sexta-feira, 27 de março de 2015

O isolamento de Donetsk: uma visita à nova fronteira absurda da Europa
Christian Neef - Der Spiegel
Menahem Kahana/ AFP
Homem caminha pelos escombros de um apartamento destruído durante um bombardeio no bairro de Kuibachevsky, em Donetsk
Homem caminha pelos escombros de um apartamento destruído durante um bombardeio no bairro de Kuibachevsky, em Donetsk
Fronteiras podem ser incômodas, mas são em grande parte previsíveis – ao menos na Europa. Isso era o que o caminhoneiro Yevgeny acreditava até recentemente. Muitas delas não são mais monitoradas, mas mesmo aquelas que contam com guardas raramente reservam surpresas para aqueles que desejam atravessá-las. "Você sabe se pode cruzá-las rapidamente ou se terá que aguardar por uma espera de cinco horas. Mas esta? Eu não tenho a menor ideia de como funciona."
A fronteira a qual ele se refere é a de um reduto de guerra à beira de um continente europeu em grande parte sem fronteiras. No primeiro posto de controle depois de Kurakhove, os viajantes devem apresentar seus documentos, abrir o porta-malas de seus carros e se submeterem a revistas enquanto os guardas procuram por armas.
Quinhentos metros à frente na estrada, há blocos de concreto, barricadas, barreiras antitanque e placas que ordenam os viajantes a desligarem seus faróis e pararem imediatamente. Depois disso, há contêineres e soldados encapuzados, com seus fuzis Kalashnikov de prontidão.
Campos margeiam a estrada em ambos os lados. Parece quase como se toupeiras gigantes tivessem trabalhado no solo marrom, coberto com neve enlameada. Fumaça preta sai de chaminés que se projetam dos pequenos montes enquanto os canhões dos tanques se projetam dos maiores.
Mais à frente, uma única escavadora está abrindo uma trincheira na terra pesada e molhada.
A um quilômetro daqui, começa o território da "República Popular de Donetsk", uma área que os ucranianos tratam como território inimigo e como um reduto de terroristas. O exército ucraniano, entretanto, está entrincheirado aqui, logo depois da pequena cidade de Kurakhove.
No meio fica a estrada que leva de Zaporizhia a Donetsk – ao menos quando é permitido o trânsito. O caminhão de Yevgeny agora está estacionado nessa estrada. Ele está com o aquecimento e a TV ligados, a cabine cheira a café. É quase possível considerá-la aconchegante. "Mas não se você ficar sentado aqui por três dias, sem ter ideia de quando começará a se mover de novo", ele se queixa.
Uma fila de veículos aparentemente sem fim – caminhões grandes, vans pequenas de entrega, ônibus e táxis compartilhados– está estacionada no acostamento. No meio de tudo isso está o pequeno caminhão verde e branco de Yevgeny, um Gazelle de fabricação russa projetado para transportar 1,5 tonelada de carga.
Yevgeny dirige para um empresário em Donetsk e está levando mercadorias para as lojas na capital rebelde – uma carga de alimentos enlatados, molho de tomate, leite condensado e condimentos que pegou em Mariupol, a cidade portuária a 120 quilômetros de distância que pode ser o próximo alvo dos separatistas. Yevgeny passou por seus postos de controle desde que partiu de Mariupol, mas agora sua viagem está paralisada perto de Kurakhove, a 40 quilômetros de seu destino.

Tão isolada quanto Berlim Ocidental

É possível discutir se os separatistas são responsáveis ou se Kiev está se vingando. De qualquer modo, Donetsk agora está tão isolada quanto Berlim Ocidental já foi. Mesmo do leste, onde a fronteira com a Rússia está próxima, dificilmente quaisquer produtos conseguem passar.
Os rebeldes controlam a fronteira e só permitem a passagem das cargas de ajuda enviadas como propaganda por Moscou. Tudo, de leite a carne e vegetais, está se tornando escasso na cidade. E o governo ucraniano praticamente selou todo acesso à "República Popular".
Mais recentemente, qualquer um que deseje cruzar a linha entre os dois campos em guerra deve apresentar uma "propusk", uma pequena carteira branca de identidade com um grande "B" impresso. Os ucranianos dividiram a linha de demarcação entre suas forças e as dos separatistas em seções.
A propusk é o Abra-te Sésamo para cruzar a linha na "zona B". Desde janeiro, ninguém consegue cruzar a linha sem essa propusk. O problema é que ela é difícil de obter.
Atualmente há um período de espera de duas a quatro semanas para obtenção da propusk, que é emitida em Velyka Novosilka, um vilarejo a 90 quilômetros a oeste de Donetsk. Mas uma propusk para o "Setor B" é necessária para quem vem de Donetsk chegar a Velyka Novosilka. O resultado é que a população de Donetsk está presa em uma situação frustrante.
Mesmo na dividida Berlim, esses problemas eram resolvidos mais facilmente. Os berlinenses ocidentais podiam obter permissões de viagem junto às autoridades de Berlim Oriental em Berlim Ocidental, de modo que podiam cruzar o Muro. Era um pequeno gesto de boa vontade na Guerra Fria.
"É um teatro do absurdo", diz Yevgeny, enquanto outro motorista chama a situação na fronteira de kafkiana. "Veja as pessoas que estão ali, que vêm de Donetsk.
Elas dão seus documentos aos soldados ucranianos, na esperança de que os documentos de alguma forma chegarão a Velyka Novosilka. E então elas voltam, duas semanas depois, e passam dias esperando aqui no frio para conseguir sua propusk."
Yevgeny obteve o passe, mas não é de muita ajuda agora que os ucranianos criaram uma nova exigência: qualquer um transportando bens para o território controlado pelos rebeldes deve apresentar prova de permissão das autoridades tributárias. Todas as empresas que vendem produtos aos rebeldes devem possuir essa permissão, incluindo a empresa em Mariupol onde Yevgeny pegou seus produtos enlatados.

'Obama é uma besta'

"É claro, a empresa não tem o documento", diz Yevgeny. "Eu fui até a fronteira assim mesmo. Na semana passada, nós esperamos aqui por seis dias. Então demos a um policial 1.000 hrivnas. Isso é apenas cerca de 35 euros, mas aqui equivale a uma pensão mensal.
O policial nos guiou até Donetsk por aldeias onde ainda havia postos de controle." Mas mesmo essas brechas agora parecem fechadas, deixando apenas a travessia oficial, que também está fechada. Ninguém, independente de qual documento apresente, está atravessando a fronteira neste dia de inverno.
Segundo uma autoridade na barreira, a ordem de abrir a fronteira ainda não chegou.
Donetsk, que fica a leste do posto de controle, parece pacífica nesse dia, com um frágil cessar-fogo em vigor desde 15 de fevereiro. Funcionários municipais estão limpando as ruas, prédios danificados estão sendo reparados nos distritos de Kiev e Petrovsky, e até a universidade está aberta.
Mas a cidade dividida pela guerra parece ter perdido sua bússola moral, com os jornais relatando 18 assassinatos nos últimos três dias.
Os apoiadores dos novos líderes se reúnem na Praça Lênin, carregando bandeiras com imagens do ex-ditador soviético Joseph Stálin e as palavras "A vitória será nossa" e "Obama é uma besta".
Filmes de guerra são exibidos no "Primeiro Canal Republicano", com mensagens correndo na parte inferior da tela do tipo "O batalhão especial 'Oplot' busca pilotos de tanque e paramédicos". Os interessados são instruídos a ligar para o número listado e a falar com "Natasha".
Esforços semelhantes de recrutamento também estão em andamento nas ruas. Um cartaz exibindo um fuzil Kalashnikov com mira telescópica, juntamente com o número de telefone do exército da República de Donetsk, diz: "Eu estou esperando pelo meu herói".
O "Novorossiya", um jornal separatista, escreve: "Após nossa vitória militar, nós obtivemos uma vitória diplomática em Minsk: nós nos tornamos de fato independentes". Um homem como o presidente russo Vladimir Putin, prossegue o artigo, "nasce apenas uma vez em mil anos. Chegará o dia em que ele também será nosso presidente".
Ouve-se muito pouco disparo de artilharia, mas dificilmente alguém se aventura nas ruas, especialmente à noite. "Depois das 18h, 40% de desconto na vodca, vinho e champanhe", diz um cartaz do lado de fora da El Torro Steakhouse, no Bulevar Pushkin. Mas o restaurante permanece vazio mesmo depois das 18h.
Assim como a loja de casacos de pele na rua Artem, que promete um "desconto de 20% para as esposas dos soldados do Exército Popular".
Outros comerciantes carecem de produtos, em vez de clientes. Nem mesmo uma aspirina chega ao território controlado pelos rebeldes, muito menos analgésicos para doentes de câncer nas clínicas e metadona para os viciados em drogas da cidade.
"Ou me enforco ou me junto ao Exército Popular", diz um jovem que está em uma terapia com metadona há quatro anos. "Então lutarei com aqueles caras, e não serei enterrado como um viciado, mas como alguém que defendeu sua pátria."

Saindo de Donetsk

Assim como é difícil entrar em Donetsk, sair é igualmente difícil. Aqueles que esperam fugir da cidade sitiada vão ao terminal sul de ônibus da cidade. Idosas permanecem por ali segurando copos de papel, pedindo esmola, e um homem revira uma lata de lixo, à procura de algo de valor.
As pessoas fazem fila nas cabines de informática, onde pagam 2,60 hrivnas por informação. Para prevenir discussões, avisos nas janelas dizem: "Nós também não sabemos como conseguir uma propusk!"
Há 21 plataformas de ônibus no terminal. Aquelas com ônibus que viajam para locais dentro da "República Popular" estão vazias, enquanto as outras estão lotadas, com ônibus partindo para Mariupol, Sloviansk e a cidade industrial de Kramatorsk. Os motoristas só permitem que passageiros portadores de uma propusk "Setor B" embarquem.
Um frágil ônibus Tata de fabricação indiana está pronto para partir na plataforma quatro. Enquanto os passageiros embarcam, uma mulher jovem diz que sua mãe está no hospital em Kramatorsk e pergunta se ele pode levá-la sem uma propusk.
"Não sem verificação do hospital", diz o motorista. "Mas eles não me dão uma", responde a mulher desesperada.
Outra passageira tem mais sorte. Ela quer que o motorista a ajude a trazer escondido um parente para Donetsk quando voltar. "Bem", diz o homem hesitantemente, depois dizendo "bem" de novo, até ela lhe entregar um maço de cigarros "President". "Quantos têm dentro?" ele pergunta. "Duzentos", responde a mulher.
O motorista abre o maço e puxa quatro notas de 50. "Bem", ele repete, desta vez soando mais positivo. Apesar da guerra ter cortado oficialmente todas as conexões com o mundo exterior, ainda é possível comprar formas de contornar o bloqueio.
Yevgeny, sentando em seu caminhão no posto de controle, está familiarizado com essas formas. Em um país à beira do desastre econômico, por que os soldados não estariam abertos a suborno? "Você simplesmente vai até o posto de controle e escolhe um dos rostos de aspecto mais confiável", ele diz, "e então puxa conversa".

Sem futuro

Quanto é preciso pagar para que um caminhão transportando comida passe pelas linhas de frente? Até recentemente, os motoristas tinham que pagar aos ucranianos 10 mil hrivnas por caminhão, mas agora o preço subiu para 20 mil –o equivalente a entre cinco a seis meses de salário de um soldado.
E não é tudo. No posto de controle rebelde do outro lado, os soldados da "República Popular" exigem pagamento de "taxas alfandegárias". Não há um preço fixado, mas os separatistas normalmente exigem três entre cinco caminhões-tanque transportando gasolina.
Até mesmo o empresário mais rico não pode pagar esse preço por muito tempo, diz Yevgeny. Além disso, ele explica, o preço do diesel quase dobrou desde o início de fevereiro.
"Eu passei quase toda minha vida em Donetsk. Eu não tenho nada de ruim a dizer sobre Viktor Yanukovych. Quando ele estava encarregado, ele nos conseguiu um apartamento", ele diz sobre o período anterior à presidência de Yanukovych, quando ele ainda era um líder empresarial local.
"Agora eu tenho uma casa pequena, onde minha esposa está me esperando. Mas levamos nossa filha de 16 anos para uma escola em Zaporizhia. Não há futuro para ela aqui em Donetsk."
As pessoas no comando da "República de Donetsk" eram desconhecidas até recentemente, diz Yevgeny. "Agora cada uma delas tem um Kalashnikov e se comportam como se fossem nossos novos mestres. Eu não votei pela independência."
Então Yevgeny entra em seu saco de dormir. Outra noite na nova fronteira da Europa? Ou talvez duas ou três?
Se as pessoas são a favor ou contra a "República Popular" parece ter se tornado uma questão de dinheiro. Enquanto Yevgeny aguarda na fronteira e xinga os rebeldes, Fyodor Ilyishenko, no terminal de ônibus de Donetsk, tem precisamente a visão oposta.
Ele está segurando um envelope que contém uma carta ao tribunal distrital em Kiev – uma queixa contra o primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk. Com sua decisão de impor um bloqueio econômico à República Popular, o primeiro-ministro foi quem provocou miséria e sofrimento na cidade, diz Ilyishenko.

'Você tem que lutar'

"Foi uma decisão criminosa. Yatsenyuk é tão tacanho e raso quanto uma rolha. Ele alega que não temos mais direito a nada, porque vivemos em território ocupado", prossegue Ilyishenko.
Baixinho e amável, Ilyishenko, 78 anos, já serviu como general da força aérea no extremo oriente da União Soviética e mostra sua carteira de veterano para provar. Ele lutou contra os chineses nos anos 60 e lutou ao lado dos egípcios na Guerra dos Seis Dias contra Israel.
Agora ele é consultor militar dos separatistas. Ele não recebe mais sua pensão, agora que Kiev cortou todos os pagamentos às "Repúblicas Populares".
"Eu tenho 70 mil hrivnas na minha conta do Oshchadbank estatal. O dinheiro é para a minha aposentadoria, mas não posso sacá-lo porque não há mais bancos em Donetsk.
Eles prometeram me dar todo o dinheiro, mas teria que ir a uma agência em território ucraniano para recebê-lo" –o que ele não pode fazer.
O governo em Donetsk pagou recentemente a ele 1.000 hrivnas em ajuda de emergência, ele diz, e gastou imediatamente metade do dinheiro em comida.
Agora ele está em pé na plataforma do terminal de ônibus segurando uma sacola de plástico com as palavras "Diamonds Delight" impressas. A sacola contém remédios.
O correio não funciona mais, o motivo para Ilyishenko estar tentando encontrar alguém com destino a Mariupol para levar sua carta de reclamação. Ele tem um amigo ali que pode encaminhá-la ao destino certo. Ele aborda um grupo de mulheres, e uma delas concorda em ajudar.
O velho lhe mostra a carta, sela o envelope e dá a ela 25 hrivnas. "Será difícil mudar a situação, mas você tem que lutar", diz o general reformado.
Tradutor: George El Khouri Andolfato

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