Carlotta Gall - NYT
Mauricio Lima/The New York Times
Hamida
Ajengui disse que foi despida e pendurada de cabeça para baixo por uma
dúzia de policiais, que a xingavam e ameaçavam estuprá-la
Ela tinha apenas 21 anos quando foi presa pela polícia da Tunísia, que a
levou a uma sala do Ministério do Interior e a "espancou tão duramente
que nem mesmo me recordo de como fui parar lá". Mas essa não foi a pior
parte.
Hamida Ajengui disse que foi despida e pendurada de
cabeça para baixo por uma dúzia de policiais, que a xingavam e ameaçavam
estuprá-la."Eu era uma menina", disse Ajengui, atualmente com 46 anos, em uma entrevista. "Fui criada em um ambiente onde é ético ser uma pessoa moral, respeitável e educada. Então, de repente, fui levada àquele lugar onde tiram todas as suas roupas e deixam você completamente nua."
A Tunísia embarcou em um experimento ousado e doloroso, reunindo o testemunho de vítimas de seis décadas de abusos sob duas ditaduras, antes de sua revolução há quatro anos levar a uma democracia ainda nascente. Mas milhares já compareceram para apresentar denúncias à Comissão da Verdade e Dignidade do país, que deverá iniciar as audiências públicas em junho, com a meta de expor as violações, indenizar as vítimas e fazer com que os perpetradores dos abusos prestem contas, em uma busca pela reconciliação nacional.
Passados poucos meses do processo, 12 mil vítimas já se apresentaram, a maioria homens. Mas o que surpreendeu até mesmo ativistas veteranos de direitos humanos é o número de mulheres começando a contar histórias de extrema crueldade, violência sexual e estupro.
Os casos mais difíceis e traumáticos, segundo os membros da comissão, são relatos como os de Ajengui, já que as mulheres são vistas como representantes da honra da família nesta sociedade profundamente conservadora.
As mulheres foram tão brutalmente torturadas quanto os homens. Mas elas sofreram um estigma adicional –-o do estupro e da violência sexual. Esses abusos foram usados como forma sistemática e institucionalizada de tortura, com frequência empregada contra as mulheres apenas por serem casadas ou terem parentesco com um membro da oposição.
Outras eram ativistas –-esquerdistas, nacionalistas, sindicalistas, islamitas ou estudantes-– que foram presas juntamente com seus colegas do sexo masculino. A ofensa de Ajengui foi de ter levantado dinheiro para ajudar a sustentar as famílias dos presos.
As mulheres que foram presas, como os homens, se viram não apenas vítimas de ostracismo, mas também impedidas de estudar e trabalhar, e obrigadas a comparecer a uma delegacia duas ou três vezes por dia. "Era como uma punição por toda a vida", disse Ajengui.
Após simulação de afogamento, eletrocussão, espancamento e estupro com varas de madeira e cassetetes, as mulheres sofreram abortos e ferimentos internos duradouros que as deixaram marcadas psicologicamente. Algumas ainda vivem com medo de seus torturadores, que costumam ver em seus bairros. Durante entrevistas com meia dúzia de mulheres que foram torturadas, nenhuma conseguiu narrar o que aconteceu sem chorar.
"Nós tínhamos esse paradoxo", explicou Sihem Bensedrine, uma ex-jornalista e ativista de direitos humanos que lidera a Comissão da Verdade e Dignidade. Ambas as ditaduras –-sob Habib Bourguiba e depois Zine el-Abidine Ben Ali-– se gabavam das políticas que estimulavam o mundo árabe a promover os direitos da mulher, ela notou.
"Ben Ali promoveu muita 'feminização'", disse Bensedrine. "Mas ocorreram imensas violações contra as mulheres, especialmente estupro, mais do que pensávamos."
As mulheres eram estupradas em seus próprios lares ou nas delegacias de bairro enquanto seus maridos estavam na prisão, ela disse. "Não era apenas para obter informação, mas para dissuadir as pessoas a se oporem: 'Eu vou ferir ou quebrar você, então nem tente'", foi como Bensedrine descreveu.
Ajengui disse que foi pendurada na notória posição 'frango assado' –-amarrada e suspensa nua em uma barra de ferro-– por 16 horas enquanto a polícia ameaçava violá-la com seus cassetetes. "Eles apalpavam os seios", ela lembrou. "Eles apalpavam você em toda parte."
Ela sobreviveu e se casou com outro ativista –-que também foi preso e torturado-– e tiveram quatro filhos.
Apesar de brutalidade desse tipo ser comum em ditaduras, e da história do ativismo das mulheres tunisianas se estender desde o início do século 20, muitas das experiências dessas mulheres ficaram em grande parte sem serem documentadas, disse Ibtihel Abdellatif, que escreveu uma tese de mestrado sobre o ativismo das mulheres na Tunísia.
Ela criou a Associação das Mulheres Tunisianas para reunir os depoimentos dessas mulheres. "Nós não encontramos nenhuma instituição que tivesse conhecimento suficiente disso", disse Abdellatif. "É um assunto tabu que ninguém quis abordar."
Centenas de mulheres foram detidas e interrogadas sem processo formal, de modo que falta documentos que provem suas experiências. Outras silenciaram por medo da polícia, que as alertava a não procurarem a imprensa e nem organizações de direitos humanos.
As mulheres também temiam censura na comunidade. Muitas das vítimas vinham de famílias islâmicas profundamente religiosas, particularmente sensíveis à natureza sexual de grande parte do abuso.
"Quando uma mulher é presa em um país árabe", disse Abdellatif, "isso destrói a vida dela porque, ao sair, ela permanecerá em uma prisão maior, rejeitada pela sociedade".
A divisão profunda entre seculares e islamitas na Tunísia também impedia a discussão aberta do problema.
Os principais grupos de mulheres, que apresentam maior probabilidade de serem seculares, fizeram pouco para investigar os abusos cometidos contra mulheres islâmicas durante o governo de Ben Ali. Agora comissária para mulheres da Comissão da Verdade e Dignidade, Abdellatif cruza o país encorajando as mulheres a se apresentarem.
As mulheres que desejarem, e que psicólogos considerarem fortes o bastante, participarão das audiências públicas –-algumas até mesmo já falaram em fóruns e à imprensa.
Poucas estão preparadas a esta altura para se sentarem diante de seus torturadores, e os comissários dizem que o processo visa ouvir as vítimas e honrá-las. Mas as mulheres entrevistadas disseram que desejam o reconhecimento oficial dos males cometidos, das carreiras prejudicadas e das famílias abaladas.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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