domingo, 31 de maio de 2015

Estreia cinco estrelas
As entranhas do reino que Blatter chama de seu estão escancaradas, e o cheiro que delas exala é pútrido
Dorrit Harazim - O Globo
O derrotado na eleição para presidente da entidade máxima do futebol foi um príncipe de verdade. Ali bin al-Hussein, 39 anos de idade — 40 a menos que o astuto vencedor —, é irmão do rei Abdullah II da Jordânia e aprendeu disciplina em anos de formação na Real Academia Militar de Sandhurst da Inglaterra.
“O fato de ficar do lado perdedor de uma votação não significa estar do lado errado”, disse antes da tensa votação de sexta feira. Em entrevista ao “New York Times”, fez uma previsão: “Chegará o dia em que ninguém terá interesse em sequer saber o nome do presidente da Fifa. Quando isso acontecer, saberemos que a entidade embicou no curso certo.”
Apesar de sitiado por todos os lados e ter tido parte da “família Fifa” capturada numa operação policial sem falhas, Sepp Blatter triunfou mais uma vez. Manteve-se no cargo para um quinto mandato.
Mas as entranhas do reino que ele chama de seu estão escancaradas, e o cheiro que delas exala é pútrido. As investigações do que já pode ser descrito como o maior escândalo da história do esporte moderno estão apenas no início. Por isso, é cedo para prever quem sobrará no QG de US$ 100 milhões de vidro e cromo da entidade, fincado numa plácida colina de Zurique.
Eduardo Galeano terá acertado quando escreveu em “Futebol ao sol e à sombra” que “existem ditadores visíveis e invisíveis. A estrutura do poder do futebol mundial é monárquica. É o reino mais sigiloso do mundo”. Esse reino de bandeira e hino próprios levou Blatter à fantasia de considerar a Fifa uma nação soberana. E vê a si mesmo como seu mandatário superior. Habituou-se a falar “de presidente para presidente” em viagens à África e Ásia. Ultimamente apenas em Dilma Rousseff encontrou com uma parede intransponível.
Quando Blatter substituiu Joao Havelange na presidência, em 1998, a entidade empregava 12 pessoas. Hoje são mais de 400. Transformou a Fifa numa máquina de fazer dinheiro e espalhou a sedução do futebol por continentes menos desenvolvidos. Desta forma, foi arrebanhando votos. Dado que a maioria das 25 cadeiras do poderoso Comitê Executivo são ocupadas por representantes das seis confederações regionais de futebol, um delegado do Bostwana ou da Tailândia acaba valendo tanto quanto um da Alemanha ou da França, históricos pesos-pesados do esporte.
Com as investigações em curso, talvez apareça alguma afinidade fora dos campos entre delegados de países tão distintos. A chave pode estar na polêmica escolha das sedes dos Mundiais de 2018 e 2022, vencidas respectivamente pela Rússia e pelo Qatar e coalhadas de suspeitas de compra de votos desde sua realização simultânea em dezembro de 2010.
Para a Copa de 2022, sabe-se que Blatter foi voto vencido pois o Qatar derrotou a candidatura dos Estados Unidos por 14 a 8. Mas sabe-se mais. Um mês antes do pleito, Michel Platini, atual presidente da Uefa e equivocadamente visto como alternativa ética à era Blatter, teve um almoço no Palácio do Eliseu não constante da agenda do então presidente Nicolas Sarkozy.
Participaram do almoço secreto Tamim ben Hamad al-Thani, então príncipe herdeiro e hoje emir do Qatar, e Sébastien Bazin, à época presidente do clube Paris-Saint Germain (PSG). O negócio tratado: a venda do PSG para o Qatar, do interesse da França, em troca do voto de Platini. O ex-craque dos Bleus admite que as duas coisas ocorreram, mas que seu voto não foi negociado. Coincidência ou não, seu filho Laurent foi contratado pouco depois como CEO de uma nova empresa de material esportivo do Qatar instalada na Europa.
O Mundial de 2018 vencido pela candidatura russa produziu da derrotada Inglaterra as versões de fraude mais ferozes. Outras, pitorescas. De acordo com informações colhidas pelo “Sunday Times” junto à rede de embaixadas britânicas e serviços de inteligência privados, o governo de Vladimir Putin teria presenteado o mesmo Platini com uma tela de Pablo Picasso da coleção do Hermitage. Já o belga Michel d’Hooghe, do Comitê Executivo, teria recebido o quadro de uma paisagem camuflada em sacola de supermercado. Platini nega frontalmente essa alegação, enquanto o belga admite o mimo mas acrescenta não ter votado na Rússia. Ademais, acrescenta ele, o quadro era medonho.
Dois anos atrás, convidado a falar na prestigiosa sociedade de debates Oxford Union, Blatter deixou atônita a plateia da universidade ao se definir nestes termos: “Talvez vocês pensam que sou um parasita sem escrúpulos que suga o sangue do mundo e do futebol. Vocês podem ter sido induzidos a imaginar que a Fifa é o malvado Sheriff of Nottingham do jogo de tabuleiro. Na realidade temos mais em comum com Robin Hood”.
Blatter não entendeu o aviso que recebeu em dezembro de 2014 para parar de fantasiar. Michael J. Garcia , o investigador-chefe de uma comissão de ética independente contratada pela Fifa justamente para estancar a enxurrada de suspeitas, pedira demissão por considerar que a entidade era incapaz de se reformar por conta própria. Garcia, um ex-procurador federal em Nova York, fizera carreira cerceando terroristas e o crime organizado. Ao perceber que seu relatório de 430 páginas sobre o processo potencialmente corrupto de seleção de Mundiais fora engavetado, demitiu-se. Seu veredito: a Fifa só será transparente quando forçada a sê-lo.
O pontapé inicial dessa lenta e penosa transparência foi dado às seis da manhã de quarta feira. Enquanto os habitués do hotel cinco estrelas Baur Sur Le Lac ainda dormiam, mais de uma dúzia de agentes à paisana se dirigiram à recepção, apresentaram as credenciais e pediram os números dos aposentos dos indiciados. Avisados pelo concierge em inglês que era preciso abrir a porta ou ela seria aberta à força, os sete dirigentes presos no hotel tiveram permissão de se vestir e preparar um kit–prisão.
A operação durou menos de duas horas. Não houve estardalhaço, armas ou algemas. Nem foi preciso.
O mais transparente, por enquanto, é o medo estampado em quem tem motivos para ter medo.

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