardo Cunha,
presidente da Câmara dos Deputados, que já deu fortes demonstrações de
expertise no jogo da política parlamentar e parece imune a ações de
cooptação pelo governo.
Outro elemento de imprevisibilidade que nos ronda são as ruas, aqui uma
protagonista nos idos de 2013 e, por toda parte, uma nova e
incontornável presença na vida política e social neste início de século.
No Brasil, até no carnaval paulistano. Elas deverão retornar, mas com
outra demografia e outros temas, diversos dos daqueles estudantes e da
agenda tópica de políticas públicas de dois anos atrás. Já estão nelas
os sem-teto e o sindicalismo operário, como na ocupação da Ponte
Rio-Niterói por parte dos petroleiros, entre tantas manifestações
recentes de metalúrgicos paulistas, e, agora, perigosamente, os
caminhoneiros. A agenda desses recém-chegados às ruas, com uma economia
retraída, não recomenda ao boxeador ficar agarrado às cordas. Ele
precisa se reinventar, abandonando o tipo de jogo que o está levando à
derrota, e reiniciar a luta, mesmo que com um estilo com o qual não
esteja habituado. Se quiser evitar o risco de beijar a lona.
Nenhum comentário:
Postar um comentário