Noves fora, nada
Depois de febril atividade decisória, a Câmara configura uma reforma política que não reforma praticamente coisa nenhuma
FSP
Um respeitado artista contemporâneo brasileiro costuma inscrever em suas
obras longas séries de algarismos. Organiza-os numa sequência de
subtrações sucessivas, de modo a que sempre apresentem o zero como
resultado final.
Não parece descabido evocar os trabalhos de Paulo Climachauska a
propósito do que aconteceu na votação da reforma política na Câmara dos
Deputados.
Por vários anos, o assunto manteve-se na estaca zero. Com a única
exceção relevante da Lei da Ficha Limpa, qualquer proposta de aprimorar o
sistema representativo se dava pelos caminhos judiciais ou se via
destinada ao engavetamento no Congresso.
Numa verdadeira maratona deliberativa, a Câmara afinal saiu da inércia,
decidindo, entre outros temas, sobre voto distrital e lista fechada,
financiamento de campanhas, reeleição, cláusula de barreira para
partidos políticos.
O resultado de tanta atividade legislativa mostrou-se, entretanto, quase
nulo. Partiu-se de uma situação em que nenhuma reforma era votada para
se chegar, depois de muito trabalho, a uma situação em que se aprova uma
reforma que não é reforma nenhuma.
No ponto mais importante, a questão do sistema eleitoral, foi bem isto o que ocorreu.
Havia a proposta do puro voto em lista: o eleitor simplesmente veria
sonegado seu direito de escolher nominalmente os candidatos a cargos
proporcionais, ficando à mercê da anônima determinação da burocracia
partidária. A ideia, a princípio defendida pelo PT, foi a plenário sem
patrocínio mais expressivo que o do PC do B.
Também derrotado, mas por margem bem menor, foi o estranho mecanismo do
distritão, que contava com o entusiasmo de líderes do PMDB, como o
vice-presidente da República, Michel Temer, e o presidente da Câmara,
Eduardo Cunha (RJ).
De certo modo, era o oposto do voto em lista: desarticulava qualquer
ligação entre o candidato e seu partido. Os sufrágios que excedessem o
necessário para eleger um deputado simplesmente se desperdiçariam, sem
beneficiar outros membros da legenda.
Entre o personalismo total e o anonimato completo, a maioria dos
deputados optou por deixar tudo como está, não sem antes derrotar a
proposta que, no entender desta Folha, poderia ao mesmo tempo fortalecer os partidos e tornar mais transparente e barata a eleição: o sistema distrital misto.
Dessa rodada de votações sobre o sistema eleitoral, é como se todos
tivessem saído derrotados. Perderam os defensores de um aprimoramento do
sistema. Perderam, também, os que pretendiam piorá-lo.
Era ainda a derrota, ao menos naquele momento, de Eduardo Cunha, que,
como presidente da Câmara, foi o grande protagonista do espetáculo, o
maestro indiscutível da cacofonia, o mago da reforma que desapareceu no
ar.
Atropelou, com inequívoco autoritarismo, os trabalhos da comissão
encarregada de elaborar um projeto de reforma política coerente; em
defesa de inegáveis interesses próprios, impôs o distritão sobre o
relatório final; fez e desfez, por fim, acordos com relação ao
financiamento de campanhas.
Neste ponto, recuperou-se da derrota de um dia (quando a maioria se
inclinava para impedir o repasse de empresas para candidatos) para
vencer no dia seguinte, quando se admitiu que pessoas jurídicas doem a
partidos.
Não se trata de algo em tese incorreto, desde que as transferências se
façam com o máximo de transparência e dentro de limites quantitativos
--itens a serem regulados em legislação complementar.
Foi lamentável, contudo, que a reviravolta no plenário tenha sido
alcançada, mais uma vez, pelos duros métodos de Eduardo Cunha --que,
numa barganha nefasta, implicaram a flexibilização nas regras que
visavam a diminuir o número de partidos políticos e coibir as chamadas
legendas de aluguel.
Não se conseguiu, portanto, nenhum progresso no sistema eleitoral ou no
sistema partidário. Manteve-se mais ou menos igual tudo o que se tinha,
com uma séria desvantagem: o fim do mecanismo da reeleição, aceito
oportunisticamente até mesmo pelo PSDB, partido tão comprometido em
implantá-lo na Presidência de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A reforma será retomada, passará por novo turno de votações, irá ao
Senado. Não há o que esperar de tudo isso, a menos que o tema deixe o
âmbito dos conchavos de gabinete para ser objeto de mobilização e debate
na sociedade.
Entregues a si mesmos, os políticos brasileiros não têm muitos motivos
para fazer coisa melhor --mas, se tiveram a oportunidade, certamente
farão coisa muito pior.
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